Por: Patricia Fachin | 13 Setembro 2018
O enfrentamento da violência e dos problemas de segurança pública no estado do Rio de Janeiro é permeado por “contradições”, constata Mário Pires Simão, diretor do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Simão avalia que as ações que levaram à intervenção militar no estado carioca “são muito obscuras” e que a “sensação de segurança” gerada por esse processo “é apenas temporária e paliativa, não desdobrando em mudanças eficazes no que concerne à retomada do controle dos territórios e a uma nova relação com seus moradores”.
Ele lembra que a intervenção militar que ocorreu no conjunto de favelas da Maré em 2014 teve um custo de mais de “R$ 600 milhões e não teve qualquer resultado concreto de retomada do controle destes territórios, mas deixou um saldo altíssimo de violações de direitos”.
Simão pontua ainda que a “incapacidade das forças de segurança do Estado, seja pelo sucateamento de sua estrutura, seja pela promiscuidade entre elementos das corporações policiais com atividades ilícitas, torna a segurança pública um projeto inalcançável”. Entretanto, adverte, “é preciso usar mais da inteligência e da capacidade técnica de que se dispõe para construir uma política de segurança pública mais eficaz”.
Para ele, a efetividade de uma política de segurança pública depende de um modelo que “supere a lógica dos programas de governo”. E resume: “Uma agenda pública no caso do Rio de Janeiro e do Brasil precisa efetivamente alcançar temas fundamentais como política de drogas, alterando o quadro de enfrentamento bélico no qual ela está assentada. Deve construir um processo de reforma do modelo policial que permita a refundação das polícias, usando de todos os esforços de mudança da legislação para que isso se consolide. Nesta agenda a repactuação entre o Estado e as comunidades que vivem em territórios periféricos e favelas é indispensável”.
Mário Pires Simão | Foto: Arquivo Pessoal
Mário Pires Simão é geógrafo, graduado, mestre e doutor pela Universidade Federal Fluminense – UFF, e colaborador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. É professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (FFP/UERJ).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor caracteriza a atual situação do Rio de Janeiro em relação à violência e à falta de segurança? Há exageros nas análises ou não?
Mário Pires Simão - Certamente a violência é percebida de modo muito distinto pelas pessoas. Trata-se de um fenômeno muito difuso, que depende das experiências individuais e das totalidades sociais que nos atravessam, como renda, etnia, gênero, entre outros. Desse modo, um jovem branco, que mora no Leblon, bairro de classe média da cidade do Rio de Janeiro, entende e vivencia a violência de modo muito distinto de um jovem negro que mora na Maré, o maior conjunto de favelas da cidade, localizado na zona norte. Portanto não podemos falar de um fenômeno homogêneo, que atinge a todos de modo igual.
Contudo, no que tange à segurança pública, a situação é gravíssima no Rio de Janeiro: grupos civis armados que usam do território como estratégia para se reproduzirem, segmentos expressivos de instituições policiais associados ao crime; autoridades do Estado sem legitimidade para construir um pacto com a sociedade, envolta a uma crise política profunda quanto a sua representatividade, um sistema jurídico com brechas e com uma atuação duvidosa no que tange à garantia da justiça e dos direitos humanos e uma escalada absurda do discurso do ódio que estimula enfrentamentos dos mais diferentes entre os cidadãos.
Do meu ponto de vista não se pode falar em exageros, mas em contradições desse processo. As ações que levaram a uma intervenção militar indiscutivelmente são muito obscuras, uma vez que sabemos que os militares não têm condições de solucionar a insegurança pública. A sensação de segurança que isso pode trazer é apenas temporária e paliativa, não desdobrando em mudanças eficazes no que concerne à retomada do controle dos territórios e a uma nova relação com seus moradores. Esta narrativa de uma missão salvadora que pode extirpar o mal não confere com o mundo real em que as instituições públicas estão capturadas por interesses escusos, e o tráfico de drogas nas favelas não constitui apenas um comércio, mas uma rede de relações que espraia a questão do varejo da droga. Por outro lado, a empreitada da guerra às drogas tem gerado cada vez mais violações de direitos nos territórios populares e ampliado a letalidade de jovens. O discurso centrado de que o mal está na favela e precisa ser combatido é fortalecido com a espetacularização das intervenções militares do exército e da polícia na retomada dos territórios quando da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora.
O roteiro da intervenção é digno de um filme de ação e guerra, onde os mocinhos, nesse caso os policiais ou soldados, alcançam o ponto mais alto da comunidade e fincam a bandeira do país, uma demonstração clara de conquista e colonização do território bárbaro. Outra contradição muito grande é que se observarmos os números da violência no Brasil vamos encontrar estatísticas assustadoras em vários estados. O Rio de Janeiro, embora apresente dados expressivos, não é o estado com as maiores taxas. De modo que a visibilidade da cidade do Rio de Janeiro, em especial, também coloca em questão o sentido de determinadas intervenções, como a intervenção das forças militares. Enfim, estamos falando de um quadro muito complexo de questões que não podem ser solucionadas sem que haja um planejamento muito delicado e um processo em longo prazo para que tenhamos efeitos positivos para a sociedade.
IHU On-Line - Quais foram os fatores que levaram a essa situação de insegurança no Rio de Janeiro?
Mário Pires Simão - Alguns fatores já foram mencionados anteriormente. Acredito que a segurança pública ou sua fragilidade está diretamente relacionada com as históricas desigualdades sociais que marcam a vida da população brasileira e, consequentemente, a da população do Estado do Rio de Janeiro. Essa desigualdade se expressa por condições muito distintas de acesso a direitos entre seus moradores. Viver em favelas e bairros periféricos da cidade, por exemplo, representa enfrentar dificuldades cotidianas para ter o mínimo de dignidade. A distinção territorial de direitos fica nítida na medida em que o acesso à educação, saúde, lazer, cultura, entre muitos outros direitos se tornam experiência possível para uns, enquanto para outros é um grande desafio. Estas desigualdades criam distâncias físicas, mas também simbólicas que tendem, em longo prazo, a gerar relações de desconfiança, desrespeito e violência. Mas podemos dizer que existem políticas que se tornaram constantes em relação à segurança pública que são sucessivos erros. Uma delas é o descaso com que o direito à segurança dos moradores de periferias e favelas é tratado pelo staff governamental. A militarização caracteriza as ações do Estado nestes territórios.
Para emprestar sensação de segurança às classes médias, uma política de guerra às drogas leva constantemente o terror a tais moradores, colocando-os sempre entre os grupos criminosos armados e o aparato policial. Outra barbaridade neste campo é a associação entre as drogas e as armas. É no mínimo contraditório que a Polícia Federal não consiga fazer frente à entrada ilegal de armas no território brasileiro, deixando as nossas fronteiras cheias de brechas para que estes equipamentos cheguem até as cidades, como o Rio de Janeiro. Por fim, eu diria que a incapacidade das forças de segurança do Estado, seja pelo sucateamento de sua estrutura, seja pela promiscuidade entre elementos das corporações policiais com atividades ilícitas, torna a segurança pública um projeto inalcançável.
IHU On-Line - Quais são os principais efeitos, erros e acertos da intervenção militar no Rio de Janeiro? Ela era necessária ou outras medidas poderiam ter sido adotadas na ocasião?
Mário Pires Simão - Não consigo enxergar acertos neste processo. Nos parece uma intervenção que teve um caráter muito mais político do que técnico, uma vez que no momento do lançamento do decreto, outros estados brasileiros experimentavam quadros mais graves de violência urbana. A intervenção nos pareceu mais uma jogada de marketing de dois governos completamente desacreditados em seus objetivos e suas intencionalidades, isto é, o governo federal, chefiado então pelo presidente Michel Temer e o governo do estado, nas mãos do governador Luiz Fernando Pezão. Por outro lado, a natureza militar da intervenção coloca também em questão o seu objetivo. Constitui um ataque frontal à democracia. Segurança não se dá pela via da repressão, da ampliação de armamentos com ações militares. Isso não assegura, não garante e não amplia direitos, em especial, não preserva a dignidade humana.
Com o objetivo de “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”, o decreto estabelece, conforme apontado pela Associação Juízes para a Democracia em março de 2018, uma fundamentação rasa, não fornecendo condições mínimas para autorizar este tipo de intervenção. A correlação que é feita entre ordem pública e segurança pública não é razoável e não justifica as medidas adotadas. Então certamente estamos diante de uma ação grotesca. Durante o período de intervenção militar no conjunto de favelas da Maré em 2014, o governo brasileiro gastou mais de R$ 600 milhões e não teve qualquer resultado concreto de retomada do controle destes territórios, mas deixou um saldo altíssimo de violações de direitos. É preciso usar mais da inteligência e da capacidade técnica de que se dispõe para construir uma política de segurança pública mais eficaz. Isso é possível e tem precedentes em muitos países. Mas passa sobretudo por uma repactuação entre Estado e sociedade, uma vez que os territórios populares não podem mais ser vistos como problema, mas como parte da solução dele.
IHU On-Line - Há alguns dias foram divulgadas notícias na imprensa de que os moradores dos complexos da Maré, da Penha e do Alemão denunciaram abusos de agentes militares que participavam de megaoperações nas comunidades. O senhor tem informações sobre esses casos?
Mário Pires Simão - As denúncias de violações de direitos são constantes. Em geral os grupos organizados, mobilizados geralmente por ONGs, são os principais interlocutores com quem os moradores podem encontrar caminhos para efetivar estas denúncias. Eu não sei exatamente a que notícias vocês estão se referindo, mas é muito comum que as operações policiais, incluindo incursões pela favela, aconteçam em momentos muito impróprios e deixem a população completamente exposta. Por outro lado, conforme mencionamos, as corporações policiais atuam nestes territórios tendo como pressuposto que ali encontra-se o território do inimigo e que seus moradores são parte do exército inimigo. Esta representação hegemônica tende a sustentar que as ações sejam demasiadamente truculentas e extrapolem os limites da própria lei. Na Maré, por exemplo, a ONG Redes da Maré, juntamente com a Anistia Internacional e o Observatório de Favelas, lançou uma campanha denominada “Somos da Maré, temos direitos” em que ela orienta o morador como ele deve agir em caso de alguma abordagem policial na rua ou em sua casa. O mesmo grupo presta assessoria jurídica e faz o acompanhamento de situações de violação de direitos, como a que aconteceu em 2013 depois que um sargento do BOPE morreu na comunidade. A sequência de ações da polícia nesta ocasião gerou a morte de nove pessoas.
A legalidade de determinadas operações é bastante questionável. As últimas intervenções, por exemplo, que vêm acontecendo entre junho e agosto de 2018, levaram pânico para milhares de moradores do Alemão, da Maré e da região da Penha. Existem relatos de rajadas de tiro sendo disparadas de dentro dos helicópteros da polícia em direção às comunidades.
IHU On-Line - Em outra entrevista que nos concedeu, o senhor mencionou que o enfrentamento da violência nas favelas cariocas é uma questão de política pública e não de polícia. Que tipo de política pública funcionaria como uma alternativa à intervenção federal no Rio de Janeiro?
Mário Pires Simão - Em primeiro lugar, quando se trata de uma política pública de segurança, estamos falando de algo que supere a lógica dos programas de governo, que se alteram a cada grupo político que ocupa as cadeiras do executivo. A intervenção federal é uma demonstração evidente de atuação na emergência, que limita-se a processos de contenção e controle social sem um olhar mais abrangente e qualificado dos desafios para garantir o direito à segurança para todos os cidadãos independente de sua condição social, econômica, racial, de gênero etc. Uma política pública de segurança deve estar antenada com os acordos e tratados internacionais que colocam a dignidade humana em primeiro lugar, por isso deve estar sempre em busca de uma agenda pública que se comprometa com os desafios que a sociedade está enfrentando. Por isso mesmo, não se trata de um caso de polícia, embora esta corporação tenha seu compromisso nesse processo. Uma agenda pública no caso do Rio de Janeiro e do Brasil precisa efetivamente alcançar temas fundamentais como política de drogas, alterando o quadro de enfrentamento bélico no qual ela está assentada. Deve construir um processo de reforma do modelo policial que permita a refundação das polícias, usando de todos os esforços de mudança da legislação para que isso se consolide. Nesta agenda a repactuação entre o Estado e as comunidades que vivem em territórios periféricos e favelas é indispensável. Não podemos mais conviver com esta crescente letalidade de jovens, em especial dos jovens negros que residem nestes territórios.
Não é aceitável que em pleno 2018 se cogitem mandados coletivos de busca e apreensão em favelas, que execuções extrajudiciais se tornem a regra, configurando um exemplo de Estado de exceção. Os moradores destes territórios são sujeitos de direitos e devemos pensá-los como parte do processo de construção de alternativas. Então, fica explícito que os pressupostos na construção da política fazem toda a diferença na sua operacionalização e cabe ao Estado em suas diferentes esferas de poder não ser cúmplice ou omisso destas situações alarmantes. Uma agenda afirmativa de direitos, que respeite os grupos sociais mais vulneráveis e que amplie a possibilidade de construção de novos caminhos passa pelo investimento em infraestrutura, educação e cultura, implica na superação do racismo estrutural que marca a vida das populações majoritariamente negras que vivem nestes territórios.
IHU On-Line - Quais são as capacidades do Estado para garantir a segurança pública?
Mário Pires Simão - No meu entendimento, todas. O Estado dispõe de aparato tecnológico, equipe técnica qualificada, caminhos para construir legalidade para aquilo que é necessário realizar. É uma questão de vontade política, inversão de prioridades e foco.
IHU On-Line - Como a temática da violência, do tráfico de drogas e da segurança pública tem sido tratada no debate das eleições governamentais no Rio de Janeiro? Como os candidatos ao governo estadual têm se pronunciado sobre isso?
Mário Pires Simão - Não fiz uma análise depurada disso, contudo historicamente existem aqueles candidatos mais alinhados a uma concepção mais democrática e que reconhecem os direitos dos moradores das periferias, em geral são os candidatos de partidos de esquerda. Uma lástima que o discurso de enfrentamento bélico, de segmentação e de repressão ainda seja a tônica de muitos outros candidatos. Mas honestamente, como disse, não posso fazer uma análise muito profunda.
IHU On-Line - Que questões são urgentes de serem tratadas em relação a essa temática no estado do Rio de Janeiro?
Mário Pires Simão - Acho que estas questões foram tratadas na questão da política pública. Mas do ponto de vista temático creio que estamos diante de alguns desafios, a saber: em primeiro lugar, pensarmos no processo de desmilitarização no que concerne à segurança cidadã, um projeto que se acalenta há tempos em alguns setores da sociedade, mas que precisa ser amadurecido por todos nós. Em segundo lugar, não se pode mais tolerar o grau de desrespeito ao conjunto de direitos dos moradores de periferia, que são obrigados a conviver com as violações de direitos operadas pelos grupos civis armados e pelo próprio Estado. Sobre isso é preciso sofisticar os mecanismos de garantia de direitos para estas populações, bem como as formas de controle social sobre as ações do Estado nestes territórios. Em relação ao pacto social no que tange à segurança, é fundamental identificar quem são hoje os sujeitos sociais coletivos que podem atuar para a construção de mediação de conflito.
A reduzidíssima expectativa que esta população tem sobre a ação do poder público também se ancora no fato de que o Estado, quando busca algum diálogo com os moradores destes territórios, em geral desconhece as diferentes forças que ali atuam. Por fim, como disse anteriormente, superar esta lógica da guerra às drogas, que centra enfrentamento no inimigo presente nas favelas, é urgente. O universo das drogas precisa ser tratado como um caso de saúde pública e não simplesmente como uma questão de segurança.
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Enfrentamento da segurança pública precisa superar a lógica dos programas de governo. Entrevista especial com Mário Pires Simão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU