16 Março 2019
“Você não tem ideia de quantas injúrias antissemitas eu recebo todos os dias. Quando sou convidada pela TV ou sou entrevistada pelos jornais, elas aparecem às dezenas nos e-mails da transmissão ou nos sites da extrema direita.”
Psicanalista e historiadora, aluna de Jacques Lacan, professora da École Normale Supérieure de Paris, ex-filiada ao Partido Comunista Francês (PCF) e ativista em favor da independência da Argélia, Élisabeth Roudinesco abordou várias vezes o tema do antissemitismo. Ela fez isso, entre as suas inúmeras obras, no livro-entrevista com Jacques Derrida, “Quale domani?” [Que amanhã?] (Ed. Bollati Boringhieri, 2004) e no recente “Ritorno sulla questione ebraica” [Retorno sobre a questão judaica] (Ed. Mimesis, 2017).
A reportagem é de Guido Caldiron, publicada por Il Manifesto, 15-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em seu último livro, você explica que sempre existiram duas “Franças”, a que “inventou” o antissemitismo com Drumont, “o caso Dreyfus”, Vichy, e aquela que o combateu com Zola, Sartre, a Resistência. Como descreveria a situação hoje, diante do ressurgimento de retóricas e violências antissemitas?
Eu diria que a situação é grave, mas não tanto por causa de uma nova emergência, mas por causa da constância do fenômeno: mais do que ressurgir, o antissemitismo nunca desapareceu do panorama político e cultural francês. A verdadeira novidade é que estamos assistindo quase em toda a Europa, e não só no meu país, ao crescimento poderoso da extrema direita, e o ódio aos judeus é um componente fundamental da sua cultura.
Assim, na França, não nos limitamos mais a observar que Céline era um grande escritor, uma pena que mais tarde tenha se tornado antissemita, mas se tece abertamente o elogio dos intelectuais colaboracionistas, quando não se faz até a apologia do regime de Vichy, considerado por muitos comentaristas como até “mais aceitável” do que o comunismo. Livros mais populares descrevem “a decadência” da França democrática, enquanto evocam “o bom governo” do marechal Pétain. Emerge novamente no espaço público o antissemitismo dos colunistas, dos intelectuais, das elites.
Ao mesmo tempo, outro fenômeno parece estar crescendo, especialmente entre os jovens das banlieues, que ecoa os conflitos no Oriente Médio e que também esteve na origem de muitos casos de violência: trata-se de um “novo antissemitismo”?
Eu não acredito nisso. Em certo ponto, começou-se a dizer: “O velho antissemitismo não existe mais, foi definitivamente substituído pelo que emana dos ambientes do fundamentalismo islâmico”. Mas, na realidade, não é verdade. O antissemitismo é sempre o mesmo. Não apenas os islamistas retomaram os mesmos argumentos do antissemitismo europeu do século XIX, mas o negacionismo do Holocausto, um verdadeiro “grande delírio devastador” como eu o defino no livro, também está amplamente difundida no mundo árabe. O arsenal ideológico antissemita do Ocidente assumiu uma nova vitalidade entre os islamistas e nos países do Oriente Médio, à luz do conflito com Israel e, por esse caminho, acabou emergindo, depois, nessa forma também nas sociedades europeias, através da propaganda islamista.
Há muitos anos já, você mesma se defrontou pessoalmente com os primeiros sinais que iam surgindo nesse sentido. Naquele caso, tratava-se da Argélia...
Em 1967, com pouco mais de 20 anos de idade, encontrei-me organizando os estudos de francês de um grupo de jovens quase da minha idade, tinham em torno de 18 anos, destinados a se tornar técnicos petrolíferos em uma escola de Boumerdés, uma localidade costeira da Argélia. Quando eclodiu a Guerra dos Seis Dias – entre Israel, Egito, Síria e Jordânia – as paredes das salas de aula se encheram de suásticas. Ao contrário de outros professores – estávamos todos lá porque acreditávamos no desenvolvimento daquele país recém-nascido da luta pela independência – recusei-me a dar aula onde os símbolos nazistas haviam sido desenhados. Em vez disso, quis discutir com os jovens e entender o porquê daquele gesto.
Assim, descobri que, na realidade, eles sabiam pouco sobre a Shoá e Hitler: eles se identificavam com os nazistas e, portanto, com os antissemitas, porque haviam assimilado os israelenses com os judeus “tout-court”. O antissemitismo havia se inscrito no inconsciente deles e se referia ao judeu em sentido geral, não apenas ao inimigo territorial. O risco que estava surgindo naquele período no mundo árabe, porém, era que o antissionismo se tornasse o eixo de um antissemitismo que não era chamado pelo próprio nome. Hoje, com os islamistas, as coisas ficaram mais claras: os temas que eles evocam para atacar o universalismo e a herança do Iluminismo são os mesmos da extrema direita ocidental.
Portanto, como você avalia a hipótese levantada pelo presidente Macron sobre a aprovação de normas específicas contra o antissionismo que estejam ao lado daquelas contra o antissemitismo?
Absolutamente não acredito que sejam necessárias novas leis. Pode-se desmascarar facilmente o discurso antissemita, mesmo que ele tente se camuflar com outros termos ou ênfases. Mais do que outras normas, seria necessária uma análise adequada da situação atual. Precisamos, realmente, de uma lei para atacar a propaganda antissemita dos islamistas, cuja pregação de ódio faz sentir o seu efeito em muitas periferias do país? Na realidade, não. Basta prestar atenção nas suas palavras, nas retóricas que eles colocam em prática, para nos darmos conta de que são as mesmas do velho antissemitismo fascista. Hoje, diz-se cada vez mais “sionista” para, na realidade, dizer “judeu”, “sionista porco”, já que não se pode mais dizer “judeu porco”. Por um lado, o risco de incorrer nos rigores da legislação contra o racismo deslocou, um pouco por toda a parte na Europa, os termos do tradicional discurso antissemita; por outro, a disseminação do islamismo, que já representa uma ameaça global, acabou transferindo aqui o léxico contra os judeus em uso no Oriente Médio.
A proposta de Macron faz eco àqueles que pensam em ver uma certa “porosidade” entre os dois termos. O que você pensa?
Precisamos ser muito claros, porque o termo antissionismo corre o risco de gerar uma grande confusão. O sionismo foi o movimento de emancipação dos judeus, uma realidade, aliás, profundamente dividida em seu próprio interior, embora a maioria fosse de inspiração socialista, da qual não há mais qualquer vestígio na realidade atual de Israel, dominada por um governo de extrema direita. Em seu tempo, Freud era antissionista no sentido de ser contrário ao nascimento de um Estado judeu na Palestina; muitos religiosos judeus são antissionistas, porque consideram que a indicação da Terra Prometida só pode vir de Deus. Mas uma coisa é criticar a política de Israel, um fato obviamente mais do que legítimo, e eu sou a primeira a fazer isso; outra é pôr em discussão o princípio da sua existência: essa atitude de negação pode autorizar a passagem do antissionismo ao antissemitismo e possibilitar, por essa via, aquilo que, de outro modo, se tenderia a ocultar.
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Extrema direita e islamistas: ''O ódio ao cotidiano tem as mesmas raízes''. Entrevista com Élisabeth Roudinesco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU