19 Dezembro 2018
Sufocados pelos bancos e surpreendidos pelas mudanças climáticas, eles exigem um novo modelo agrícola. São centenas de milhões – mas a mídia convencional finge que não existem.
A reportagem é de Rohini Mohan, jornalista que escreve sobre Política e Direitos Humanos na Ásia. Seu livro premiado, "The Seasons of Trouble" (2014) é um relato documental sobre a história de três pessoas vivendo no Sri Lanka após a guerra civil (1983-2009). Ela vive em Bangalore, Índia. A reportagem é publicada por Outras Palavras, 17-12-2018.
Potteeswaran, um produtor de arroz, contou que estava segurando os crânios de Murugesan e Laxmi, um casal originário da cidade de Trichy, no estado sulino de Tamil Nadu, que se matou devido a um empréstimo bancário que não pode pagar. “Quando o banco tomou suas terras, eles não viram outra solução”, disse Potteeswaran.
Em abril de 2017, mais de 150 camponeses de Tamil Nadu mantiveram-se sentados por quase um mês na região de Jantar Mantar, em Déli, capital da Índia. Eles sentaram-se nus, segurando os ossos dos vizinhos que haviam cometido suicídio e carregando ratos e grama mortos em seus dentes.
“Em 2016, Tamil Nadu viu sua pior chuva em 140 anos”, disse Aiyyakannu, que liderou o protesto dos agricultores. “Queríamos simbolicamente envergonhar os nossos líderes.” Eles voltaram desta vez com gente de cinco distritos do delta do rio Kaveri, devastados pelo ciclone Gaja.
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Dezenas de milhares de camponeses marcharam por Déli, capital da Índia, na última semana de novembro. Eles vieram em trens e ônibus de todo o país, e passaram uma noite fria em um centro de convenções chamado de Ramayana, onde se dramatiza, uma vez por ano, o poema épico de mesmo nome. No dia seguinte, com os estômagos meio cheios de roti e chá, doado pelos templos sikhs e as associações de estudantes de Déli, foram até a Rua do Parlamento. Em uma cidade sufocada por ar irrespirável, eles falaram em oito idiomas sobre colheitas fracassadas, chuvas irregulares e suas vidas precárias.
Na semana passada uma conversa similar sobre o clima ocorreu no coração da Polônia. Ali, longe de seu eleitorado, governantes de todo o mundo expressaram em voz alta seus piores medos. Nosso planeta está perdido? Como enfrentar a mudança climática? Os diplomatas negociavam acordos globais de redução da emissão de poluentes quando o presidente dos EUA, Donald Trump, tuitou triunfantemente sobre o quão ridículo e caro ele julgava o Acordo de Paris. Muitos políticos nos países ricos ainda estão focados no mínimo que podem fazer, e estão ansiosos para usar os protestos dos Coletes Amarelos contra o presidente francês Emmanuel Macron para argumentar mais uma vez que as populações não estão prontas para agir contra a mudança climática.
Obra Skulls, de Molly Crabapple
Mas, os camponeses que marcharam até Déli estão. A agricultura na Índia depende muito da chuva e da temperatura, na estação de crescimento; os agricultores são altamente sensíveis ao clima. Eles já sentiram o início do apocalipse na forma de poços ressecados, rendimentos em declínio e migrações em massa. Os custos estão aumentando, enquanto a renda agrícola real por plantador cresceu menos de meio por cento ao ano. Hoje, um agricultor indiano ganha menos de 20 mil rúpias (cerca de US$ 280) por ano, um quarto da renda anual per capita da Índia. De acordo com as estatísticas oficiais disponíveis até 2016, mais de 320 mil agricultores e trabalhadores agrícolas suicidaram-se desde 1995.
A precipitação média diminuiu na Índia e os eventos extremos tornaram-se mais frequentes. Enchentes e ciclones devastam as plantações, mas as estações também estão ficando cada vez mais secas. As chuvas de monção vêm depois e partem mais cedo. Estudos mostram que a extensão, duração e intensidade das secas e das monções na Índia cresceram desde meados da década de 1950. Isso está ligado à redução das chuvas, que, por sua vez, se deve à redução da diferença de temperatura entre o Oceano Índico e o continente indiano. Mais camponeses do que nunca estão se suicidando por causa de colheitas frustradas.
Mais de dois terços dos campos indianos são irrigados por água subterrânea, que está se esgotando rapidamente. Num intervalo para beber água, do lado de fora do memorial Mahatma Gandhi, a caminho do Parlamento, Mallikarjun S. Doddamani disse que todos os camponeses em sua aldeia haviam cavado pelo menos dois poços na última década. A maioria está seca. Ele é de um distrito do sul, e vive seu terceiro ano de seca. “A terra é agora como uma camisa de mendigo: cheia de buracos”, disse ele. Depois de investir em quatro poços em seus 2,5 hectares de terra, Doddamani contraiu um empréstimo de 400 mil rúpias (5,5 mil dólares), que não pode pagar.
Obra Beginning, de Molly Crabapple
Insegurança alimentar, endividamento, escassez de água e rendimentos deprimidos compõem a história de quase todo camponês. Ramsingh Bharadwaj havia viajado por 36 horas a pé, de ônibus e finalmente de trem, partindo região central da Índia – rica em carvão – para exigir títulos de terra para sua comunidade de moradores de florestas nativas, que plantam e criam gado. “À medida que as minas de carvão se expandem, perdemos a floresta e nosso acesso a tudo o que resta”, disse ele. Em seu telefone, mostrou-me uma foto de sua colheita de lentilha, coberta de pó preto de carvão.
A mudança climática afeta sobretudo os camponeses mais pobres. Karu Manjhi, uma idosa dalit de Bihar, preparou uma pergunta para o primeiro-ministro Modi: “O que você acha do fato de um agricultor em seu país não poder alimentar seus próprios netos nem com uma refeição por dia?” Os dois netos e três netas de Manjhi comem arroz com lentilhas aquosas na escola pública, porque ela não tem condições de cultivar alimentos nutritivos em sua área de um hectare, agora dividida entre dois filhos (63% das terras agrícolas pertencem a agricultores marginais que possuem menos de 1 hectare). “Todos nós cultivamos apenas uma variedade de arroz porque é para esse que o governo garante um preço. Uma inundação repentina e tudo está podre”.
Cada região e comunidade tinha um horror diferente. Elas haviam travado suas batalhas locais, mas as respostas mais generosas do Estado foram paliativas. O adiamento das prestações da dívida, para os afetados pela seca, o combate às inundações e os sistemas de seguro oferecem alguma assistência, mas não bastam para alterar o que é cultivado, o que os agricultores ganham e como a água é usada.
Obra AIKS, de Molly Crabapple
Por isso, os fazendeiros trouxeram seus corpos – devastados pelo trabalho, desacostumados a câmeras de televisão e cansados de caminhar quilômetros – até o centro do poder. Em um raro momento, as castas superiores proprietárias de terras aliaram-se aos trabalhadores rurais sem terra; mesmo que seus interesses muitas vezes colidam, eles sabiam que seus destinos estão ligados. Os agricultores exigiram uma sessão especial de três semanas no Parlamento para discutir a crise agrícola. Além das leis sobre crédito agrícola e preços remunerativos, eles queriam um debate sobre a crise da água e práticas sustentáveis, em particular.
“Nós sinalizamos para onde vai o vento, observe-nos de perto”, disse Laxmiprasad Verma, um trabalhador agrícola de Varanasi que marchou com seu filho mais novo, Naineeta, de onze anos. Enquanto as milhares gritavam “Marenge nahin, ladenge!” [“Não morreremos, lutaremos”] os agricultores redefiniram-se como protagonistas, e não vítimas, da história da mudança climática.
Cerca de 200 sindicatos de agricultores organizaram-se nacionalmente sob o grande guarda-chuvas do Comitê de Coordenação Kisan Sangrarsh para toda a Índia, mas cada distrito mobilizou-se desde agosto. O grupo articulador foi All India Kisan Saha (AIKS), uma frente camponesa com raízes comunistas, mas muitos dos grupos eram organizações não partidárias que ajudam localmente os camponeses a batalhar por melhores preços, decidir o que plantar, como ter acesso aos mercados e reivindicar subsídios e reforma agrária. Rajkumari, do distrito de Sultanpur, em Uttar Pradsh, o Estado mais populoso da Índia, é participante da Associação de Mulheres Democráticas da Toda a Índia (AIDWA), o braço feminino do Partido Comunista da Índia (Marxista). Ela chama a associação de aid-wah, com pronúncia hindi. Esta mulher de 40 anos nunca ouviu falar de Marx e assustou-se com o termo “maoísta”. Política, para ela, é uma forma de auto-realização. “Nós, mulheres, somos ensinadas a passar fome, quando a comida é escassa. Foi a primeira coisa que desaprendi”, disse. “Então, percebi: sou em quem semeio e colho arroz, tomo conta do gado, levo potes de água para casa. Por que não deveria ter salários e direitos iguais sobre a terra?”
Obra Cops, de Molly Crabapple
“Simplesmente trabalhamos cada vez mais duro e gastamos cada vez mais em poços, sementes e tecnologia. Mas isso funciona?”, perguntou Mukhtayar Sing, de Punjab. Enquanto os manifestantes aguardavam e autorização da polícia para marchar, Singh perambulava, tentando falar com agricultores de outros Estados. Será que teriam encontrado outras maneiras de se adaptar”?
A maior parte dos fazendeiros, porém, não está mudando seus métodos para se adaptar às mudanças climáticas e à escassez de água. Em vez disso, estão cavando até 70 metros para encontrar água – mas mesmo nesta profundidade, eles muitas vezes não encontram nada. Ou cultivam variedades tradicionais, que têm preços mínimos garantidos pelo governo, embora usem muita água e ofereçam poucos nutrientes. O arroz e o trigo são seriamente afetados pela mudança climática, mas ainda dominam os cultivos.
Quando nada funciona, os fazendeiros raspam juntos o tacho de suas economias para mandar seus filhos e filhas à escola, nas cidades mais próximas. Rulda Sing, de 57 anos, reza para que seus filhos nunca tenham de usar um arado. Quase 8 milhões de pessoas tiveram de deixar a agricultura, na década terminada em 2011, o ano do último censo indiano. Agricultores endividados ou trabalhadores agrícolas desocupados estão despejando alcatrão, carregando tijolos ou limpando o chão dos shoppings – dissolvendo-se no anonimato da vasta classe trabalhadora urbana. A Índia produz hoje mais comida do que nunca, mas reúne 24% das pessoas mal-nutridas no mundo e está longe de superar a fome crônica. “Eu como trigo, talvez meus filhos tenham de comer aço”, disse Rulda Sing, gargalhando. “O que eles fazem nos Estados Unidos? Na TV, todos os fazendeiros são gordos e ricos, e suas lojas de eletrodomésticos estão cheias”, disse Mukhtayar Sing. “Talvez eu deva ir para os Estados Unidos”.
Todas as manifestações, na Índia, necessitam uma autorização policial, e a polícia de Déli demorou até domingo de manhã para permitir a marcha. Ela lançou avisos de trânsito sobre rotas a evitar, durante a manifestação de dois dias. Cerca de 3,7 mil policiais e membros de corpos paramilitares acompanharam o percurso. A visão das barricadas amarelas e das vans azuis da polícia fizeram Ramanamma, do estado sulino de Andhra Pradesh, lembrar dos canhões de água em suas costas, alguns anos atrás. À época, seu vilarejo reivindicava que as dívidas de agricultores como ela fossem canceladas.
Obra Portraits, de Molly Crabapple
Os protestos de agricultores já haviam quase dobrado em dois anos – de 2.683, em 2015, para 4.837, em 2016 – e continuam a emergir. Gás lacrimogênio e canhões de água são usados regularmente contra quem protesta. No ano passado, policiais que atiraram com munição real mataram seis camponeses em um protesto. Em março, cerca de 35 mil agricultores, a maior parte membros de tribos indígenas, caminharam mais de 200 quilômetros, durante sete dias, até Mumbai, exigindo títulos de terra. No norte e no oeste da Índia, agricultores despejaram cebolas e leite nas praças das cidades, em protesto contra os preços que recebiam pelos produtos.
Mulheres de Telangana, no sul, marcharam com retratos de seus pais, irmãos ou maridos que beberam pesticida – o veneno disponível mais próximo para um agricultor afundado em dívidas. Os bancos tendem a recusar empréstimos a pequenos camponeses e trabalhadores agrícolas, por isso eles tomam emprestado de agiotas, a juros de 300%. Quando seu marido suicidou-se, Krishnamma recebeu uma modesta indenização do Estado. “No dia seguinte, três devedores bateram em casa – eu dei-lhes tudo”.
A boa notícia para Krishnamma é que ela conseguira manter pouco mais de um hectare de terra. A Aliança pela Agricultura Sustentável e Holística, uma rede nacional de 400 organizações camponesas, deu-lhe treinamento para o cultivo sustentável. Agora, em vez de plantar algodão e arroz, ela cultiva berinjelas e grão de bico, que são mais adaptados à mudança climática e podem florescer em temperaturas mais altas.
Outros, do Estado de Karnataka, praticam “agricultura de custo zero”, em que usam sementes ancestrais rústicas, obtidas gratuitamente. O governo de Kerala promove plantio compartilhado entre agricultores marginais, especialmente mulheres, e incentiva a produção orgânica. Na marcha de Déli, alguns camponeses do desertificado Rajastão explicavam manejo de bacias hidrográficas para outros de Bihar, onde famílias inteiras de pequenos proprietários e trabalhadores agrícolas estão migrando. Em meio à mobilização política, estes manifestantes não se esqueciam do futuro de seus cultivos.
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Índia: a grande revolta camponesa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU