26 Junho 2018
Em questões morais, a Igreja deve aprender com as experiências das pessoas batizadas.
A opinião é do teólogo e padre estadunidense Charles E. Curran, professor da cátedra Elizabeth Scurlock de Valores Humanos na Southern Methodist University, em Dallas.
O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 25-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A encíclica Humanae vitae, do Papa Paulo VI, foi divulgada publicamente na segunda-feira, 29 de julho de 1968. Ela reiterava a condenação da contracepção artificial para os cônjuges. Muitos no mundo católico esperavam uma mudança no magistério papal, com base nas novas abordagens do Concílio Vaticano II (1962-1965) e no chamado para mudar o ensino que estava no “Relatório da Maioria” da comissão papal que estudou a questão, que havia vazado no ano anterior. Mas, na primavera de 1968, começaram a circular rumores de que o papa iria publicar uma encíclica reafirmando a proibição da contracepção.
A Humanae vitae levantou duas questões diferentes – o ensino sobre contracepção e sexualidade, e como a Igreja desempenha seu papel de ensino de autoridade. A segunda questão é mais extensa e importante, e é o assunto central deste ensaio. O ensino de autoridade sobre a contracepção, como explicado na coletiva de imprensa do Vaticano que divulgou a encíclica, envolve o ensinamento de autoridade não infalível da Igreja.
Os defensores da dissidência de tal ensinamento, incluindo eu mesmo, propuseram três razões básicas para justificar tal discordância (no dia seguinte ao lançamento da Humanae vitae, eu fui o porta-voz e líder de um grupo de teólogos que divulgou uma declaração pública dizendo que os católicos podiam divergir na teoria e na prática do ensino da Humanae vitae sobre a contracepção artificial e, ainda assim, se considerarem católicos romanos leais. Mais de 600 estudiosos católicos assinaram essa declaração).
Primeiro, a história mostra que a Igreja mudou seu ensino sobre um grande número de ensinamentos morais significativos ao longo dos anos, como a escravidão, o direito do acusado de permanecer em silêncio, a democracia, os direitos humanos, a liberdade religiosa e o papel do amor e do prazer nas relações sexuais conjugais.
Segundo, o ensino não infalível, por sua própria natureza, é falível. “Não infalível” é um subterfúgio para evitar o uso da palavra “falível”.
Terceiro, o principal mestre da Igreja é o Espírito Santo. Sim, o Espírito fala através do magistério hierárquico, mas o papel do Espírito é mais amplo do que o papel do magistério hierárquico. Por meio do batismo, todos os cristãos participam do papel de ensino e de profecia de Jesus.
O argumento mais forte contra a legitimidade de tal dissensão insiste em que o Espírito Santo guia a Igreja e nunca permitiria que o ensino da Igreja estivesse errado em um assunto que afeta tantas pessoas em suas vidas diárias. Em vez de ajudar as pessoas a viverem a vida cristã, será que o Espírito permitiria que a Igreja as desencaminhasse? A refutação mais forte é que a escravidão era uma questão muito mais significativa e importante do que a contracepção para os cônjuges.
Imediatamente após a Humanae vitae, uma tempestade de debates surgiu sobre a dissensão e sua legitimidade, mas, com o passar do tempo, o debate diminuiu bastante. Os cônjuges católicos não são fundamentalmente diferentes dos cônjuges protestantes no uso de contraceptivos artificiais no matrimônio. A grande maioria dos teólogos católicos, mas de modo algum todos eles, reconhece a legitimidade da dissidência no caso da contracepção.
Papas e bispos continuaram defendendo energicamente o ensino contrário à contracepção, nunca reconheceram explicitamente a legitimidade da dissidência e puniram alguns teólogos que defendiam tal dissensão, mas não incomodaram as consciências daqueles cônjuges que usavam a contracepção.
Cinquenta anos após a Humanae vitae, há pouca ou nenhuma discussão sobre esse assunto. Há muito tempo, os casais católicos formaram a sua consciência sobre a questão da contracepção. Padres e confessores majoritariamente aceitaram, na prática, a legitimidade de tal dissidência. Hoje, pode-se afirmar que a situação atual da Igreja em geral justificou a legitimidade de tal discordância.
Mas há problemas com essa solução atual. O Pe. Andrew Greeley, o principal sociólogo católico nos Estados Unidos, apontou em 1976 que a publicação da Humanae vitae causou um grande êxodo da Igreja Católica no país. É seguro dizer que, com o passar do tempo, a contracepção não tem sido uma razão para as pessoas deixarem a Igreja, pois elas decidiram permanecer na Igreja e praticar a contracepção. No entanto, muitas deixaram a Igreja por outras razões.
A situação atual repousa sobre uma diferença significativa entre o ensino hierárquico oficial e o posicionamento dos católicos. A Igreja em geral deveria estar preocupada principalmente com a verdade moral, mas a situação contemporânea prescinde dessa importante questão da verdade moral.
Além disso, a situação atual contribui para a crescente falta de credibilidade em relação ao ofício de ensino da Igreja. Mesmo aqueles que permaneceram na Igreja muitas vezes reconhecem que seu ofício de ensino perdeu muita credibilidade. Tal situação não é boa para a Igreja.
Até este ponto, discuti a Humanae vitae e a contracepção à luz da lente da dissidência, que foi a principal questão eclesial levantada nas discussões após a publicação dessa encíclica.
Mas agora acho que há uma lente melhor para usar na discussão da contracepção e da Humanae vitae – o conceito do sensus fidelium e seu papel no ensino da Igreja.
O termo sensus fidelium significa literalmente o senso dos fiéis ou a intuição doutrinal dos crentes. O conceito tem raízes na Escritura e foi desenvolvido ao longo da tradição, mas especialmente no século XIX, para explicar o desenvolvimento da doutrina.
Depois do Concílio Vaticano I, no entanto, a distinção entre a Igreja que ensina e a Igreja que aprende relegou a ideia do sensus fidelium às margens. O Vaticano II, com o seu entendimento da Igreja como povo de Deus, rejeitou toda a compreensão da distinção entre a Igreja que ensina e a Igreja que aprende, e reconheceu o importante papel do sensus fidelium, até mesmo afirmando que ele é infalível.
É claro que o Concílio não entrou nas intrincadas realidades de determinar exatamente o que é o sensus fidelium e como ele é determinado e entendido. No mínimo, todos deveriam concordar com o cardeal John Henry Newman sobre a importância de consultar os fiéis sobre questões de doutrina.
Na última década, os teólogos enfatizaram o papel do sensus fidelium em relação à moral e não apenas às crenças. A moral, pela sua própria natureza, é bem diferente das crenças, já que a moral lida com ações concretas que, neste caso, ocorrem no mundo. Não há dúvida de que as crenças podem se desenvolver e até mesmo mudar com o tempo. Mas a moral é muito mais aberta à mudança, porque ocorre nas circunstâncias históricas em mudança. Assim, em questões de moral, a experiência dos batizados em suas vidas diárias forma uma parte importante do sensus fidelium.
A determinação do sensus fidelium envolve um verdadeiro discernimento. A história mostra que as pessoas que creem frequentemente fazem ações erradas. Além disso, o discernimento não pode ser reduzido apenas a números ou à regra da maioria. O discernimento se esforça para discernir a verdadeira ação do Espírito Santo, que envolve a experiência das pessoas em suas vidas diárias, mas também muitos outros aspectos. O que os leigos fazem em suas vidas diárias deve sempre ser comparado com as várias formas pelas quais o Espírito Santo opera na Igreja.
No fundo, porém, resta que a Igreja pode aprender e aprendeu com a experiência das pessoas batizadas em seus esforços seculares e suas vidas diárias.
Um reflexo de como o ensino da Igreja sobre questões morais mudou indica o importante papel que tem sido desempenhado pela experiência do povo cristão. Alguns exemplos vêm à mente.
Por muito tempo, o ensino católico não deu nenhum papel ao prazer e ao amor nas relações sexuais conjugais. Isso mudou, especialmente no século XX, quando o papel do prazer e do amor começou a ser destacado. Papas, bispos e teólogos aprenderam com a experiência vivida dos casais nesse assunto. Afinal, papas, bispos e teólogos (exceto muito recentemente) não se casavam.
Um bom exemplo de como os teólogos mudaram seus posicionamentos com base na experiência dos casais cristãos é ilustrado no trabalho do padre jesuíta Josef Fuchs, como membro da chamada comissão papal sobre o controle de natalidade.
Em 1964, Fuchs, reconhecido como um dos principais teólogos morais católicos do mundo e lecionando na Universidade Gregoriana em Roma, apoiou fortemente o ensino existente sobre a contracepção. Na quarta reunião em 1965, ele surpreendeu os outros membros da comissão, reconhecendo que o ensino era reformável, mas ainda achava que ele mantinha sua validade.
Na quinta sessão, Fuchs mudou de ideia sobre a questão da contracepção. Ele ficou muito impressionado com o testemunho dos casais leigos na comissão. A experiência de casais católicos comprometidos levou-o a mudar uma posição que ele havia ensinado por muitos anos (eu havia sido um de seus alunos) e defendido em seus trabalhos publicados sobre sexualidade e castidade.
Um exemplo anterior de mudança ocorreu no século XVI no ensino sobre a cobrança de juros sobre um empréstimo. Três autênticos documentos de ensino papal naquele século reiteraram a tradicional condenação por parte da lei divina de cobrar juros sobre um empréstimo. Os teólogos, no entanto, baseados na experiência dos cristãos envolvidos no comércio, propuseram a legitimidade dos juros sobre empréstimos.
John T. Noonan Jr., que escreveu extensivamente sobre essa questão, conclui que os atos da autoridade papal isolados do apoio teológico e contrários às convicções dos leigos envolvidos no comércio não poderiam prevalecer, por mais que refletissem com precisão o ensino de uma era anterior. A experiência e o julgamento dos leigos contribuíram grandemente para a mudança no ensino moral, mesmo que os documentos papais ainda estivessem em vigor.
Sem dúvida, a maior mudança que ocorreu no ensino moral e social no século XX foi a mudança no Vaticano II de aceitar a liberdade religiosa. O Papa Leão XIII, no fim do século XIX, condenou veementemente a liberdade religiosa em várias encíclicas. Os papas do século XX seguiram esses passos. As discussões do Vaticano II sobre a liberdade religiosa deram uma grande atenção à justificação de uma mudança tão dramática. Como algo poderia ser verdade no fim do século XIX e o seu oposto ser verdade nos anos 1960?
O primeiro parágrafo da Declaração sobre a Liberdade Religiosa é mais esclarecedor. Um senso de dignidade da pessoa humana tem se expressado cada vez mais na consciência das pessoas contemporâneas com o reconhecimento da necessidade de uma liberdade de ação responsável. Também se demanda que sejam estabelecidos limites constitucionais aos poderes do governo para respeitar o livre exercício da religião na sociedade humana. Esse Concílio reconhece cuidadosamente esses desejos e os declara em grande harmonia com a verdade e a justiça.
Dois aspectos se destacam nesse parágrafo de abertura. Primeiro, a Igreja hierárquica aprendeu com os desejos e as experiências do povo cristão. Segundo, o próprio ensino já era verdade mesmo antes de o Concílio reconhecer que era assim. Não pode haver uma ilustração mais clara da necessidade de consultar e aprender com a experiência dos cristãos comprometidos em questões de moral.
Observe-se a ênfase nas circunstâncias em mudança que ocorrem no mundo político e moral. O sensus fidelium, reconhecendo fortemente as experiências e os desejos das pessoas comprometidas contemporâneas, havia chegado à verdade da liberdade religiosa antes do ensino hierárquico da Igreja.
À luz da compreensão do sensus fidelium, do papel significativo das pessoas batizadas comprometidas em suas vidas diárias no mundo secular e dos exemplos de mudança discutidos acima, um forte argumento pode ser feito de que a Igreja Católica hoje mudou seu ensino e aceitou a moralidade da contracepção artificial para os cônjuges.
Imediatamente após a Humanae vitae, a principal questão eclesiológica dizia respeito à dissidência e sua legitimidade. Hoje, parece mais apropriado usar a lente do sensus fidelium na tentativa de entender e interpretar a abordagem da Igreja sobre as questões levantadas pela Humanae vitae. Surge então a pergunta: e o futuro? O ensino da Igreja sobre a sexualidade em geral perdeu muita credibilidade.
No futuro, a Igreja precisa reconhecer a importância das experiências do povo cristão em contribuir para a compreensão do ensino moral. Esse é um desafio assustador. Todos reconhecem que há alguma vagueza sobre o sensus fidelium na teoria. Um passo ainda mais difícil é o prático, no sentido de averiguar e determinar o que é o sensus fidelium em questões particulares.
Um aspecto ainda mais problemático envolve as estruturas práticas de como incorporar as experiências do povo cristão no ensino da Igreja. Tudo o que eu posso fazer aqui é apontar o problema e mostrar a necessidade de a Igreja desempenhar melhor seu papel de ensino sobre questões morais.
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A Humanae vitae e o sensus fidelium. Artigo de Charles Curran - Instituto Humanitas Unisinos - IHU