08 Julho 2019
Em outro lugar, escrevi que a crença no mito do inferno é a maior aberração que já existiu na história da humanidade. Por muito tempo quis saber como a Igreja adotara a crença dessa barbárie, quando e por causa de quem. Mas parecia um tabu. Em meu livro sobre, "A Bíblia bem contada", está claro que a Bíblia não pode fazer qualquer aproximação neste sentido, embora um texto de Cristo "muito mal compreendido" levasse a isso.
O artigo é de Antoni Ferret, historiador catalão, publicado por Religión Digital, 06-07-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A primeira surpresa é que essa adoção da heresia não foi de uma só vez, em um só momento, mas pouco a pouco, ao longo de mil anos (sim, mil anos.) A segunda surpresa é que não foi, como eu pensava, por causa da má interpretação das palavras sobre o Juízo Final. Pois não. Surpreendentemente, o cultivo progressivo dessa teoria foi feito inteiramente fora das Escrituras, como se não existisse. Eu não consigo entender.
Outra característica, isso não é surpreendente, é que a Igreja oficial reage ao problema de uma forma influenciada pelas opiniões dos pensadores "cristãos". Nos primeiros séculos, esses pensadores são os chamados "Pais da Igreja".
No terceiro século, apenas duzentos anos após a pregação de Cristo (apenas duzentos anos!) começaram as mentiras e heresias. Mas não de repente! No começo tudo foi muito suave, até parecia aceitável. Assim Clemente de Alexandria e Orígenes acreditavam em uma espécie de "inferno espiritual": a alma do pecador, após a morte, teria um forte sentimento de arrependimento pelos pecados cometidos, que a faria sofrer. Mas seria temporário e terminaria. Porque a bondade divina faria, no final de tudo, até o diabo acabaria salvando. Se tudo tivesse sido assim ...
No quarto século, com Santo Ambrósio e Gregório de Nisa, segue-se a mesma tônica. Mas entre o final do quarto século e o começo do quinto século, ocorre a perversão: começa-se a falar de um inferno de fogo, que arde, e então isso é eterno. Os precursores da heresia são, primeiro, João Crisóstomo e depois São Jerônimo. João Crisóstomo acrescenta uma segunda barbárie dizendo que todos os pagãos irão para o inferno, porque, não tendo recebido o batismo, não podem fazer nada que seja bom.
Mas com São Jerônimo começa uma evolução delirante, que deve ser explicada muito bem e ser bem compreendida, porque é antologia. É desenvolvido em três fases:
1) Jerônimo oscila, ao longo de sua vida, em duas posições: um inferno com fogo físico, e seu retorno à versão anterior, espiritual.
2) Finalmente, Jerônimo estabelece esta teoria: a versão espiritual do arrependimento é a verdade. Mas não interessa explicá-la ao povo. Ele precisa de algo que coloque mais medo, para mantê-los mais ou menos no ‘bem’. Nós devemos pregar um inferno de fogo, que queima.
3) À medida que entramos no quinto século, há um fenômeno psicológico incrível: os sucessivos pensadores acabam, todos, acreditando naquela mentira oficial, que era para se contar ao povo. E já não se falará mais sobre um inferno espiritual.
No século V, Santo Agostinho culminará essas concepções aberrantes e anticristãs. Essa super-heresia, além de afirmar a natureza física do inferno e sua eternidade, assegura que todos os pagãos, ainda não evangelizados, estarão condenados a ela, isto é, a grande maioria da humanidade. Eles serão condenados... as crianças mortas sem batismo... (Garanto que isso é Georges Minois quem diz, que ninguém imagine que eu digo isso, porque eu não posso acreditar, mas Minois diz isso). E, naturalmente, todos os cristãos que se obstinem no pecado também irão. E este homem foi santificado, e não apenas santo, que já está feito, mas ele é considerado uma das mentes mais brilhantes da história do cristianismo (Pois, vai que...).
Frente a esta avalanche de mentiras e absurdos, uma Igreja oficial já notavelmente divorciada do Evangelho, cede à nova onda, muito rápido: antes do final do século IV, mesmo antes de a mensagem assustadora de Santo Agostinho. No final do quarto século, e sob a autoridade do papa Dâmaso, é publicado um Credo que, entre as coisas mencionadas como crenças (é a função de um credo), já inclui a frase terrível de "suplícios eternos". Foi o essencial: suplícios e eternos. No entanto, ainda se pode dizer que, por um lado, era uma frase que incluía o essencial, mas ainda não era um documento completo, descrevendo "todo" o fenômeno. E por outro lado, foi promovido por um papa, não por um concílio. Por sua autoridade...
E durante esta longa fase histórica (Antiguidade) as coisas não foram além. Pois, embora quase dois séculos mais tarde (ano 543), o Concílio de Constantinopla condenou a doutrina chamada de "atenastase" (palavra que significa: segurança de uma, na qual inclusive o demônio, ao fim, voltaria a Deus). Ao condenar essa bela teoria, condenou-se uma coisa boa, mas não se aprovou nada de concreto.
Permanecemos, então, com uma frase terrível, mas ainda não parte de uma doutrina plena e coerente, baseada em uma autoridade forte. E, paradoxalmente, essa má frase deveu-se a um papa, Dâmaso I, de quem se diz (mas não inteiramente seguro) que era catalão, nascido na cidade de Argelaguer (Garrotxa). Que vergonha para nós! O primeiro papa herege!
A fase de reflexões na esfera monástica, durante toda a Idade Média, é indicada abaixo. Mas, para simplificar, não quis segui-la e pulei para a terceira fase, a dos grandes teólogos (considerados) dos séculos XII e XIII. E singularmente São Tomás de Aquino. E será o desastre final.
Esses teólogos não acrescentaram mais penalidades à doutrina do inferno, porque não poderia haver mais. Mas eles se dedicaram a fazer uma série de precisões, como se quisesse dizer, para desenhar a "cultura do inferno": Distinguir entre pecado mortal e pecado venial, e que somente o primeiro condenou o inferno. E a Igreja, com confissão, tinha a chave do inferno ou do paraíso. Mais coisas: Após a morte, o "julgamento particular" ocorre, o qual ele já decide, de modo que o Julgamento Final não é nada mais que um tipo de cerimônia oficial de uma coisa já decidida. E ainda: os condenados sofrem duas penas: a penalidade do "sofrimento" (não poder ver Deus) e a penalidade do "sentido" (a queima de fogo). Essa punição é apenas para aqueles que morrem em pecado mortal. Os não-batizados, os filhos e os pagãos não vão para o inferno, mas para o limbo, onde não sofrem nenhum tipo de tormento físico (São Tomás, apesar de tudo, era muito mais inteligente que Santo Agostinho).
Mas a pior característica desses teólogos era que, em suas reflexões, Deus sempre aparecia como JUIZ, e inclusive como juiz e como parte, porque pecados eram cometidos contra ele (contudo, Cristo sempre nos apresentou como “pai”...).
E agora a Igreja oficial se entregou completamente ao inimigo. No ano de 1201, o papa Inocêncio III afirmou a existência da pena de sofrimento e a de sentido. Isso quer dizer: o sofrimento do inferno. E, muito em breve, em 1215, o Concílio de Latrão afirma a eternidade das penas. Já tínhamos tudo (bem estropiado). Mas ainda parecia que eles aprovaram por partes, como se eles não quisessem assustar demais.
Mas dois séculos depois, no Concílio de Florença, 1439, agora já uma Igreja plenamente-renascentista, rica, forte, que gosta muito de arte, mecenas generosos nesse sentido, que tinha todas as condições que podem querer a Igreja, menos ser cristã, se aprovou a grande declaração, aquela que não deixou mais nenhum tipo de dúvida, que dizia tudo, tudo de ruim que podia ser dito. A declaração vergonhosa, toda ela herética, sem nem uma palavra que dizia a verdade, rezava assim:
"A Santa Igreja Romana crê firmemente, confessa e proclama que ninguém fora da Igreja Católica, nem pagão nem judeu, nem descrente, nem ninguém que está separado da unidade, terá parte na vida eterna, e, pelo contrário, cairá dentro do fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos, se não voltar a ela antes de morrer”
Porém, para acabar a triste história, lembre-se que esta Igreja, é aquela que, depois de quatro dias (cerca de 80 anos), apodrecida de vícios e escândalos, seria a principal causa da divisão dos cristãos/as (que ainda dura).
Já deixando o assunto, mas não inteiramente, eu estava curioso para saber algo sobre o "campeão do inferno": o papa Inocêncio III. Como vimos, ele aprovou, sozinho, a doutrina das penas e, em concílio, a eternidade delas. Sua crônica alarga meia coluna da Enciclopédia Catalã, e não sabemos quem assina, porque é uma sigla, mas como geralmente acontece nestes casos, não diz uma palavra sobre essas decisões monstruosas. Para o cronista, elas não deveriam importar. Em vez disso, ele menciona todas as suas intervenções políticas, que eram muitas, e também menciona sua outra grande barbárie: a cruzada contra os cátaros (que sabemos que não eram nenhuma maravilha, mas muito melhor do que a Igreja de Inocêncio).
Segundo o cronista, não seguindo seu critério, mas sim o meu, Inocêncio III, em 18 anos, só fez uma coisa boa, o escritor explica em menos de uma linha: "Ele apoiou as ordens mendicantes." Para não iniciados, refere-se franciscanos e dominicanos, que foram a única coisa boa que a Igreja teve naqueles séculos escuros, e foram, na verdade, uma reação evangélica a Inocêncio et alii. Para o cronista... menos de uma linha. Todo um exemplo de papa e todo um exemplo de cronista.
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A crença no mito do inferno é a maior aberração da história da humanidade. Artigo de Antoni Ferret - Instituto Humanitas Unisinos - IHU