28 Junho 2019
A complementaridade não é nem bíblica nem biológica. A igreja deve prestar atenção à experiência das pessoas LGBTQ+ e não pode simplesmente ignorar as alegações científicas porque se mostram inconvenientes para a preservação e transmissão da doutrina
O artigo é de Paul J. Schutz, professor assistente no departamento de estudos religiosos na Santa Clara University, publicado por National Catholic Reporter, 24-06-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Aproximadamente oito anos atrás, quando eu me graduei na Fordham University, eu encontrei uma pessoa transgênero pela primeira vez na vida. Fordham estava recebendo uma conferência intitulada “Mais que um Monólogo: Diversidade sexual e a Igreja Católica”. A ativista católica transgênero Hilary Howes abriu a conferência com um compilado sobre a sua vida, nascida mulher “com genitais masculinas e cérebro feminino”. Eu tive a chance de falar mais com Hilary na recepção depois do evento e saí convencido da autenticidade da sua experiência.
Antes de ouvir Hilary falar, eu nunca tinha encontrado uma pessoa trans – e para ser honesto, eu nunca pensei realmente sobre a experiência trans, a qual eu apostaria que é o caso da maioria dos católicos. A narrativa de Hilary de sofrimento e lutas com sua autocompreensão em uma igreja que não vê sua experiência como resultado de uma genuína experiência de conversão, enquanto escuto e me ponho em diálogo com uma pessoa que ama sua igreja apesar de todas intempéries abriu minha mente e coração para novas formas de entender o sexo, gênero e sexualidade.
Apesar desse compromisso declarado de escuta e diálogo, a Congregação para a Educação Católica, com o documento “Homem e Mulher os criou: Para uma via de diálogo sobre a questão de gender na educação”, nega a experiência de pessoas como Hilary Howes para impor de cima para baixo a antropologia complementar tradicional, encontrada nos documentos do Vaticano, como a Teologia do Corpo, de João Paulo II. Complementarmente, torna binárias as relações sexuais entre homens e mulheres – “homem e mulher os criou” – como medida do que significa ser humano.
Como alguém que colheu os benefícios e suportou os desafios da educação católica, e como professor em uma instituição jesuíta, estou muito preocupado com a instrução - e sobre o que poderia sugerir para futuras declarações do Vaticano sobre gênero.
Nesta coluna, gostaria de destacar três áreas de preocupação sobre a instrução - uma científica, uma bíblica e uma pastoral - na esperança de desafiar católicos de todos os tipos a celebrarem a diversidade da expressão de gênero dada por Deus, com atenção compassiva à experiência de pessoas como Hilary Howes.
Primeiro, como acadêmico que trabalha na interseção entre teologia, ecologia e ciência, tenho sérias preocupações sobre os apelos que a instrução faz à biologia. A instrução descreve a expressão não-binária e transgênero como aspectos de uma teoria de gênero "estritamente sociológica". Para apoiar esta afirmação, apela para uma biologia binária baseada na distribuição de cromossomos XX e XY: as crianças nascem femininas ou masculinas e as alegações de que pessoas intersexuais ou transexuais existem são falsas expressões da "ideologia de gênero".
Mas a medicina e a psicologia contradizem as afirmações da instrução. Em 2017, a American Medical Association, ou AMA, afirmou que o gênero é "incompletamente entendido como uma seleção binária". Também apoia terapias e cirurgias de "confirmação de gênero" que afirmam a identidade de gênero de uma pessoa como experimentada - muito além das terapias de realinhamento para as quais a instrução chama.
Em 2013, a American Psychiatric Association, ou APA, renomeou "transtorno de identidade de gênero" como "disforia de gênero" em seu Manual de Diagnóstico e Estatística, interpretando a experiência de pessoas como Hilary Howes não como uma doença a ser curada, mas como uma condição genuína para ser acompanhada e tratada com terapias e cirurgias de acordo com o auto-entendimento de uma pessoa.
O apelo da instrução à ciência binária de gênero não resiste ao consenso científico contemporâneo. Este ponto parece especialmente problemático, dado que a AMA e a APA são organizações de especialistas científicos com o treinamento para julgar adequadamente essas questões; confiar na ciência de gênero do Vaticano é como confiar no diagnóstico de diabetes de um padre da paróquia.
Segundo, como o título indica, a instrução vê modelos não-binários de gênero como contrários à natureza, segundo as narrativas da criação do Gênesis. Mas essa afirmação entra em conflito direto com o apelo de João Paulo II por "intenso diálogo" entre fé e ciência e sua declaração de 1996 de que "não há conflito entre a evolução e a doutrina da fé em relação ao homem e sua vocação". Pois, se a teoria evolucionista limita a influência do Gênesis como uma explicação das origens cósmicas - aceitando que o universo não foi criado em sete dias - então o magistério não pode sustentar que o mesmo texto é determinante para o gênero quando o consenso científico disser o contrário. Isso por si só deve ter peso suficiente para levantar preocupações sobre os mandados bíblicos de complementaridade, mas a instrução prossegue sem referência a essas preocupações. Talvez o gênero seja uma área na qual, compatível com o que atesta João Paulo II, a ciência pode “purificar a religião do erro e da superstição".
Terceiro, enquanto a instrução se opõe explicitamente à violência - incluindo o bullying nas escolas - contra pessoas LGBTQ+, a caracterização da expressão não-binária de gênero como uma escolha rebelde baseada em "sentimentos e desejos" impõe injustiça contra aqueles que, como Hilary Howes, buscaram o reconhecimento em uma igreja que se recusa a reconhecer sua existência. A instrução parece cega para as lutas sociais e eclesiais que as pessoas LGBTQ+ enfrentam todos os dias - lutas inimagináveis para pessoas heterossexuais e cisgêneras que dominam a igreja e o mundo.
Estatísticas assustadoras desafiam a afirmação da instrução de que experiências trans e não-binárias são questões de escolha e indicam a cumplicidade da igreja na violência contra pessoas LGBTQ+, especialmente dada sua presença em países que criminalizam a expressão trans e atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo.
Por exemplo, de 2007 a 2014, uma média de 250 pessoas trans foram assassinadas a cada ano e 369 pessoas trans e não-binárias foram mortas entre outubro de 2017 e setembro de 2018, no mundo. A maioria são mulheres trans negras e muitas morrem por meios violentos. Além disso, quase 80% dos adolescentes trans e não-binários relatam ter tentado o suicídio, pois lutaram para superar suas identidades de gênero.
Dadas essas estatísticas, a expressão de gênero trans e não-binária claramente não é "apenas uma exibição" provocativa contra os chamados "quadros tradicionais". "Parece que a rejeição do magistério às experiências trans e não-binárias serve como uma rebelião contra a natureza, apenas para encerrar as conversas sobre gênero antes de começar, e bodes expiatórios da comunidade LGBTQ+ para sustentar a complementaridade, negando a necessidade de cuidado pastoral autenticamente engajado com as lutas que as pessoas LGBTQ+ enfrentam a cada dia.
Mas a complementaridade não é nem bíblica nem biológica. A igreja deve prestar atenção à experiência das pessoas LGBTQ+ e não pode simplesmente ignorar as alegações científicas que se mostram inconvenientes para a preservação e transmissão da doutrina. Em nome do amor proclamado por Jesus - um amor vivido todos os dias por católicos trans como Hilary Howes, que buscam justiça para os marginalizados na igreja e na sociedade - devemos abraçar a maravilhosa diversidade selvagem de todas as belas criaturas que nosso Deus criou.
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Uma resposta ao documento vaticano “Homem e Mulher os criou” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU