Por: Rafael Francisco Hiller | 05 Dezembro 2018
"Com o constante e irremediável advento de novos tempos, devemos ser desafiados constantemente a refletir a respeito dos valores sustentados pela nossa espécie no decorrer de nossa evolução. Nada mais justo que, no tempo presente, escutemos o clamor feminino e releguemos ao esquecimento virtudes e vícios que não mais retratam os valores morais úteis e desejados de nossa época", escreve Rafael Hiller, especialista em História da Filosofia e mestre em comunicação social.
Ao nos debruçarmos sobre a obra mais importante de David Hume, certamente não imaginaríamos que, por trás de suas grandes contribuições no âmbito da filosofia da percepção e da filosofia moral, encontraríamos grandes contribuições tocantes aos ideais feministas. É evidente que, especificamente nessa obra, o intento de Hume era outro, mas certamente não é nenhum sacrilégio retirarmos o “véu” de suas ideias a fim de que as mesmas passem também a ancorar novas abordagens de conceitos não tão novos assim.
Obviamente, não podemos exigir que os estudiosos das obras de Hume venham a concordar imediatamente com as nossas inferências, pois estas não se encontram subsidiadas exclusivamente por suas ideias. Partimos da posição de que o autor tinha fortes tendências a desenvolver suas teorias a partir de um viés naturalista. Tal posicionamento não é aceito por alguns historiadores da filosofia, mas, mesmo assim, achamos que o teor de suas ideias nos fornece os subsídios necessários para pensarmos dessa forma.
Hume, mesmo com as limitações presentes em sua época, sem sombra de dúvidas pode ser visto como um precursor do estudo do homem e da sociedade a partir de um viés naturalista. Suas ideias vieram, ao longo das décadas, repercutindo nos mais diversos campos científicos, principalmente nas ciências biológicas e psicológicas.
Hoje, boa parte dos argumentos feministas é sustentada por descobertas nos mais variados campos científicos. Deste modo, não é surpresa encontrarmos, de forma incipiente no pensamento de Hume, ideias ainda em estado germinal, mas que com o avanço das mais variadas áreas fizeram com que as mesmas viessem a dar fabulosos frutos a nível argumentativo para o movimento feminista ressurgente.
No primeiro livro do seu tratado, Hume se dispõe a tratar daquilo que, segundo ele, compõe as bases indispensáveis da natureza humana, o entendimento. A primeira questão que nos surge é a postura que o autor assume ao abordar tal temática em sua obra. Para além dos debates a respeito das supostas diferenças intelectivas entre homens e mulheres, debates estes presentes ao longo de toda a história da filosofia, o autor parte de uma abordagem que desconsidera tais diferenças. Sua abordagem prioriza o estudo do indivíduo humano enquanto espécie. Para além das mínimas diferenças existentes entre os sexos, o que prevalece são as incontáveis proximidades entre ambos. Trata-se aqui de abordar a natureza humana, e não a natureza do homem.
As características do entendimento passam a possuir um caráter biológico, isto é, todo e qualquer indivíduo possui um entendimento com características iguais, dispostas da mesma maneira e com um potencial a ser desenvolvido.
Como foi dito anteriormente, não é feita nenhuma distinção das possíveis diferenças existentes entre os sexos. Hume preocupa-se, exclusivamente, em descrever o ser humano enquanto espécie, atribuindo, assim, para ambos os sexos, as mesmas potencialidades.
Outra questão de grande importância é a sujeição que o autor impõe à espécie humana no que tange às paixões. Todos os indivíduos da espécie humana possuem a sua razão em completa submissão às paixões no que se refere aos julgamentos morais. Isso, por mais que pareça simplório, nos oferece um grande avanço no que diz respeito às inúmeras afirmações acerca de uma possível fragilidade emocional feminina. Ao sugerir que todo e qualquer indivíduo possui uma razão escrava das paixões no trato das questões morais, Hume desmistifica o ideal de que as mulheres seriam mais suscetíveis às pressões de suas emoções na tomada de decisões de cunho moral. Obviamente, sabe-se que existem diferenças entre os sexos no que diz respeito a reações frente aos acontecimentos. Contudo, o que não podemos supor é que pequenas diferenças de natureza biológica nos façam supor a existência de grandes abismos entre os julgamentos morais realizados por ambos os sexos. Desta forma, a partir das proposições defendidas por Hume, torna-se impossível sustentar a falsa ideia do homem racional e da mulher emocional.
Tanto homens como mulheres integram aquilo que chamamos de natureza humana; sendo assim, ambos nutrem proximidades fisiológicas inegavelmente parecidas, sujeitando-os, desta forma, às mesmas percepções mentais no que tange à apreciação dos fenômenos humanos.
Em um dos subcapítulos do seu tratado, Hume procura demonstrar que as virtudes da castidade e da modéstia são virtudes artificiais, isto é, são caracterizadas como virtudes a partir de um consenso estabelecido socialmente. Desta forma, mesmo que considere que a modéstia feminina e a castidade possuem uma utilidade para o bom convívio em sociedade, nega que tais virtudes tenham sua origem na natureza feminina.
Como foi dito anteriormente, as virtudes da castidade, bem como da modéstia, segundo Hume, consolidaram-se devido a uma suposta utilidade no que diz respeito à manutenção do bem-estar social e por isso são consideradas virtudes artificiais. Essa utilidade, segundo o autor, está relacionada com o fato de que a mulher, ao manter-se casta e modesta, garantiria ao homem que todo o seu esforço na manutenção do sustento de sua família estava sendo direcionado para o local correto, isto é, para sua esposa e seus filhos legítimos.
Aquilo de mais significativo das ideias humeneanas apresentadas acima é o fato de que, se tais virtudes são acordos estabelecidos para o bom andamento da sociedade humana em uma determinada época, podemos supor que em outras épocas tais vícios e virtudes podem e devem sofrer alterações para se adequarem a novos tempos.
Considerando que os laços familiares não se constituem mais da mesma forma, bem como a manutenção da família não é mais apenas de responsabilidade do homem, é de se concluir que as virtudes da modéstia e da castidade não necessitam mais estar em vigor para as mulheres, ao passo que não possuem mais nenhuma suposta utilidade para a manutenção da ordem dos agrupamentos humanos.
Considerando a igualdade intelectiva entre os sexos, proposta pelo autor e pela ciência, e considerando as virtudes naturais e artificiais, talvez é chegada a hora de nos questionarmos a respeito da utilidade, bem como do valor moral de nossas concepções tanto no que tange às nossas virtudes artificiais como no que se refere às nossas ideias com relação a diferenças entre os sexos.
Com o constante e irremediável advento de novos tempos, devemos ser desafiados constantemente a refletir a respeito dos valores sustentados pela nossa espécie no decorrer de nossa evolução. Nada mais justo que, no tempo presente, escutemos o clamor feminino e releguemos ao esquecimento virtudes e vícios que não mais retratam os valores morais úteis e desejados de nossa época.
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Ideais feministas no Tratado da natureza humana de David Hume - Instituto Humanitas Unisinos - IHU