17 Janeiro 2019
Nova obra destaca sua contribuição essencial: compreender pioneiramente papel indispensável das periferias no processo de acumulação capitalista.
O artigo é de Isabel Loureiro, publicado no livro Rosa Luxemburgo, ou o preço da liberdade, organizado por Jörge Schütrumpf, reúne ensaios de autores como e Michael Löwy e Isabel Loureiro. O artigo é reproduzido por Outras Palavras, 15-01-2019.
A civilização burguesa imperialista está num beco sem saída.
Deste beco não temos que participar –
os bugres das baixas latitudes e adjacências.
Mário Pedrosa, Discurso aos tupiniquins ou nambás, 1975
A acumulação do capital, de Rosa Luxemburgo (1913), foi criticada por várias gerações de economistas. Mesmo os que simpatizam com suas ideias reconhecem o fracasso da solução encontrada por ela para os problemas da teoria da acumulação de Marx. No entanto, existem outras leituras que deixam de lado os erros técnicos e teóricos da obra para enfatizar que Rosa Luxemburgo foi a primeira teórica marxista a compreender o capitalismo como um sistema mundial. Nessa perspectiva, ela aparece como a teórica que pela primeira vez deu lugar permanente, na civilização ocidental, aos países da periferia do capitalismo, não somente porque serviram como fonte de acumulação primitiva do capital, mas porque, desde a época da colonização até agora, foram um elemento imprescindível do desenvolvimento capitalista mundial. Essa novidade foi reconhecida na América Latina dos anos 1970 por intelectuais marxistas não-stalinistas que se deram conta de que Rosa Luxemburgo havia tido uma intuição original (que não desenvolveu) ao enfatizar a unidade dialética entre metrópole e periferia: o sistema capitalista mundial, no seu processo de constituição histórica, gerava o subdesenvolvimento na periferia como um aspecto complementar do desenvolvimento nos países centrais. Nesse sentido, ela teria antecipado em 60 anos as conclusões às quais chegou a teoria da dependência.
A grande originalidade de Rosa Luxemburgo, que não foi levada em conta pelo marxismo ortodoxo no século XX, consiste em ter percebido que “a pilhagem que ocorre nos países coloniais por parte do capital europeu”, que Marx restringia ao período da “acumulação primitiva”, é uma característica do capitalismo “mesmo em sua plena maturidade”.2 Nas suas palavras: “(…) já não se trata de acumulação primitiva, mas de um processo que prossegue inclusive em nossos dias. (…) O capital não conhece outra solução que não a da violência, um método constante da acumulação capitalista no processo histórico, não apenas por ocasião de sua gênese, mas até mesmo hoje. Para as sociedades primitivas, no entanto, trata-se, em qualquer caso, de uma luta pela sobrevivência; a resistência à agressão tem o caráter de uma luta de vida ou morte levada até o total esgotamento ou aniquilação”.3
Assim, nas leis da acumulação do capital, Rosa Luxemburgo acredita ter encontrado as raízes econômicas do imperialismo que, no seu entender, “não é senão um método específico da acumulação”.4 Na boa formulação de Paul Singer, para quem a posição de Rosa Luxemburgo é diferente da de Lenin: “Para ela, o imperialismo não é um estágio do capitalismo, é uma característica central do próprio capitalismo desde sempre. Desde o início, o capitalismo precisou capturar mercados externos para ter a razão de ser da própria expansão. O capitalismo se expande via Estado, via conquista, transforma economias naturais que não são mercantis em economias de mercado. (…) Esse tipo de interpretação, a meu ver, é extremamente fecundo e interessante para se aplicar a um país como o Brasil”.5
A posição de Rosa Luxemburgo a favor dos países periféricos – segundo Mário Pedrosa, “o espírito menos europeu-centrista de todos”6 – foi um dos fatores que estimularam o interesse dos socialistas latino-americanos por sua obra. Enquanto para Marx os lucros procedentes das colônias eram só um elemento entre outros similares que explicavam a acumulação primitiva, para Rosa Luxemburgo, como já foi dito, as regiões não-capitalistas ocupavam uma função necessária no desenvolvimento das metrópoles.7
Já na década de 1970, Mário Pedrosa8 se inspira nessa obra de Rosa Luxemburgo para analisar a crise daquela época e admite que ela estava certa quando dizia que os métodos violentos da “acumulação primitiva”, combinados com a força do dinheiro e da corrupção, continuavam a ser necessários à reprodução ampliada do capital. Esse mecanismo de “acumulação primitiva”, que associa antigas formas de expropriação (privatização da terra e expulsão da população camponesa, mercantilização da força de trabalho e supressão de formas de produção e consumo autóctones, apropriação de recursos naturais etc.) com novos mecanismos de mercantilização em todos os domínios, é o que David Harvey chama de “acumulação por expropriação”.9 Para dar o passo que atualiza a concepção de Rosa Luxemburgo, Harvey cita a passagem em que ela se refere à acumulação do capital como apresentando dois aspectos distintos: um, formalmente pacífico, que se realiza nos “locais produtores de mais-valia”; o outro, que se realiza “entre o capital e as formas de produção não-capitalistas. Seu palco é o cenário mundial. Aqui reinam como métodos a política colonial, o sistema internacional de empréstimos, a política das esferas de interesse, as guerras. Aqui a violência, a fraude, a repressão, o saque se apresentam de maneira totalmente aberta e sem disfarces, dificultando, sob esse emaranhado de atos de violência política e demonstrações de força, a descoberta das leis férreas do processo econômico”.10 E Rosa Luxemburgo conclui (trecho que Harvey não cita) dizendo que economia e política estão intrinsecamente ligadas: “Na realidade, a violência política é também aqui somente o veículo do processo econômico; ambos os aspectos da acumulação do capital estão organicamente ligados pelas condições de reprodução do capital, apenas juntos fornecem a carreira histórica do capital”.11
Tendo em mente a observação de Rosa Luxemburgo sobre a permanência da acumulação primitiva, Harvey também constata que as práticas predatórias e violentas que ocorreram na Europa entre os séculos XV e XVIII, descritas por Marx (remoção dos camponeses de suas terras, mercantilização da força de trabalho, trabalho forçado, comércio de escravos, fim dos commons, extração do ouro e da prata e aniquilamento dos povos indígenas na América, apropriação violenta de ativos, inclusive de recursos naturais, sistema de crédito), não são restritas a uma etapa original do capitalismo, que inclusive não são externas ao capitalismo como sistema fechado, como supunha Rosa Luxemburgo (ou seja, a violência é intrínseca, cada vez mais, ao próprio processo de trabalho), mas fazem parte desse processo em andamento. Os exemplos são irrefutáveis: expulsão de camponeses e formação de um proletariado sem terra no México e na Índia (também no Brasil) desde os anos 1970; privatização de recursos naturais como a água; privatização de indústrias nacionais; substituição da agropecuária familiar pelo agronegócio; persistência da escravidão (sobretudo no comércio sexual); o sistema de crédito e o capital financeiro, “grandes trampolins de predação, fraude e roubo”.12
Além disso, foram sendo criados “mecanismos inteiramente novos de acumulação por expropriação”,13 novas formas de privatização dos bens comuns da humanidade: patentes de material genético e de sementes; biopirataria em benefício de empresas farmacêuticas; destruição e mercantilização da natureza; mercantilização da cultura e da educação; privatização da saúde e das aposentadorias. A essa lista podemos acrescentar a “economia verde”, com seus mercados de carbono, a mais recente fonte de acumulação primitiva permanente.14
A perspectiva de Rosa Luxemburgo assume assim nova atualidade na época da globalização. A expansão imperialista, que requeria a apropriação de regiões atrasadas do globo para serem transformadas em zonas capitalistas, foi um processo que praticamente se completou na segunda metade do século XX. Hoje, as novas fronteiras de expansão capitalista já não são apenas territoriais (embora na América Latina também sejam) e sim econômicas, com a mercantilização de tudo o que ficou fora da esfera da valorização do valor. É contra esse processo de acumulação por expropriação que os movimentos socioambientais na América Latina criaram, com enormes dificuldades, suas formas de resistência. Eles denunciam a simbiose entre Estado e grandes empresas como sendo responsável por extorquir os meios de vida das camadas subalternas da sociedade – povos da floresta, indígenas, populações ribeirinhas, quilombolas, trabalhadores sem terra, pequenos agricultores – em favor da mineração e do agronegócio. Ou seja, naquilo que, numa síntese feliz, foi chamado de “consenso das commodities”15 ou “neoextrativismo progressista”.16
Os movimentos de resistência à acumulação por expropriação, diferentemente do desenvolvimentismo socialista tradicional, que apoiava a modernização forçada ainda que à custa de terríveis sacrifícios (por exemplo, coletivização forçada da agricultura na URSS, na China e no Leste europeu), valorizam formas sociais tradicionais e muitos deles, como os movimentos indígenas na América andina, não veem o desenvolvimento capitalista como progressista. Essas resistências múltiplas, permeadas de contradições internas, traduzem-se em lutas específicas contra alvos específicos: contra a construção de megarrepresas na Índia e na América Latina; contra transgênicos; contra as madeireiras, pela preservação das reservas florestais para os povos indígenas; contra o agronegócio e o uso de agrotóxicos etc. Harvey acredita que a luta anticapitalista só poderá ser bem-sucedida se unir as resistências progressistas locais e particulares contra a acumulação por expropriação (equivocadamente consideradas irrelevantes pelos movimentos comunistas e socialistas tradicionais) com as lutas contra a reprodução ampliada, típicas da esquerda tradicional. Porém, considera que na acumulação por expropriação está “a contradição primária a ser enfrentada”.17
2 Rosa Luxemburg, A acumulação do capital, São Paulo, Nova Cultural, 1988, vol. 2, p. 28, tradução modificada.
3 Idem, pp. 32, 33.
4 Die Akkumulation des Kapitals oder Was die Epigonen aus der Marxschen Theorie gemacht haben – eine Antikritik [A acumulação do capital ou o que os epígonos fizeram da teoria marxista: uma anticrítica]. In: Rosa Luxemburg, Gesammelte Werke 5, Berlim, Dietz Verlag, 1985, p. 431.
5 Paul Singer, A teoria da acumulação do capital em Rosa Luxemburg. In: Isabel Loureiro e Tullo Vigevani (org.), Rosa Luxemburg, a recusa da alienação, op. cit., p. 85. Também Mário Pedrosa, para quem a abordagem de Rosa Luxemburgo tinha uma “profunda originalidade”, entende que para ela o imperialismo era “o primeiro ato de nascimento do capitalismo” (Pedrosa, op. cit.,p. 69). 6 Op. cit, p. 17.
7 Cf. Fritz Weber, Implicaciones políticas de la teoria del derrumbe de Rosa Luxemburg. In: J. Trías, M. Monereo (org.), Rosa Luxemburg – actualidad y clasicismo, El Viejo Topo, s/d, p. 54.
8 A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.
9 David Harvey, O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
10 Rosa Luxemburg, A acumulação do capital, op. cit., pp. 86-7. Tradução modificada segundo Gesammelte Werke 5, p. 397.
11 Gesammelte Werke 5, p. 398.
12 Harvey, op. cit., p. 122.
13 Idem, p. 123.
14 Ver Camila Moreno, Las ropas verdes del Rey. In: Miriam Lang, Claudia López, Alejandra Santillana (org.). Alternativas al capitalismo/colonialismo del siglo XXI, São Paulo, Fundação Rosa Luxemburg, 2013.
15 Ver Maristella Svampa, Consenso de los commodities, giro ecoterritorial y pensamiento crítico en América Latina, OSAL (Buenos Aires: CLACSO), ano XIII, n° 32, novembro de 2012.
16 Eduardo Gudynas, Estado compensador y nuevos extractivismos – las ambivalencias del progresismo sudamericano, Nueva Sociedad, no 237, enero-febrero de 2012. www.nuso.org
17 Harvey, op. cit., p. 144.
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Rosa Luxemburgo, a marxista menos eurocêntrica? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU