Por: Patricia Fachin | 13 Março 2018
“Existe uma tendência histórica no Brasil relacionada à desigualdade de terras e à concentração ou por omissão ou por pró-atividade, fomentada pelo Estado por meio de políticas públicas”, diz Gustavo Ferroni, assessor de Políticas e Incidências da Oxfam Brasil, ao comentar o Relatório Terrenos da desigualdade. Terra, agricultura e desigualdades no Brasil rural, publicado pela instituição recentemente.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Ferroni afirma que a desigualdade no Brasil está diretamente relacionada à posse da terra, seja em áreas urbanas ou rurais, e explica como as políticas públicas para a agricultura sempre favoreceram a concentração de terra. “As políticas públicas de modernização e de financiamento tenderam a se concentrar nas médias e grandes propriedades. Pode ser que houvesse um viés ideológico nisso, mas também tem uma questão de facilidade. É mais fácil trabalhar com grandes e médias propriedades, pois elas já têm, naturalmente, mais recursos, e é possível atingir uma área produtiva com menos empréstimos. Porém, esse é um jeito muito ruim de fazer políticas públicas, pois é desconexo da realidade e da necessidade da realidade. Portanto, no mínimo, faltou uma análise do impacto que isso teria a longo prazo”, pondera.
As isenções fiscais e os impostos sobre a terra também têm favorecido a concentração. De um lado, diz, “todas as commodities que são exportadas, seja do agronegócio ou da mineração, recebem muita isenção fiscal” e, de outro, “o imposto sobre terras é um problema histórico: apesar de ser progressivo, ele incide pouco sobre a propriedade que não cumpre seu papel”.
Na avaliação de Gustavo Ferroni, ainda é possível avançar na pauta da democratização da terra, especialmente em relação às áreas públicas da União. “A questão que deve ser discutida é qual a função das terras públicas: vamos destiná-las para a reforma agrária, para a distribuição, ou vamos criar mais unidades de conservação? Esse é um lado da discussão em que, em teoria, poderíamos ter mais condições de avançar”, conclui.
Gustavo Ferroni é graduado em Relações Internacionais e atualmente é assessor de Políticas e Incidência da Oxfam Brasil.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Segundo dados do Incra, pela primeira vez em vinte anos nenhuma família foi assentada no país. Quais as razões disso?
Gustavo Ferroni — Existe uma tendência histórica no Brasil relacionada à desigualdade de terras e à concentração ou por omissão ou por pró-atividade, fomentada pelo Estado por meio de políticas públicas. Historicamente, desde o começo a Lei de Terras já fomentava a propriedade privada pela compra de terra e restringia a posse e a distribuição de terras. Desde então, sempre se tomou uma série de decisões, de marcos regulatórios e de políticas públicas que vêm privilegiando as grandes propriedades.
Durante o regime militar, a agricultura foi orientada para uma discussão de desenvolvimento tecnológico que aumentou muito a produtividade da agricultura brasileira, mas todo esse investimento foi centrado nas grandes propriedades e não no pequeno agricultor, em especial no agricultor familiar. Esse mesmo sistema continuou depois, com a redemocratização. Embora tenham se criado muitos instrumentos para a agricultura familiar e para a distribuição de terras, pouco foi feito diante da necessidade e muito pouco em comparação com o fomento do que chamamos de agricultura patronal — o agronegócio. Essa tendência foi mantida durante o governo Fernando Henrique e depois durante o governo Lula.
Com relação à reforma agrária, em especial, se avançou bastante em programas, especialmente para as mulheres, mas depois isso foi diminuindo durante o governo Dilma. Depois do impeachment e da crise institucional que estamos vivendo, percebemos essa diminuição total no número de assentamentos. Mas isso se insere em um contexto de um governo que tomou várias decisões muito ruins em termos de um retrocesso na distribuição de terras e na garantia do direito de acesso à terra. Com isso vimos a diminuição de áreas protegidas e de unidades de conservação. Vimos também o que se chama de MP da Grilagem [Medida Provisória 759], que expandiu o programa Terra Legal para formalizar a apropriação de terra pública para até 2.500 hectares.
IHU On-Line — Segundo o relatório da Oxfam, intitulado Terrenos da desigualdade. Terra, agricultura e desigualdades no Brasil rural, há um vínculo direto entre a propriedade da terra e o exercício do poder político no Brasil. Por quais razões essa relação tem sido estreitada ao longo da história?
Gustavo Ferroni — A terra é um dos meios de produção mais importantes. Basta ver que em nosso país o governo, no final do ano passado e no começo deste ano, comemorou o suposto bom desempenho econômico com base na sobressafra agrícola. A agricultura é uma vantagem competitiva para o Brasil, é um setor econômico importante, sempre foi e, provavelmente, continuará sendo. Isso faz com que os atores políticos e econômicos que fazem parte da agricultura tenham um peso forte no país, e eles também são muito articulados — todos conhecem a bancada ruralista e a maneira como eles atuam no Congresso Nacional. Logo, eles têm um peso político importante e acabam influenciando todos os governos, de todas as orientações.
No relatório que lançamos no ano passado — A distância que nos une —, fizemos uma análise e percebemos que a desigualdade e a riqueza no Brasil são menos relacionadas à questão financeira e mais em relação às propriedades concretas. Ou seja, a desigualdade tem muito a ver com propriedade de terra, sejam elas urbanas ou rurais. Isso é típico de um país em desenvolvimento. A elite aqui está muito ligada à propriedade de imóveis e não tem todo seu patrimônio no mercado financeiro.
IHU On-Line — Como o processo de modernização da agricultura brasileira na década de 1960 e posteriormente as políticas de crédito não contribuíram para o aprofundamento das desigualdades no campo? Por que a modernização não significou justamente o contrário, ou seja, a superação das desigualdades no campo?
Gustavo Ferroni — Isso acontece até hoje. As políticas públicas de modernização e de financiamento tenderam a se concentrar nas médias e grandes propriedades. Pode ser que houvesse um viés ideológico nisso, mas também tem uma questão de facilidade. É mais fácil trabalhar com grandes e médias propriedades, pois elas já têm, naturalmente, mais recursos, e é possível atingir uma área produtiva com menos empréstimos. Porém, esse é um jeito muito ruim de fazer políticas públicas, pois é desconexo da realidade e da necessidade da realidade. Portanto, no mínimo, faltou uma análise do impacto que isso teria a longo prazo.
O que apontamos em nosso relatório é que a concentração de maquinário, de treinamento e de financiamento em grandes propriedades levou a uma maior concentração de terras. Isso acabou transformando os agentes econômicos, concentrou-se poder neles e eles foram comprando mais terras e avançando, porque foram se desenvolvendo, tendo mais recursos e, assim, foram avançando sobre os pequenos. A questão de terras no Brasil não se refere somente às políticas e aos marcos regulatórios de terra, mas também às políticas de fomento à agricultura, que têm um impacto muito grande nesse processo. O apoio à agricultura tem que ser pensado também como instrumento de distribuição de terras.
A diferença hoje entre o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - Pronaf, que é um financiamento para a agricultura familiar, e o financiamento para a agricultura patronal, é gigantesca: este último é quatro ou cinco vezes maior, até mais. Além disso, os agricultores têm mais dificuldade de acessar treinamentos e linhas de financiamento específicos. Portanto, as políticas públicas de fomento à agricultura também contribuíram para um processo de concentração de terras.
IHU On-Line — Outro ponto do relatório trata das isenções fiscais concedidas ao setor do agronegócio. Pode nos dar alguns exemplos de quais isenções fiscais foram concedidas e como elas têm contribuído para a concentração de terras e o aprofundamento das desigualdades no campo?
Gustavo Ferroni — De um lado há uma grande isenção — que não é só para o agronegócio, mas que atinge muito o agronegócio — e, de outro, existe uma questão mais local, que é o imposto sobre terras diretamente. O imposto sobre terras é um problema histórico: apesar de ser progressivo, ele incide tão pouco sobre a propriedade que não cumpre seu papel. E, alguns anos atrás, passamos pela municipalização desse imposto, que é o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR. O problema é que os municípios, em termos de poder relativo frente aos grandes produtores, têm menos capacidade ainda de levar adiante e desenvolver uma tabela do ITR que fosse um instrumento tanto de arrecadação para o município, que seria importante, quanto um instrumento para coibir a concentração de terras. Então, o ITR, no final, apesar de ter uma tabela progressiva, não funciona.
Outra questão é que existe o problema das isenções fiscais voltadas para a exportação. O que acontece no nosso país é que todas as commodities que são exportadas, seja do agronegócio ou da mineração, recebem muitas isenções fiscais. E, especificamente na agricultura, isso está privilegiando os grandes proprietários, o que gera uma “vantagem competitiva” para eles em relação aos pequenos proprietários; não em termos de exportação, mas de desenvolvimento da sua propriedade e da sua produção. A agricultura familiar exporta muito pouco, é muito mais voltada para o mercado interno, para o abastecimento das grandes e pequenas cidades, e ela não recebe essas vantagens. Esse é um problema criado pela Lei Kandir, que é uma renúncia fiscal de ordem gigantesca.
IHU On-Line — Em que circunstâncias o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural foi criado? O que seria uma alternativa a ele? Existe alguma proposta de revisão do ITR?
Gustavo Ferroni — O ITR é um imposto muito antigo, se não me engano foi criado na passagem do século XIX para o XX, e naquele momento era visto como um imposto importante, porque o Brasil não era um país urbanizado e industrializado. Ele nunca foi um instrumento-chave de arrecadação do Estado brasileiro e continua não sendo. Foram feitas mudanças importantes nele, entre elas a municipalização. Mas, se olharmos os impostos sobre propriedades e terras no Brasil, eles são municipalizados, porque isso gera IPTU. No entanto nem o IPTU é tão implementado no Brasil, pois muitos municípios não cobram esse imposto. Dessa forma, temos um problema sistêmico ao cobrar imposto sobre propriedade. Dentro da arrecadação geral no Brasil, os impostos dessa ordem, como IPTU, ITR, IPVA, são impostos baixos e correspondem a pouco da arrecadação. Municípios, estados e governo federal arrecadam muito mais em cima de renda do trabalho, do consumo e dos serviços.
IHU On-Line — O relatório também apresenta um dado da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, sobre o valor das dívidas dos devedores da União relacionadas à terra. Juntas, essas terras somam 1,2 trilhão de reais. Qual é o perfil desses devedores?
Gustavo Ferroni — Esse era um trabalho que vinha sendo conduzido em uma parceria da Receita Federal com o Incra, com uma abordagem muito interessante, cruzando esses bancos de dados. O problema é que desde o impeachment e com a crise, esse trabalho não avançou ou, pelo menos, não escutamos mais falar desse trabalho publicamente.
De todo modo, grandes propriedades são devedoras históricas de impostos, em volumes muito grandes no Brasil, o que poderia ser uma ferramenta para negociar desapropriações e a construção de mais assentamentos para a reforma agrária. Quando o estudo foi lançado, esse parecia ser o propósito do Incra e da Procuradoria-Geral da Fazenda, mas esse trabalho, aparentemente, não avançou e imaginamos que isso seja uma consequência direta do que estamos vivendo.
IHU On-Line — Quais são as consequências sociais da concentração de terras no país?
Gustavo Ferroni — Uma das coisas mais interessantes que nosso relatório trouxe é que conseguimos contribuir para expandir um pouco essa discussão sobre a concentração de terras. Sabemos que há várias consequências da concentração de terra, como o êxodo rural, os conflitos entre trabalhadores rurais, agricultores familiares, povos indígenas, quilombolas e grandes proprietários de terras, e sabemos sobre a criação de uma elite que é capaz de influenciar o debate político no Brasil.
Mas tem um outro aspecto que apresentamos no relatório a partir de uma correlação estatística que fizemos sobre os municípios onde o PIB municipal do agronegócio era relevante — cidades em que pelo menos 25% do PIB municipal vinha do agronegócio. Com isso, medimos a concentração de terras nesses municípios e contrabalanceamos alguns outros índices, como, por exemplo, IDH, pobreza, concentração de renda e alguns outros. O que encontramos foi uma correlação entre os municípios de maior concentração de terra — esses em que o agronegócio é relevante no PIB municipal — e baixos níveis de IDH. Embora esses municípios concentrem mais renda, eles têm mais situações de pobreza em comparação com o resto. Ou seja, quanto mais concentração de terras existe nos municípios em que o agronegócio é uma atividade relevante, menor é o desenvolvimento. Isto quer dizer que eles têm pior distribuição de renda, têm mais pobreza e um IDH menor, considerando saúde, desenvolvimento infantil etc.
IHU On-Line — Segundo o relatório, outra consequência negativa da concentração de terra é a impossibilidade de um desenvolvimento sustentável no país. Pode nos dar alguns exemplos de como a concentração de terra tem gerado consequências no desenvolvimento sustentável?
Gustavo Ferroni — Algumas vezes esquecemos o quão central é a questão de terras para o nosso país. A Constituição Federal demandava que todas as terras indígenas fossem demarcadas e homologadas em cinco anos. No entanto, não se avançou nesse processo; se avançou um pouco na Amazônia, mas não fora dela. Nossa análise é de que isso está ligado à ocupação e à concentração de terras. A PEC do trabalho escravo seria um instrumento de distribuição de terras, porque previa a desapropriação dessas terras, mas também encontrou uma barreira. A reforma agrária, que propõe a distribuição de terras privadas e a distribuição de terras públicas para esse propósito, também não avança. Vimos, principalmente agora com esse governo, desde a redução de áreas protegidas, até a distribuição ou formalização da ocupação de terras públicas em níveis que nunca tínhamos visto antes.
A sociedade civil em geral já tinha criticado o programa Terra Legal durante o governo Lula por formalizar a ocupação até mil hectares, mas agora fomos até 2.500 hectares — não existe justificativa para isso. E o desmatamento continua avançando, muito ligado a terras griladas também. Os últimos governos, de Lula e Dilma, se esforçaram muito para avançar no que se chama governança da terra, para tentar resolver a questão fundiária em termos de formalização, que é muito importante também. Com isso, investiu-se muito no Cadastro Ambiental Rural - CAR e a maioria dos estados está chegando perto dos 100%. Mas essa discussão de formalização, talvez, seja muito importante para quem quer investir e ter um cenário claro. Essa formalização não avança, no entanto, nos problemas estruturais de distribuição da terra, que tem uma conexão direta com o desenvolvimento sustentável do Brasil, seja em termos de preservação do meio ambiente, seja em termos de justiça social.
IHU On-Line — Alguns intelectuais brasileiros ainda defendem que a Reforma Agrária é uma das únicas alternativas para resolver os problemas de desigualdade relativos ao acesso à terra no país. Na sua avaliação, essa é ou não uma alternativa viável nos dias de hoje? Se não, que outro tipo de política seria necessário para enfrentar o problema da desigualdade relacionada ao acesso à terra?
Gustavo Ferroni — A reforma agrária continua sendo uma necessidade premente, mas tem especificidades no Brasil. No país ainda temos muita terra pública não designada, devoluta, e quando Temer editou, no ano passado, a chamada MP da Grilagem, o que entra em disputa não são as terras privadas já consolidadas, mas as terras públicas, que são 86 milhões de hectares — cerca de 10% da área nacional. No Brasil existe a possibilidade de se avançar muito na reforma agrária sobre terras públicas e são essas terras que estão em disputa. A questão que deve ser discutida é qual a função das terras públicas: vamos destiná-las para a reforma agrária, para a distribuição, ou vamos criar mais unidades de conservação? Esse é um lado da discussão em que, em teoria, poderíamos ter mais condições de avançar.
A outra questão é avançar sobre a distribuição das propriedades privadas que não estão cumprindo com a sua função social, ou daqueles que estão, por exemplo, ocupando terra indígena. Temos que avançar principalmente na discussão sobre as terras indígenas.
IHU On-Line — Neste ano celebram-se os 30 anos da Constituição Brasileira. Entre os direitos garantidos a todo cidadão, destaca-se o direito à propriedade. Como esse direito tem sido tratado no Brasil? O que tem sido feito para garantir a efetividade desse direito e quais os desafios nesse sentido?
Gustavo Ferroni — A garantia da propriedade privada sempre ocorreu no Brasil, mas o acesso à terra e à propriedade para certos grupos sempre foi uma garantia desigual. Falamos muito da desigualdade econômica no Brasil, mas o país é desigual em diferentes níveis. E, infelizmente, desde a promulgação da Constituição, nós não avançamos em termos de distribuição de terras rurais ou urbanas como deveríamos. Comparado a outros países, principalmente a países do Sul, o Brasil até tem níveis razoáveis de reforma agrária, mas está muito distante da nossa necessidade e da extensão do nosso país. A Constituição, que está tão sob ataque agora, vai fazer 30 anos, mas infelizmente nunca foi implementada em muitos dos seus aspectos. E, na questão de terras, seja no cumprimento da função social da propriedade ou na questão das terras indígenas, infelizmente nenhum governo avançou como deveria.
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Discutir a função das terras públicas é fundamental para superar as desigualdades sociais. Entrevista especial com Gustavo Ferroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU