24 Mai 2019
No evangelho de hoje, como no de domingo passado, lemos algumas das últimas palavras de Jesus antes da Paixão. Aos seus amigos, Jesus promete o Espírito Santo e a paz; a sua paz! Na 1ª leitura, temos um debate salutar: por unanimidade, a comunidade de Jerusalém rejeita a proposta de alguns judeus que querem impor a circuncisão também aos pagãos. O Espírito, “Defensor” prometido por Jesus, da mesma forma que este, pedagogo universal, são partes interessadas nesta decisão. Evangelizar os pagãos é a tarefa a ser perseguida.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 6º Domingo de Páscoa - Ciclo C (26 de maio de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas:
1ª leitura: «Decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além do que é indispensável» (At 15,1-2.22-29).
Salmo: Sl. 66(67) - R/ Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor, que todas as nações vos glorifiquem!
2ª leitura: «Mostrou-me a cidade santa, Jerusalém, descendo do céu» (Apocalipse 21,10-14.22-23).
Evangelho: «O Espírito Santo vos ensinará e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito» (João 14,23-29).
Jesus passou com seus amigos os últimos momentos de sua vida, do mesmo modo, ao menos, que o conhecido por nós em nossas mútuas relações. Daí em diante, não será mais assim. Ele partiu e, no entanto, não se ausentou. Um paradoxo! “Vou, mas voltarei a vós.” Virá junto com o Pai fazer sua morada naqueles que o amam.
Mas o que é amar a Cristo? É permanecer fiel à sua palavra. Jesus reside, pois, em todos os que guardam a sua palavra. Qual palavra? O "novo mandamento" que ele nos deixou. O mandamento que substitui todos os outros, porque contém todos eles: amar-nos uns aos outros. Nosso amor ao Cristo se materializa, se assim se pode dizer, em nosso amor ao "próximo". Aprendemos que fazemos alguém ser nosso próximo na medida em que dele nos aproximamos (Lucas 10,29 e 36-37). Transformar o outro num próximo nosso é mantermos a mesma conduta assumida pelo Verbo quando se fez carne, só que, neste caso, num grau e num sentido inimagináveis.
Desde então, a humanidade toda é presença do Cristo. Tornar-nos próximos uns dos outros é nos tornarmos próximos de Cristo, numa coabitação mútua. É deste modo que Deus, os outros e cada um de nós entramos na mais estreita união de um Corpo único. O Deus Uno é quem realiza a unidade. E Ele une porque é em Si mesmo União, conforme diz Santo Inácio de Antioquia em sua carta aos Tralianos. Sim, mas para que esta união se faça requer-se de nós a nossa liberdade.
O dom da sua carne e do seu sangue realizado por Cristo não foi simplesmente simbólico, «sacramental», mas «materialmente» vivido, uma vez que Jesus se entregou à violência que envenena as relações humanas, a fim de atravessá-la e vencê-la. Hoje, pelas mídias, somos informados diariamente desta violência que ignora e elimina o amor, ignorando e eliminando, portanto, o próprio Deus.
Isto foi exatamente o que se passou na Cruz e o que os discípulos tiveram de enfrentar, assim como, de diversas maneiras, também nós. O que quer que nos aconteça, devemos ouvir as palavras de Jesus aos seus discípulos, imediatamente antes de sua Paixão, como se dirigidas diretamente a nós mesmos, pessoalmente. Ele está a nos dizer que nos deixa a paz, que a sua paz ele nos dá.
Não está, portanto, a nosso encargo, produzirmos nós mesmos esta paz; cabe-nos somente aceitá-la, recebê-la. Como? Pela fé neste Jesus que atravessou primeiro o sofrimento e a morte, para aceder a uma vida toda nova. Se ele disse aos apóstolos que não se perturbassem, foi precisamente porque as certezas todas que tinham a seu respeito e referentes ao que viera a cumprir neste mundo serão abaladas.
Eles não mais o reconhecerão. Não devemos, pois, acrescentar ao medo do que nos possa acontecer um segundo medo: o de ver a nossa fé se eclipsar. A paz que o Cristo nos dá deve ser vivida com frequência sob a forma de espera. Espera que deve tornar-se confiante e que nos leve, enfim, à «ressurreição» da nossa atitude de tudo superar: uma espera que anuncie e que prefigure a nossa última ressurreição. O que nada tem a ver com a paz que o mundo eventualmente pode nos oferecer e que se apoia, não sobre a fé em Cristo, mas sobre a previsão por demais otimista de acontecimentos incertos. A última palavra do evangelho é um convite à alegria, porque tudo o que pode acontecer em nossas vidas é usado por Deus para nos unir a Ele, que é Vida e Amor. «Eu vou para o Pai...»
Enquanto esperamos, o Espírito está aqui, fazendo-nos recordar e compreender tudo o que Jesus nos disse. Estamos, pois, em trânsito, e o nosso presente só ganha sentido através deste futuro que sequer podemos imaginar, mas para o qual somos conduzidos desde que, no entanto, aceitemos acolher sua promessa. Com efeito, nada se constrói sem o Espírito. Assim como nada de bom se dá em nossas vidas sem a nossa participação.
Por isso, uma vez mais, estamos na presença desta categoria de Aliança que é o fundamento de toda a Escritura. O que se explica pelo fato de que, em certo sentido, como dissemos, Deus é em Si mesmo Aliança. Em Deus, esta palavra Aliança atinge o cume do seu significado: Unidade ou União - dizemos «Trindade». Se bem entendido, encontramos tudo isso referido à Igreja, palavra que significa «assembleia», Aliança de seres humanos de todos os países, de todas as línguas, de todas as culturas. Aliança que chega até a fazer de todos nós um só Corpo, conforme a definição bíblica da Aliança matrimonial.
Por isso, neste discurso de depois da última Ceia, Jesus nos fala tanto no amor como o único e o último «mandamento». Este de qualquer forma é o seu testamento. É o amor que, de fato, nos reúne em assembleia. Por isso somos convidados a, uma vez cada sete dias - cifra que significa a totalidade – reunirmo-nos para partilhar o pão, o mesmo gesto que Jesus acaba de cumprir. Um só pão, um só corpo. Nós nos tornaremos o que recebemos: um corpo entregue por amor, e o repartimos entre nós sob a palavra de também nos darmos uns aos outros em memória dele. Por isso o seu Espírito vem nos habitar, permitindo-nos realizá-la.
Sim, mas um “até a volta” que é um “a-Deus”. Daí em diante, encontraremos Jesus somente em sua presença divina, esta habitação de “Deus em nós” através do seu Espírito. O Espírito nos dá a palavra, a sua Palavra, ou seja, o próprio Cristo. A presença deste Outro em nós é permanente e podemos buscá-la, frequentá-la incessantemente. O Cristo em nós escuta as palavras que lhe dirigimos. Mais ainda, ele toma conhecimento de tudo o que sentimos, desejamos e experimentamos. E nos responde. As suas respostas não são materialmente audíveis, mas, pelo Espírito, elas nos vêm ao espírito. A esta frequência íntima é que se dá o nome de «vida espiritual». Vida espiritual que se perverte um pouco quando a abertura para o Outro não se traduz imediatamente em abertura para os outros.
De fato, o Espírito é espírito de amor e onde não há amor há a interdição de que Deus nos habite. Por isso é necessário discernir, distinguir os sentimentos, as pulsões e os impulsos que nos visitam; a palavra de Cristo deve nos abrir um caminho em meio ao burburinho da multidão de palavras estranhas e muitas vezes mentirosas. Mas devemos ter confiança, que Ele é quem sempre tem a última palavra. Compreendamos que jamais estamos sós. Podemos considerar esta atual presença de Cristo como intermediária: ela nos encaminha para uma presença total da qual estamos sempre na espera: uma presença não só para o nosso espírito, na fé, mas também para os nossos sentidos. É o que significa, entre outras coisas, a «volta de Cristo» no final dos tempos: o fim desta espera.
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Jesus promete o Espírito e a sua paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU