24 Março 2019
Uma das primeiras intuições de Ágnes Heller foi descrever o quanto a vida cotidiana muda dependendo do pensamento político, dominante ou não. Sua vida é um todo, um tumulto de ideias, uma busca de conexões, explicações e contradições, ideias imperfeitas, impuras, que nunca acabam se tornando hiper-racionais, porque é justamente na hiper-racionalização da ideia ou, melhor, da ideologia que está o nascimento do momento histórico que estamos vivendo, e que Heller relata no seu último livro trazido para a Itália pela editora Castelvecchi, intitulado “Orbanismo, il caso dell’Ungheria: dalla democrazia liberale alla tirania” [Orbanismo, o caso da Hungria: da democracia liberal à tirania]. Porque tudo começou lá. Foi lá que um homem, Viktor Orbán, que fazia discursos liberais e fortemente europeístas, iniciou uma contrarrevolução que, ao longo dos anos, encontrou um seguidor atrás do outro, da Polônia à França, da Áustria à Itália.
A reportagem é de Micol Flammini, publicada por Il Foglio, 21-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Não sei dizer por que tudo começou em Budapeste, mas sei por que aconteceu em Budapeste”, diz a filósofa ao Il Foglio. “Depois do fim da União Soviética, perdemos a oportunidade de fazer a democracia crescer. Partidos que não tinham experiência democrática, homens que haviam lutado contra o regime durante o período comunista assumiram o governo, mas não se sabia nada sobre eles, o que eles pensavam não era importante.”
E assim foi também com Viktor Orbán. O Fidesz nasceu como um partido de esquerda, diz Heller em seu livro. Foi uma escolha quase brechtiana. Não podendo conquistar um poder significativo à esquerda, Orbán deslocou o poder para a direita, onde havia assentos livres. Revelando a sua natureza desde o começo, ele destruiu o partido e os outros que o ajudaram a se tornar primeiro-ministro.
“Os líderes deveriam criar as condições para um desenvolvimento democrático, a democracia não pode ser ensinada, devem ser criadas as condições para que os cidadãos possam aprender a agir democraticamente, e isso não aconteceu na Hungria.”
Nos vácuos políticos, nos momentos em que a democracia busca florescer, aparecem homens com um grande talento e uma forte vontade que se apossam desse vazio e agem para otimizar o seu poder, para aumentá-lo. “Para otimizar o próprio poder, Orbán humilhou o pluralismo. Na Hungria, tudo isso começou há muito tempo. Depois, ele sentiu a necessidade de otimizar ainda mais o seu poder e, então, começou a se impor para pregar que a União Europeia se tornasse semelhante à Hungria.”
Para isso, começou uma campanha difamatória contra Bruxelas, e recentemente o PPE, o Partido Popular Europeu, votou com 190 votos a favor e três contra, para suspender o Fidesz por tempo indeterminado, e um comitê avaliará depois das eleições europeias. “Mas não devemos confiar nas suas promessas. Ele deveria deixar o grupo”, diz Heller.
“Eu me autossuspendi – respondeu Orban com um discurso à noite –, o PPE trai os seus valores fundadores.”
Depois de anos de regime e libertação, uma libertação confusa, os governos da Europa oriental se esforçaram para canalizar todas as forças e as energias de uma política libertada. O substrato comum, as histórias que se tocam entregaram aos nossos anos o grupo de Visegrád, aquele núcleo impaciente e eurocético que tão facilmente decidiu eleger governos com tendências antidemocráticas.
É preciso dar um passo atrás, recorrer a Hannah Arendt, da qual Heller herdou a cátedra na New School for Social Research, em Nova York, e entender que a libertação ainda não é liberdade, e esse paradigma também marca a história da Hungria, assim como de quase todos os outros países do Leste Europeu. História que Heller divide em duas fases, duas passagens: da ditadura à democracia liberal, da democracia liberal à tirania.
“O tirano nunca se contenta com o poder que tem, e a Hungria é uma tirania baseada em uma pessoa que não nunca tem poder suficiente. Passo a passo, Orbán desconstruiu a democracia liberal, destruiu as instituições democráticas da libertação e criou as suas próprias. Substituiu a realidade pela ideologia, porque a realidade não tem nada a ver com o que acontece na Hungria.”
Entre as qualidades do tirano, está também a criação. O tirano modela, substitui, cria. Altera a realidade com a ideologia. Movendo as peças com as quais a Hungria pós-comunista tentou canhestramente estabelecer um sistema de democracia liberal, Orbán reinventou tudo e fez da nação uma democracia não liberal.
“Não chamem essa expressão de oxímoro – repreende-nos Ágnes Heller –, porque a força dessa democracia não liberal reside totalmente no fato de agir, de ser criada, de ficar de pé dentro de um sistema democrático.”
“Não é um oxímoro”, ela repete e balança a cabeça. “O conceito de democracia muda muitas vezes, mas a democracia não liberal é sempre democracia.”
A filósofa retoma: “Se um governo é eleito com a maioria dos votos e depois é reeleito, é definitivamente uma democracia, mesmo que se baseie, atue e comande através da tirania.”
Este é Orbán: um tirano eleito e legitimado pelos seus próprios húngaros. Assim como Vladimir Putin na Rússia, ou Erdogan na Turquia.
“Não é um oxímoro – ela repete e insiste –, a democracia não liberal é uma nova forma.”
No seu livro, Ágnes Heller fala de nacionalismos e os põe ao lado do adjetivo “étnicos”, para distingui-los do conceito de nação e de sentimento nacional, que nem sempre devem ter implicações negativas. São os nacionalismos étnicos que lentamente assumiram o controle de algumas nações europeias e que têm em comum um inimigo: a União Europeia.
Esses movimentos, partidos que iniciaram suas carreiras pregando sua saída da União Europeia, agora falam de reformas, e é nessa batalha que o futuro da Europa será travado. Enquanto isso, a palavra “exit”, que dominava a maioria dos programas eleitorais dos partidos nacionalistas desapareceu, “mas esses partidos continuam querendo a mesma coisa. Para que, reformar a União significa destruí-la. Se, antes, queriam abandoná-la, agora querem que ela desapareça”.
Para Ágnes Heller, o Brexit não pode ser comparado à inundação de Frexit, Nexit, Polexit, Italex e Honexit. Para os britânicos, a ideia de abandonar a União Europeia não nasceu de uma força política nacionalista. “Há um mal-entendido de fundo. A Grã-Bretanha não tem a mesma história que o restante do continente. Nesse sentido, nem sequer é Europa. Era um império, ainda é a Commonwealth. Eles nunca tiveram uma ditadura, ao contrário do que ocorreu em toda a Europa. Agora, ela está em um mais momento, mas não vive o risco de uma tirania, de ser dominada pelo nacionalismo étnico.”
O fato de ser uma monarquia é uma garantia para Londres e, para além do momento de vácuo e de confusão, do tempo que corre em busca de um acordo que não se encontra, segundo Heller, não podemos dar ao Brexit o mesmo significado que damos ao desejo de outras nações de irem embora da União Europeia.
“A tradição significa muitas coisas, e a Grã-Bretanha carece da tradição do nacionalismo étnico. Nenhum país anglo-saxão pode se tornar uma tirania, diz a tradição. Nem mesmo Donald Trump jamais poderá transformar os Estados Unidos em tirania.”
Mas veio dos Estados Unidos a ideia de unir todas as forças nacionalistas da Europa, de criar uma Internacional soberanista. “Sim, mas Steve Bannon não é europeu. É por isso que ele teve essa vontade”, precede-nos Ágnes Heller. O ex-estrategista de Trump, Steve Bannon, lançou o projeto chamado The Movement, para reunir todos os nacionalistas em um único grande movimento transnacional. Depois, ou por falta de entusiasmo ou porque a campanha de Bannon nunca foi realmente lançada, o The Movement permaneceu lá, entre os projetos, os “talvez” e os bichos-papões. Mas resta uma demanda, a união é, em si mesma, algo que os nacionalismos rejeitam, cada um combate por si mesmo, não estão dispostos a se entregar pelos outros.
“Por enquanto, eles têm um inimigo comum, a União Europeia e a democracia liberal. Enquanto não tiverem derrotado o inimigo, eles serão aliados. No momento em que ficarem satisfeitos, vão começar a lutar entre si, vão se esbofetear.”
O momento crucial serão as eleições europeias de maio, quando, provavelmente, mesmo que se unam em um único grupo, não conseguirão conquistar o Parlamento Europeu: “Eles precisam de um inimigo para combater, devem sempre combater contra alguém para ter uma identidade”.
Os nacionalismos étnicos também tiveram uma intuição à qual os partidos tradicionais ainda custam a alcançar. Eles entenderam a transformação da sociedade antes dos outros, aproveitaram-se dela, acompanharam-na. “Os partidos tradicionais estão em um momento terrível, estão perdidos, não conseguem entender o mundo em que vivem, não se adaptam à transformação de uma sociedade de classes para uma sociedade de massa, usam métodos antigos que não estão à altura da situação. Você não pode tratar o infarto com aspirina, e é isso que os partidos tradicionais estão fazendo agora. A Europa não está com gripe. Ela está tendo um ataque cardíaco.”
E suspira: “No passado, esses partidos tiveram sucesso e esperam poder recuperá-lo, repetindo as medidas do passado”. E, no momento, a única maneira de derrotar os orbanismos são as coalizões. Assim, por exemplo, estão fazendo na Polônia, onde os partidos da oposição se uniram para superar o PiS, o partido do governo.
Na Hungria, ainda não conseguem fazer isso: “Antes das eleições, no ano passado, eu chorei e gritei para pedir que os partidos se unissem, mas não o fizeram”. Tudo teria sido evitável, as lutas, as ameaças, certamente não o Brexit. Ele teria sido evitável se a União tivesse nascido como uma federação, se a Constituição não tivesse sido rejeitada: “Naquele caso, a França foi estúpida. Obstinaram-se e debruçaram-se sobre o conceito de laicidade”. A Holanda também rejeitou o projeto em 2005.
Estas eleições são outro ponto, outra virada, e, para a filósofa, é melhor não esperar de braços cruzados.
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Como derrotar os ''nacionalismos étnicos'' e os ''orbanismos''. Entrevista com Ágnes Heller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU