05 Janeiro 2019
Uma antologia de textos de escritoras místicas que vão do século XII ao século XV oferece um eficaz spaccato da experiência espiritual feminina.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 30-12-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pode-se sopesar um sarcasmo que cai no excesso agressivo (e que hoje bem conhecemos com a grosseria das mídias sociais), mas aquilo que escrevia o poeta inglês de “pasquinadas” Samuel Butler, no século XVII, pode ser demolido através de uma via insuspeita. O que afirmava, então, o nosso poeta herói-cômico?
Eis a asserção que, por pudor e não por correção de gênero, deixamos em inglês: “The soul of the women are so small, / that some believe they’ve none at all”.
Alessandra Bartolomei Romagnoli,
Antonella degl’Innocenti,
Francesco Santi (orgs.).
Scrittrici mistiche europee. Florença
Edizioni del Galluzzo para a Fondazione Ezio Franceschini
Vol. I, Secoli XII-XIII, 584 páginas;
vol. II, Secoli XIV-XV. 647 páginas.
Pois bem, para atestar experimentalmente que, na realidade, existem mulheres que têm almas grandiosas, superiores àquelas de certos irmãos humanos, bastaria folhear uma produção literário-espiritual surpreendente e, infelizmente, marginalizada precisamente pelos colegas homens, ou seja, as páginas das Scrittrici mistiche europee [Escritoras místicas europeias] (Edizioni del Galluzzo).
Esse é o título de um imponente dossiê preparado em díptico, cuja tábuas cronológicas envolvem, respectivamente, os séculos XII-XIII e XIV-XV, uma época que, para uma “vulgata” nunca totalmente desprendida das mentes, é rubricada como obscura e culturalmente irrespirável.
Quem preparou essa dupla pintura literária foram três estudiosos que se remetem a dois mestres inesquecíveis, o vêneto, mas florentino de adoção, Claudio Leonardi e o franciscano suíço-ticiniano Giovanni Pozzi. Em 1988, eles publicaram uma primeira documentação sobre as Scrittrici mistiche italiane [Escritoras místicas italianas]; agora, a messe se amplia, e, com Alessandra Bartolomei Romagnoli, Antonella degl’Innocenti e Francesco Santi, abraça-se o horizonte muito mais vasto e variado da Europa.
O fascínio da sua pesquisa, compartilhado também por aqueles que não têm o seu extraordinário instrumentário filológico e teológico-cultural, está na antologia de textos que vão do latim a um arco-íris de francês ou alemão ou inglês e espanhol arcaicos, naturalmente traduzidos de modo transparente, de modo a traduzir a fragrância de pensamentos que avançam em cumes pontiagudos capazes de perfurar o céu de Deus, mas que não hesitam em serpentear na poeira do vale da cotidianidade e da emotividade.
A originalidade de base – com todo o respeito a Butler – jaz precisamente na escrita feminina que se remete a uma experiência espiritual não redutível à mística masculina, embora conhecida e importante. É uma identidade que é decifrada pelas introduções muito acuradas, as gerais e as específicas reservadas a cada retrato, mas que se descobre sobretudo na leitura dos textos muitas vezes incandescentes das autoras.
Na primeira tábua do nosso díptico ideal, aparecem 23 mulheres cujos perfis incluem algumas figuras que já entraram no conhecimento de mais amplo espectro. Pensamos em Hildegard de Bingen (1098-1179), teóloga, poetisa, cientista, musicista e também pintora, que se tornou conhecida nos nossos dias mais “ecológicos” também pelo seu exame criativo do mundo mineral, vegetal e animal.
Pensamos na vibrante mística nupcial que se afunda até o abismo onde se alcança a morte de amor, tema característico de Mechthild de Magdeburgo (1208-1283), mas também na saxônica Gertrudes de Hefta. A esta última, uma noite, apareceu um jovem fascinante, em cujas mãos estavam incrustadas “as esplêndidas joias daquelas feridas por meio das quais foram anuladas as dívidas de todos” (e certamente não é necessário revelar a identidade desse personagem).
Desagrada-nos o fato de não podermos, por outro lado, nos debruçar sobre outros personagens emocionantes como Beatriz de Nazaré, Hadewijch de Antuérpia ou a selvagem e excessiva Cristina, a Admirável, e tantas outras apenas aparentemente menores.
Recolher os fios comuns dessas leituras é difícil, porque elas se harmonizam, sim, em tramas (penso na teologia do corpo que se torna ardente na potência do amor e do seu eros), mas também se emaranham em percursos complexos e até desconcertantes aos olhos do leitor alheio a essas linguagens.
Remeteria, por exemplo, ao motivo da compaixão por Deus, de modo que a alma feminina se torna “o repouso do Deus sofredor”, para usar a fórmula de um dos organizadores, Francesco Santi. Uma familiaridade espontânea e audaciosa, direta e até mesmo provocativa com um Deus que é muito mais do que um “motor imóvel” aristotélico ou de um nebuloso teorema celeste.
Porém, neste ponto, devemos passar para a segunda tábua, aquela que vê o crepúsculo da Idade Média e o surgimento de novas abordagens culturais, isto é, os séculos XIV-XV. Aqui são convocadas em cena 19 escritoras disseminadas por toda a Europa.
Também neste âmbito é árduo destacar algumas mulheres em relação a outras. Fazemos isso apenas com o critério extrínseco da maior notoriedade, partindo das chamas da fogueira que, em 1310, espalharam ao vento as cinzas de Marguerite Porete, firme ao rejeitar qualquer retratação salvífica em relação às teses expostas no seu “Espelho das almas simples”, cujo fim, porém, foi saudado por uma grande multidão parisiense em lágrimas.
Em paralelo, como não pensar em Joana d’Arc, cuja história não precisa ser reevocada, confiada também àquela obra-prima cinematográfica que é “O processo de Joana d’Arc”, de Bresson (1963)?
Mas há também a aristocrática Brígida da Suécia, que, das margens geladas do seu país, chegou em 1349 em Roma, “onde as ruas e as praças são de ouro e vermelhas do sangue dos santos”, como Cristo lhe havia sugerido, encontrando, porém, uma cidade devastada e deserta. Mas será o Deus loquax e certamente não silente que a guiará em uma acusação implacável contra a decadência da Igreja, expressada nas suas torrenciais “Revelações”. Séculos depois, São João Paulo II, em 1999, proclamaria essa profetisa sueca como padroeira da Europa.
Também não é possível ignorar nessa seleção a inglesa Juliana de Norwich, que teve, entre os dias 8 e 13 de maio de 1373, das 4h da madrugada até as 3h da tarde, 15 visões de Cristo, seladas por uma última noturna. Nascia, assim, o seu “Livro das revelações”, uma autobiografia dialógica com Deus, totalmente irradiada pelos frêmitos do amor. Retorna, assim, aquele fio vermelho de fogo que torna a escrita mística feminina tão única e criativa, apaixonada e emocionante: leiam-se na antologia as páginas dedicadas à maternidade (sic) de Cristo, um ícone não exclusivo de Juliana, mas também, por exemplo, da nossa Catarina de Siena.
Como escreve Romagnoli na sua introdução, resumindo a simbologia dessa abordagem cristológica inesperada, “o lado de Cristo é o útero materno de Deus, e ele gera a Igreja, o povo novo. A imagem de Cristo como uma ama de leite, peito lactante, remete ao doloroso e terrível poder de fecundação da mãe, que dá à luz no sacrifício da própria carne e no derramamento do sangue, e alimenta com o próprio leite. Analogamente, o corpo adorado de Cristo é habitável e é um recipiente, espaço aberto e vulnerado, de vez em quando caverna, taverna aberta, rio que flui, barril que derrama continuamente água, leite e sangue”.
Símbolos fosforescentes e excitantes e experiências talvez extremas: como as dos estigmas, dos jejuns radicais, dos abraços aos leprosos, da eucaristia como alimento único, físico e espiritual. Eles se cruzam, porém, com o realismo de uma fé doce, tenra, capaz de tecer, em coroa ou corola mística, racionalidade e sentimento. Trata-se de linguagens necessárias, ambas, naquela época mas também hoje, para descrever Deus e a alma feminina apaixonada, uma alma nada small ou inexistente, como queria Butler.
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Retratos vívidos de mulheres místicas. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU