09 Julho 2019
O significado da preferência apostólica de “caminhar com os pobres” pode se perder. Não se trata de trabalhar diretamente pelos pobres, embora certamente inclua isso. Essencialmente, é viver como os pobres.
A opinião é do padre estadunidense David M. Knight, ex-jesuíta e hoje incardinado na Diocese de Memphis, e diretor do His Way House, um centro de crescimento espiritual, em Memphis, Tennessee. É autor de mais de 40 livros, além de várias cartilhas e manuais, e de mais de 50 artigos em vários periódicos. O artigo foi publicado em America, 05-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 19 de fevereiro, a Companhia de Jesus enviou aos seus membros uma carta detalhando quatro “preferências apostólicas universais”, aprovadas pelo Papa Francisco, que devem orientar a vida e o trabalho dos jesuítas nos próximos 10 anos. Elas se centram em torno da espiritualidade inaciana, da pobreza, dos jovens e do ambiente. A segunda preferência, caminhar com os pobres, oferece uma oportunidade para os jesuítas mudarem seu estilo de vida e tornarem sua missão mais credível.
Santo Inácio explica o retiro de 30 dias que ele chama de Exercícios Espirituais como uma “maneira de preparar e dispor a alma para se livrar de todos os apegos desordenados e, após a sua remoção, de buscar e encontrar a vontade de Deus na disposição da nossa vida para a salvação da nossa alma”. Qualquer coisa que possa ajudar as pessoas a encontrar a vontade de Deus é de valor universal e permanente para todos os fiéis.
A preferência apostólica de “caminhar com os pobres, os descartados do mundo, os vulneráveis em sua dignidade em uma missão de reconciliação e justiça” surge a partir de duas meditações-chave nos Exercícios Espirituais. Mas o significado dessa preferência pode se perder. Não se trata de trabalhar diretamente pelos pobres, embora certamente inclua isso. Essencialmente, é viver como os pobres.
Como a vida jesuíta se baseia nos Exercícios, minha suposição é de que essa preferência se baseia, primeiro, na “meditação do Reino”, na qual Jesus nos convida a “trabalhar com” ele para estabelecer o reino de Deus na terra. Mas a resposta que Inácio propõe, deixa claro que o convite é mais para um estilo de vida do que para um tipo particular de trabalho: “Eterno Senhor de todas as coisas (...) esta é a oferta de mim mesmo que eu faço (...) Para imitar-vos ao suportar todos os erros e todo abuso e pobreza, tanto reais quanto espirituais, que Vossa Majestade Santíssima escolha admitir-me a tal estado e estilo de vida” (grifo do autor).
Isso é reforçado na meditação sobre as “Duas Bandeiras”, na qual Inácio identifica as respectivas estratégias do diabo e de Jesus. O diabo tenta as pessoas a duas coisas que não são em si mesmas pecaminosas – buscar a riqueza e o prestígio – mas, no entanto, preparam as pessoas para o pecado de todos os pecados, o orgulho.
A estratégia de Jesus para combater o orgulho é exortar as pessoas a adotarem duas coisas que, em si mesmas, não são boas, mas que juntas levam a um grande bem. A primeira, escreve Inácio, é “a pobreza em oposição à riqueza”; a segunda são “os insultos ou o desprezo em oposição ao prestígio deste mundo”. Elas preparam o terreno para recebermos a terceira virtude: “A humildade em oposição ao orgulho”. Essa intuição estratégica pode ser a maior contribuição de Santo Inácio para a teologia.
Vemos um excelente exemplo de humildade no Papa Francisco. Um dos seus primeiros atos notáveis quando eleito foi sair do palácio papal. O primeiro papa jesuíta recusou os títulos honoríficos e os ornamentos do protocolo papal e tornou-se disponível aos pobres. Francisco mudou toda a imagem do papado e a nossa expectativa em relação a como um papa deveria agir. Se a hierarquia e o clero seguissem seu exemplo, a imagem pública de toda a Igreja poderia ser transformada em relação à sua imagem de riqueza e prestígio para uma imagem de pobreza e humildade.
Eu fui jesuíta durante 32 anos. Eu saí porque me senti chamado a ajudar a formar uma nova ordem religiosa (o que não deu certo). Embora eu fosse crítico do modo como nós, jesuítas, vivíamos o nosso voto de pobreza e tenha tornado pública a minha crítica em palestras e na publicação jesuíta “Studies in the Spirituality of Jesuits”, os meus problemas com a pobreza não foram a razão de eu sair.
Eu estava satisfeito por poder viver a pobreza pessoal, mesmo que a pobreza comunitária não fosse tudo o que deveria ser. Mas, já que Santo Inácio chama a pobreza de “muro” da vida religiosa, eu acreditava naquela época e ainda acredito que os jesuítas precisam defendê-la como sua primeira prioridade.
É a isto que os jesuítas se dedicam: “Caminhar com os pobres, os descartados do mundo” vivendo como eles “suportando todos os erros e todo abuso e pobreza”, de acordo com os Exercícios Espirituais. E, desse modo, abraçar a “missão de reconciliação e justiça”.
“Caminhar com” é acompanhar. É fazer aos pobres aquilo que Deus fez pela raça humana ao se tornar um de nós. Jesus validou a humanidade tornando-se Emanuel, “Deus conosco”. Daí em diante, nada humano pode ser desprezado. Tornando-se pobre com os pobres, os jesuítas validam os “párias do mundo, aqueles cuja dignidade foi violada”.
Parafraseando Filipenses 2,5 e Hebreus 4,15, “caminhar com os pobres” é deixar que esteja em nós a mesma mentalidade que estava em Cristo Jesus, que, embora fosse rico, esvaziou a si mesmo, nascendo na pobreza. É dar aos pobres ministros capazes de simpatizar com o que eles experimentam, sendo em todos os aspectos como eles são, exceto naquilo que é desumanizador ou prejudicial ao bem maior.
A pobreza jesuíta deveria ser tão dramaticamente visível e chocante quanto a encarnação de Jesus. Essa afirmação apenas repete o Papa Paulo VI, que definiu o testemunho cristão como um estilo de vida que “desperta perguntas irresistíveis nos corações daqueles que veem como eles vivem: por que eles são assim? Por que vivem dessa maneira?”. Os jesuítas deveriam viver de uma maneira que levantasse as sobrancelhas. Qualquer um que veja um jesuíta na rua deveria ser capaz de identificá-lo como alguém que se sente em casa com “os pobres e os descartados do mundo”.
Muitas escolas jesuítas formam principalmente os ricos. É verdade que essas escolas e faculdades trabalham duro para matricular tantos alunos pobres quanto possível. No entanto, ao trabalhar com os filhos e filhas das classes mais altas, pode-se facilmente entrar nas armadilhas das classes mais altas. A Companhia deveria tirar seus homens dessas escolas ou aceitar o desafio de viver um estilo de vida pobre dentro delas?
Viver um estilo de vida pobre é um desafio comunitário. Rick Thomas, SJ, que trabalhou com os pobres em El Paso, Texas, contou-me sobre a sua frustração quando, em uma reunião dos jesuítas em Mobile, Alabama, serviram-lhe um bife. “As pessoas com quem eu trabalho recebem um pedaço de carne desse tamanho talvez uma vez por ano”, disse o Pe. Thomas. “Eu não quero comer bife. Mas é tudo o que tem.” Não é incomum a história de um membro do corpo docente de uma faculdade que era regularmente convidado para jantar em uma comunidade jesuíta e disse a um de seus anfitriões: “Eu adoro jantar com os jesuítas. Eu não posso me dar ao luxo de comer desse jeito em outros lugares.”
Então, como alguém vive a pobreza quando este não é um compromisso comunitário? Essa é a luva que os jesuítas acabaram de vestir. Sua segunda preferência apostólica, como eu a entendo, é tornar a pobreza real.
Tornar a pobreza real pode ser feito começando-se com escolhas individuais. Embora cercado pela riqueza vaticana, o Papa Francisco vive de maneira simples. Na biografia do Pe. Thomas, a foto do seu quarto é austera. Ao contrário da maioria dos franciscanos, os jesuítas não usam um hábito, mas nada os impediria de usar roupas baratas de lojas populares e brechós.
Esses exemplos parecem ridículos? São irrealistas? É aqui onde entra o chamado ao discernimento. Quando era missionário no Japão nos anos 1500, São Francisco Xavier descobriu que só poderia conquistar os japoneses ao cristianismo convertendo a classe dominante. Para fazer isso, ele e seus companheiros se apresentaram como dignitários. Isso deu frutos ao obter acesso aos estudiosos e a outros líderes religiosos e civis que eles não teriam encontrado de outra forma.
Mas cada situação pede um novo discernimento. Os benefícios e o testemunho da autêntica pobreza no nosso tempo, lugar e cultura são previsíveis demais para serem abandonados de ânimo leve. E o discernimento exige desapego.
Há alguns anos, uma província jesuíta dos Estados Unidos decidiu fechar um de seus colégios por causa do baixo número de jesuítas disponíveis para esse ministério. Não ficou claro, no entanto, qual escola deveria ser fechada. Pediu-se aos professores de cada escola da província que se engajassem no discernimento comunitário para determinar se a sua escola era a que deveria ser fechada. Um padre jesuíta disse que, em oração, passou a acreditar que a escola onde ele morava deveria permanecer aberta.
Mas, no café da manhã na manhã seguinte, esse padre relatou uma mudança de coração. Ele disse aos seus companheiros jesuítas: “Quando eu estava me barbeando esta manhã, eu pensei que esta é a única escola em que trabalhamos onde eu teria um banheiro privado. Acho que isso tem muito a ver com o meu discernimento!”.
Os jesuítas só serão capazes de produzir mudanças significativas na Companhia de Jesus – e no mundo – através de uma conversão comunitária para superar o individualismo e desenvolver um estilo de vida visível que dê credibilidade concreta à sua decisão de “caminhar com os pobres”.
Esse é o desafio que os jesuítas abraçaram. Minha oração e meu apelo é que eles estejam à altura dele.
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Um apelo e um desafio aos jesuítas: abracem a autêntica pobreza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU