22 Junho 2019
“Há duas coisas sobre as quais existe um consenso. Primeiro, que continuar no caminho atual do capitalismo financeiro pouco regulamentado levará a outra catástrofe financeira, talvez uma pior do que a crise de 2007-2008. Em segundo lugar, que se afastar desse caminho para a ruína exigirá assumir e romper o poder do capital financeiro”, escreve Walden Bello professor adjunto internacional de Sociologia na Universidade Estatal de Nova York, em Binghamton, e pesquisador associado do Transnational Institute (TNI), em artigo publicado por Ctxt, 19-06-2019. A tradução é do Cepat.
Nos últimos 30 anos, o capital financeiro se tornou dominante nas principais economias capitalistas, superando a elite industrial em poder e influência. Essa evolução levou o setor produtivo a ficar cada vez mais sujeito à dinâmica volátil do setor financeiro.
A centralidade das finanças na atual economia mundial é evidenciada pela crescente frequência de grandes crises financeiras, que inevitavelmente são acompanhadas pelas recessões. Desde que se iniciou a liberalização dos mercados de capitais, durante a era Thatcher-Reagan, no início dos anos 1980, ocorreram ao menos 12 grandes crises financeiras. A mais recente foi a crise global de 2007-2008, que também causou o que hoje é conhecida como a Grande Recessão, da qual muitas das economias desenvolvidas ainda não se recuperaram.
Considera-se que o processo e a característica mais marcante do capitalismo contemporâneo é a financeirização. No tempo de Marx, a financeirização como um mecanismo chave para criar lucros era considerada uma aberração periódica. Nos últimos anos, no entanto, se tornou a maneira dominante de extrair lucros. Como isso aconteceu?
A financeirização deriva essencialmente da crise de produção iniciada no final dos anos 1970. Isso tomou a forma de uma crise de superprodução que atingiu a economia capitalista global, depois dos chamados trinta anos gloriosos de expansão, após a Segunda Guerra Mundial.
A superprodução tinha suas raízes na rápida e bem-sucedida reconstrução econômica da Alemanha e do Japão e no rápido crescimento das economias em vias de industrialização, como Brasil, Coréia do Sul e Taiwan. Isso agregou uma enorme capacidade produtiva e aumentou a competição global, ao passo que a desigualdade de renda dentro e entre os países limitou o crescimento do poder de compra e a demanda efetiva. Essa crise clássica de superprodução - ou subconsumo, para usar a formulação de Paul Sweezy - levou a uma queda na lucratividade.
Houve três saídas para a crise de rentabilidade sofrida pelo capital: a reestruturação neoliberal, a globalização e a financeirização.
A reestruturação neoliberal significava essencialmente redistribuir a renda da classe média aos ricos para encorajar os últimos a investir na produção.
A globalização da produção implicava a localização de instalações de produção em países com baixos salários para aumentar a lucratividade.
Embora essas duas estratégias tenham ocasionado um aumento da lucratividade, em curto prazo, em médio e longo prazo, foram contraproducentes, uma vez que causaram uma queda na demanda efetiva, cortando ou impedindo o aumento dos salários dos trabalhadores.
Isso nos deixa a financeirização, que tinha uma série de aspectos-chave, mas há que destacar três.
Em primeiro lugar, a financeirização implicava a criação massiva de endividamento da população para substituir a renda estagnada, a fim de criar demanda por bens e serviços. Grande parte dessa dívida foi financiada pela injeção de dinheiro emprestado pelos governos asiáticos, reciclando dinheiro para os Estados Unidos procedente dos excedentes comerciais que desfrutavam com este último.
A principal via foi através da provisão dos chamados empréstimos habitacionais de alto risco para uma grande parte da população. Esses eram empréstimos concedidos indiscriminadamente a compradores de casas com pouca capacidade de pagamento, de modo que eram essencialmente bombas-relógio.
Em segundo lugar, a financeirização implicava as chamadas inovações em engenharia financeira que facilitariam a liquidez. Um dos mais importantes - e, em última instância, o mais danoso - foi a securitização, que consistia em fazer com que os contratos tradicionalmente imóveis, como hipotecas, fossem líquidos ou móveis e negociáveis. As hipotecas securitizadas, que podiam ser negociadas, levariam ao desaparecimento da original relação credor-devedor.
Além disso, a engenharia financeira permitiu fazer com que a hipoteca de alto risco original fosse combinada com hipotecas de melhor qualidade e que fossem vendidas como títulos mais complexos. Mas, mesmo quando os títulos hipotecários se combinavam e recombinavam e eram negociados de uma instituição para outra, não podiam escapar de sua qualidade subjacente.
Quando milhões de proprietários de hipotecas de alto risco já não podiam mais arcar com seus pagamentos devido a sua baixa renda, essa evolução se espalhou como uma reação em cadeia aos bilhões de títulos hipotecários que foram negociados em todo o mundo, prejudicando sua qualidade e levando à falência aqueles que possuíam quantidades significativas deles, como o banco de investimento de Wall Street, Lehman Brothers.
Os títulos garantidos por hipoteca (MBS, mortgage-backed security) foram apenas um exemplo das inovações da engenharia financeira, conhecidas como "derivados", que tinham por objeto facilitar a liquidez, mas que acabaram encorajando empréstimos massivos na frágil suposição de capital ou riqueza real.
Operadores de mercado caracterizados por uma alta proporção de dívida e capital próprio foram descritos como "altamente alavancados". O alto nível de alavancagem de Wall Street antes da crise foi demonstrado pelo fato de que o valor do volume total de instrumentos financeiros de derivativos foi estimado em 740 trilhões, em comparação com um PIB global de 70 trilhões de dólares.
Os matemáticos contratados pelas instituições de Wall Street formularam as equações mais complexas para encorajar a ilusão de qualidade quando, na realidade, os valores repousavam sobre ativos de valor questionável.
A terceira característica fundamental da financeirização foi que muitos dos operadores, instituições e produtos-chave que estavam na vanguarda do processo, não estavam regulamentados ou eram mal regulamentados. Assim surgiu o chamado "setor bancário paralelo", junto ao setor bancário tradicional regulamentado, com instituições financeiras não tradicionais como Goldman Sachs, Morgan Stanley e American International Group (AIG), que serviram como a primeira onda massiva de um tsunami que trouxe consigo a introdução de securitização, engenharia financeira e novos produtos, como os MBS, as obrigações de dívida colateral (CDO) e os swaps de inadimplência de crédito (CDS).
A implosão das hipotecas de alto risco de 2007 revelou a dinâmica essencial da financeirização como o motor da economia, isto é, que dependia da criação e inflação de bolhas especulativas. A obtenção de lucros se baseava na criação de uma dívida massiva com uma base muito fraca sobre o valor real ou sobre o capital.
Enquanto persistia a ilusão de que os MBS eram valores sólidos, Wall Street funcionava como um cassino, com investidores usando diferentes produtos financeiros para apostar nos movimentos dos valores dos ativos e seus produtos derivados para fazer uma fortuna.
Um massacre significava comprar títulos pelo "preço certo" no "momento certo" e, depois, vendê-los assim que o preço subisse significativamente e antes que diminuíssem. No entanto, uma vez que os acontecimentos expuseram os fundamentos frágeis dos títulos de alto risco, os operadores do mercado entraram em pânico e saíram correndo para vender seus ativos o mais rápido possível para recuperar algo de valor, um processo que acelerou o colapso dos títulos em um nível negativo.
Quando Barack Obama se tornou presidente dos Estados Unidos, em 2008, uma de suas prioridades era consertar o sistema financeiro global. Dez anos depois, é evidente que, devido a uma combinação de timidez por parte do Governo e resistência por parte do capital financeiro, pouco foi reformado, apesar dos compromissos de alto nível com a reforma financeira global assumida pela Cúpula do Grupo dos 20, em Pittsburgh, em 2009.
Em primeiro lugar, o problema de "muito grande para quebrar" piorou. Os grandes bancos, que foram socorridos pelo governo dos Estados Unidos, em 2008, se tornaram ainda maiores e os "seis grandes" bancos estadunidenses - JP Morgan Chase, Citigroup, Wells Fargo, Bank of America, Goldman Sachs e Morgan Stanley – possuem, coletivamente, 43% a mais de depósitos, 84% a mais de ativos e três vezes mais dinheiro do que antes da crise de 2008. Essencialmente, duplicaram o risco que derrubou o sistema bancário em 2008.
Em segundo lugar, os produtos que desencadearam a crise de 2008 continuam sendo negociados. Isso incluía cerca de 6,7 trilhões de dólares em títulos respaldados por hipotecas, cujo valor se manteve só porque a Reserva Federal comprou 1,7 trilhão de dólares. Os bancos estadunidenses possuem coletivamente 157 trilhões de dólares em derivativos, aproximadamente o dobro do PIB mundial. Isso é 12% a mais do que possuíam no início da crise de 2008.
Em terceiro lugar, as novas estrelas do firmamento financeiro - o consórcio de investidores institucionais composto por fundos de cobertura, fundos de capital de risco, fundos soberanos, fundos de pensão e outras entidades de investimento – continuam recorrendo à rede mundial sem controle, operando a partir de bases virtuais denominadas paraísos fiscais, buscando oportunidades de arbitragem em moedas ou valores, e dimensionando a rentabilidade das empresas para possíveis compras de ações. A propriedade dos cerca de 100 trilhões de dólares nas mãos desses refúgios fiscais flutuantes para os grandes ricos se concentra em 20 fundos.
Em quarto lugar, os operadores financeiros estão acumulando lucros em um mar de liquidez proporcionado pelos bancos centrais, cuja liberação de dinheiro barato para acabar com a recessão como consequência da crise financeira levou à emissão de trilhões de dólares de dívida, elevando o nível global da dívida para 325 trilhões de dólares, mais de três vezes o tamanho do PIB mundial. Há um consenso entre os economistas de todo o espectro político de que esse aumento da dívida não pode continuar indefinidamente sem causar uma catástrofe.
Em quinto lugar, em vez de controlar mais de perto o setor financeiro, alguns países seguiram as economias capitalistas avançadas para liberalizá-lo. Na China, a segunda maior economia do mundo, isso criou uma perigosa conjunção de fatores que podem levar a uma implosão financeira: um mercado de valores volátil, uma bolha imobiliária e um setor bancário paralelo não regulamentado. O número de pontos vulneráveis na economia mundial aumentou e todos são candidatos à próxima grande crise.
O que é necessário fazer?
Em um estudo recente, patrocinado pelo Transnational Institute, que será publicado no final deste ano, apresento uma justificativa detalhada de 10 imperativos importantes para o setor financeiro global. São estes:
1. Restringir as operações dos fundos de capital de risco e fechar os paraísos fiscais;
2. Proibir títulos respaldados por hipotecas e derivativos;
3. Avançar para um banco de reserva de 100%;
4. Nacionalizar instituições financeiras que são muito grandes para quebrar;
5. Reinstituir a Lei Glass-Steagall que colocou uma "muralha chinesa" entre o banco comercial e o banco de investimento;
6. Colocar limites drásticos na remuneração dos executivos;
7. Eliminar gradualmente as agências de classificação de crédito, como Moody's e Standard and Poor;
8. Convocar uma nova Conferência de Bretton Woods para estabelecer novas instituições e regras para a governança financeira global, acabar com o monopólio do dólar como moeda de reserva global e estabelecer acordos novos e justos para o desenvolvimento e financiamento do clima;
9. Fazer com que os bancos centrais prestem contas;
10. Avançar para a plena união política, fiscal e monetária nos países da zona euro ou sair do euro.
As medidas propostas constituem um "programa mínimo" ou um conjunto de medidas que reforçam as defesas mundiais contra outra crise financeira, embora não eliminem a possibilidade de tal coisa acontecer.
O capitalismo como um sistema é estruturalmente propenso a gerar crises financeiras, e o programa descrito acima pressupõe um sistema econômico global que continua funcionando sob suas regras. A implementação bem-sucedida dessas reformas seria um passo gigantesco em um processo mais longo de mudança transformadora.
No entanto, essa mudança não pode ocorrer sem abordar fundamentalmente outras dimensões-chave do capitalismo, especialmente sua força motriz: o desejo insaciável de obter lucros cada vez maiores.
Para alguns, a necessidade mais urgente é como reformar o capitalismo. Em sua opinião, um programa de reforma financeira teria que ser integrado a um programa mais amplo de reforma drástica do capitalismo. Tal iniciativa teria que lidar seriamente com a falta de demanda enraizada na crescente desigualdade. Teria que reconhecer corajosamente suas raízes nas relações desiguais de poder entre capital e trabalho, como esse poder desigual se traduz em uma crescente desigualdade e como a desigualdade se traduz em uma demanda anêmica que freia a expansão da produção.
Para outros, a situação exige uma solução para além de uma reforma do capitalismo, inclusive de tipo keynesiano radical. Desse ponto de vista, a busca constante por lucratividade é uma fonte fundamental de instabilidade que, em última instância, minará todos os esforços em reformá-lo.
Além disso, o que precisa ser tratado não é apenas a desigualdade social e a falta de demanda, mas o impulso do sistema produtivo em crescer às custas da biosfera. O que é necessário, dizem, é um programa pós-capitalista, ainda mais urgente pela catástrofe climática que está ocorrendo. De fato, em alguns círculos, uma estratégia decrescente é considerada cada vez mais necessária.
Em meio a esse debate cada vez mais acalorado sobre sistemas alternativos, há duas coisas sobre as quais existe um consenso. Primeiro, que continuar no caminho atual do capitalismo financeiro pouco regulamentado levará a outra catástrofe financeira, talvez uma pior do que a crise de 2007-2008. Em segundo lugar, que se afastar desse caminho para a ruína exigirá assumir e romper o poder do capital financeiro.
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O capitalismo financeiro prepara a recessão 2.0. Artigo de Walden Bello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU