Por: Patricia Fachin | 07 Março 2018
Se na década de 1980 o principal desafio na área da saúde pública era reduzir os índices de mortalidade infantil, “hoje o grande desafio é reduzir a mortalidade entre jovens e adolescentes que estão sendo assassinados” no campo e na cidade, diz o especialista em Saúde Ambiental Fernando Carneiro à IHU On-Line.
Segundo ele, embora historicamente a violência tenha sido mais recorrente em zonas urbanas de pobreza, hoje, diz, a violência não se restringe mais às cidades. “Não existe mais aquela situação idílica de que viver no campo é sinônimo de não ter violência. O que percebemos, especialmente no Ceará, é que a violência no interior chegou com muita força”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Carneiro explicita as causas da violência e frisa que ela está associada ao modelo de desenvolvimento econômico, aos conflitos nas comunidades, aos problemas familiares e à ausência do Estado no campo. “Nos últimos dez anos, temos visto aumentar a violência que está relacionada com a disputa por água. Em muitas dessas comunidades, empresários colocam motobombas de forma ilegal para sugar a água dos rios de modo a utilizá-la nas plantações do agronegócio, deixando as comunidades à deriva”, denuncia.
Carneiro destaca ainda que as mulheres têm sido as maiores vítimas da violência. “Realizamos alguns estudos comparando a situação de violência entre a mulher urbana e a rural. Entre 2010 e 2012 o Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan do SUS mostrou que ocorreram 367.400 casos de violência e 66% desses casos foram contra mulheres. Então, quando discutimos violência, percebemos nesse universo a importância da mulher. Esses dados ainda precisam ser avaliados segundo a ‘ponta do iceberg’. Por exemplo, na área de agrotóxico, a cada caso notificado, outros 50 não foram notificados. No caso da violência contra as mulheres, precisamos buscar essa informação de subnotificação por conta de todas as barreiras que as mulheres encontram para denunciar casos de violência”.
Fernando Carneiro estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU no dia 20 de março, participando do Ciclo de estudos e debates Violências no mundo contemporâneo. Interfaces, resistências e enfrentamentos, ministrando a palestra Múltiplas faces da violência contra as populações do campo, da floresta e das águas e as alternativas democráticas.
Fernando Carneiro | Foto: Andriolli Costa
Fernando Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde — área de Concentração de Saúde Ambiental pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG. Atualmente é pós-doutor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como orientador o Prof. Boaventura de Sousa Santos. Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. É pesquisador da Fiocruz Ceará e do NESP UnB. Atualmente integra o GT de Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas - Obteia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que as pesquisas que o senhor tem desenvolvido no Observatório Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas – Obteia, nos últimos anos, revelam sobre a violência contra as populações do campo?
Fernando Carneiro – A violência no campo é um tema que nós pesquisadores da saúde podemos considerar como um bom exemplo para explicar o que é o conceito “Determinação Social da Saúde”. Esse conceito foi construído ao longo da história da luta por mais saúde no mundo e trata de questões de âmbito individual, comunitário e estrutural. Então, quando falamos de violência, estamos falando de múltiplas faces da violência. Existe a violência doméstica, intrafamiliar, que ocorre entre parentes e conhecidos. Além disso, existe a violência associada ao lugar onde se mora; hoje não existe mais aquela situação idílica de que viver no campo é sinônimo de não ter violência.
O que percebemos, especialmente no Ceará, é que a violência no interior chegou com muita força. Para se ter uma ideia, numa das comunidades rurais onde estamos fazendo a pesquisa do Obteia, foi assassinado um conselheiro local de saúde. Foi na zona rural de Tauá, Sertão dos Inhamus. Ele havia ido buscar sua aposentadoria no banco e foi cercado por um grupo de encapuzados quanto estava no chamado “carro de horário” (popular pau de arara) em plena zona rural remota. Quando ele desceu do caminhão e colocou a mão na perna, os assaltantes acharam que ele iria reagir, e o fuzilaram. Então, nesses lugares geralmente isolados, as populações têm sido vítimas de emboscadas e assaltos. Essa é uma violência associada ao descaso do Estado, que não garante segurança às famílias. Outro tipo de violência, cComo sabemos, é relatada pelaa Comissão Pastoral da Terra - CPT que publica desde 1983 um documento sobre as questões de violência no campo, mas casos são também pouco investigados. Somente em 2016, segundo a CPT, ocorreram um número crescente de violência e conflitos no campo. Foram 1079 conflitos por terra e 172 conflitos por água, esse último o número mais elevado desde que a CPT iniciou o registro em separado destes conflitos em 2002.
Nos últimos dez anos, temos visto aumentar a violência que está relacionada com a disputa por água. Em muitas dessas comunidades, empresários colocam motobombas de forma ilegal para sugar a água dos rios de modo a utilizá-la nas plantações do agronegócio, deixando as comunidades à deriva. Pude presenciar isso pessoalmente em comunidades quilombolas na Bahia no Vale do São Francisco durante uma Caravana Agroecológica do Semi Árido Bahiano. As comunidades, inclusive, são ameaçadas de morte. Então, a panorâmica inicial se dá nesses termos: existe uma violência intrafamiliar, uma violência entre as comunidades e uma violência estrutural.
Na década de 1980 o grande desafio da área de saúde pública era reduzir a mortalidade infantil, mas hoje o grande desafio é reduzir a mortalidade entre jovens e adolescentes que estão sendo assassinados. O número de mortes hoje no Brasil é maior que o número de mortes na Síria, que está em guerra, e 80% dos assassinados são negros. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública foram 278.839 ocorrências de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil, de janeiro de 2011 a dezembro de 2015, frente a 256.124 mortes violentas na Síria, entre março de 2011 a dezembro de 2015, de acordo com o Observatório de Direitos Humanos da Síria. Essa é uma característica urbana, mas também está se interiorizando.
Nosso observatório tem como foco trabalhar com as populações de campo, florestas e água, denominadas classicamente de rural, mas essa denominação não cabe mais para classificá-las, porque os extrativistas que vivem na Amazônia não se consideram camponeses, pois eles vivem da floresta. Do mesmo modo, uma pescadora da ilha da Maré, em Salvador, não se considera agricultora, mas marisqueira. Então, os movimentos sociais construíram esses novos conceitos, e uma das bandeiras de luta deles é o destaque que se dá à violência contra as mulheres.
IHU On-Line - Por que a violência contra as mulheres camponesas merece destaque na análise sobre violência no campo?
Fernando Carneiro – Porque as mulheres têm sido as maiores vítimas de violência. Existem duas questões principais que ajudam a responder à pergunta. A primeira é que no campo tudo é mais difícil, o acesso à saúde e a direitos é muito mais restrito. A segunda questão está associada à análise de gênero: as mulheres sofrem por conta do machismo e do patriarcado; até pouco tempo atrás somente os homens tinham o direito de receber lotes de terra em seu nome nos Programas de Reforma Agrária.
Realizamos alguns estudos comparando a situação de violência entre a mulher urbana e a rural. Entre 2010 e 2012 o Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan mostrou que ocorreram 367.400 casos de violência e 66% desses casos foram contra mulheres. Então, quando discutimos violência, percebemos nesse universo a importância da mulher. Esses dados ainda precisam ser avaliados segundo a “ponta do iceberg”. Por exemplo, na área de agrotóxico, a cada caso notificado, outros 50 não foram notificados. No caso da violência contra as mulheres, precisamos buscar essa informação de subnotificação por conta de todas as barreiras que as mulheres encontram para denunciar casos de violência.
IHU On-Line - Em quais estados a violência no campo é recorrente?
Fernando Carneiro – Em relação à violência nos estados da federação, fizemos uma classificação da violência contra a mulher rural neste mesmo período entre 2010 e 2012. O Distrito Federal é o estado que tem a maior taxa de violência no campo: 263 a cada 100 mil mulheres, seguido dos estados do Acre e São Paulo. Eu vivi 15 anos em Brasília e a zona rural de lá fica a meia hora da cidade, então, existe uma série de condições que nos fazem perguntar se há mais violência de fato em Brasília ou se as mulheres de lá estão mais empoderadas do que as de outros estados ou contando com políticas públicas que estão garantindo apoio para visibilizar a violência. Eu confesso que esses são dados iniciais e ainda temos de analisá-los para responder a essa questão.
Também fizemos uma caracterização de quem são os agressores. Em relação ao número de agressores envolvidos na violência, 69,9% dos casos relatados registraram apenas um agressor, e o sexo masculino é responsável por 66,7% dos casos de agressão. Os principais agressores das crianças são amigos e conhecidos. Desses, 16,8% são a própria mãe e 15,9%, o próprio pai. Se somarmos as violências cometidas pela mãe, o pai e o padrasto, chegamos a um percentual de mais de 42% de violência. Esses dados corroboram o que outros estudos já fizeram em relação a quem são os agressores na família. Por isso eu falei inicialmente em determinação social, porque quase metade da violência cometida contra crianças ocorre dentro de casa. Depois, soma-se a isso a violência nas comunidades e a violência decorrente da estrutura do Estado. Todos esses tipos de violência se relacionam e se potencializam em termos rurais, sociais e de raça. A raça negra é potencializada; basta vermos toda a questão do racismo.Com a raça negra a questão é potencializada. Mais recentemente a Escola de Samba Paraíso Tuiuti, segundo lugar no Carnaval do Rio de Janeiro; basta vermos toda a questão do mostrou de forma brilhante as consequências ainda atuais do racismo e da herança dos tempos da escravidão para o Brasil.
IHU On-Line - O senhor disse que hoje o campo não é mais um ambiente tranquilo como foi antigamente e especialmente nos últimos anos têm aumentado os índices de violência nas áreas rurais. É possível estabelecer uma comparação entre a violência que ocorre no campo e nos espaços urbanos de modo geral?
Fernando Carneiro – São dinâmicas distintas. O que se sabia historicamente é que a violência era mais recorrente em zonas urbanas de pobreza, onde a violência era mais concentrada, mas temos percebido que ela não se restringe mais às cidades e áreas industriais. Por outro lado, os dados do dossiê da CPT vêm mostrando que após o golpe midiático, político e institucional, os casos de violência no campo estão aumentando. A tendência foi que os latifundiários e o agronegócio ganharam uma “licença para matar” e se agudizou a situação de violência.
Nos governos progressistas estávamos continuando a viver num modelo de desenvolvimento neoextrativista, e o país conseguiu resistir à crise econômica de 2008 com a contribuição da exportação de commodities minerais e agrícolas. Porém, para esses setores de mineração e agronegócio, as comunidades camponesas são “um empecilho ao desenvolvimento. Então, eles utilizam recursos, entre eles a violência, para retirar essas populações dos seus territórios.
IHU On-Line - Que tipo de ações e políticas ajudariam a combater a violência no campo já que ela tem várias facetas, como esse aspecto estrutural do Estado, mas também a questão intrafamiliar?
Fernando Carneiro – Trabalhar a questão da violência, hoje, exige ações intersetoriais, a participação social e o foco nos diversos níveis de violência. Não existe uma solução unilateral. A opção feita em relação às favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, é a pior. Se formos discutir as causas da violência, a primeira questão a ser trabalhada é o modelo de desenvolvimento, porque é preciso um modelo que valorize e leve mais saúde a essas comunidades de modo que elas não sejam tratadas como um empecilho ao desenvolvimento. Então, a primeira questão é uma valorização dessas populações. A agroecologia demonstra que é possível ter um outro tipo de relação com essas pessoas e a produção, com mais sustentabilidade ambiental, solidariedade, distribuição de renda e relações de gênero mais equilibradas e, nesse sentido, a agroecologia responde a um modelo que esperamos.
O segundo aspecto tem a ver com o território. São populações que precisam participar junto com o Estado de ações relacionadas a modelos participativos de segurança e elas precisam ter uma certa proteção de longo prazo. Não é possível deixá-las largadas no “meio do mato”, sem apoio. Veja que os bandidos não encontram dificuldades em fazer assaltos e explodir agências bancárias no interior. Então deveria existir um plano de segurança pública que levasse em conta as especificidades dessas populações. No entanto, o Estado tem atuado em parceria com o agronegócio para acobertar os crimes, e não como um protetor.
A outra questão, que é uma das mais desafiadoras, é a violência intrafamiliar. Para lidar com essa violência, a escola e a área da saúde — para falar de dois setores apenas — podem desempenhar um papel importante no sentido de estimular práticas de empoderamento para as mulheres para que elas possam denunciar os casos de violência. É preciso solidificar os mecanismos que já existem, e a área da saúde deve entender que tem um papel a desempenhar no tratamento desses casos, porque casos de violência podem gerar traumas para a vida toda. Então, é importante criar grupos para discutir a cultura de paz nos municípios para encontrar formas de solucionar esses casos. Não acredito em soluções mágicas, porque a violência tem múltiplas facetas, mas o grande tema da saúde pública no Brasil hoje é o enfrentamento da violência.
IHU On-Line — Qual é a situação de acesso à saúde dessas comunidades? Quais são os programas e políticas que têm contribuído para a promoção da saúde da população do campo?
Fernando Carneiro — A questão da saúde no campo foi tema da minha tese de doutorado. Ao longo da história, o Estado brasileiro interveio na saúde dessas populações quando teve interesse em ter mão de obra sadia para explorar os recursos naturais do país. Isso aconteceu na época da borracha e do café, quando foram criados órgãos e foram feitas campanhas de saúde pública. Esse foi um dos momentos em que o Estado entendeu que era preciso, para garantir a extração desses recursos naturais, cuidar da saúde dessas comunidades. Um pouco antes da ditadura, as ligas camponesas começaram a pressionar o governo e, finalmente, começaram a ter visibilidade política com ações que pediam a reforma agrária. Veio o golpe militar e foi criado o Funrural. A criação do Funrural teve como estratégia colocar dinheiro nos sindicatos dos trabalhadores rurais, e os sindicatos ficaram tão ocupados com a máquina de preservação do sistema, que viraram muitas vezes “chapa branca” — foi aí que surgiu o termo “pelego”. De todo modo, essa foi a estratégia que a ditadura militar utilizou para calar as ligas camponesas.
Depois, com o advento do Sistema Único de Saúde - SUS, esse tema ficou marginal até o aparecimento de grandes movimentos camponeses, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra e a Marcha das Margaridas, que durante o governo Lula fizeram uma pressão para ter uma resposta mais firme para os problemas de saúde pública da população do campo. Esse processo culminou em 2003 na criação do chamado Grupo da Terra, que juntou movimentos sociais, governo e representantes da academia para desenvolver uma política pública de acesso à saúde. Demorou quase oito anos, mas em 2011 foi criada a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas – PNSIPCFA. Essa política tem um diferencial, porque realmente foi construída com os movimentos sociais, e eles se reconhecem nela.
Nos últimos anos essa política conseguiu dar mais recursos para as equipes de saúde da família que atendem nas áreas rurais. Essas equipes precisam de recursos porque elas gastam mais tempo no deslocamento. Na Amazônia, por exemplo, são necessários dois dias para se chegar de barco em comunidades no mesmo município. Quem vive no Sertão precisa passar por inúmeras porteiras, ou seja, uma equipe de saúde da família leva, em alguns casos, o dia todo para trabalhar em somente uma comunidade rural. Obviamente, é mais caro atender a essas comunidades que vivem em regiões distantes. Por isso, um dos desafios postos a essa política é justamente a necessidade de criar um aumento de recursos para essas equipes, mas por enquanto isso acabou para o atual governo federal.
Outra política considerada importante foi aquela que teve um impacto na redução dos agrotóxicos. Durante um ano os estados da federação tiveram recursos para implementar programas de vigilância a populações que viviam em regiões em que se usavam agrotóxicos. Outra política que continua garantindo acesso à saúde foi o Programa Mais Médicos, que colocou quase 13 mil médicos, a maioria cubanos, em territórios remotos e longínquos. Eu tive relatos muito interessantes de moradores do campo sobre esse programa. Vou dar um exemplo: nós estávamos avaliando como era esse processo de saúde em uma comunidade rural do Sertão do Ceará, quando uma das pessoas levantou a mão e disse: “Esse Programa Mais Médicos é bom, mas é ruim ao mesmo tempo”.
Questionamos por que a pessoa achava o programa bom e ruim ao mesmo tempo e ela respondeu: “É bom porque agora realmente tem um médico para vir até nós, que conversa e faz exames. Nunca tive isso. Antes o médico nem olhava para você e em um minuto acabava a consulta. Agora tem alguém que cuida de nós. Mas o lado ruim disso é que não vai durar muito, porque as coisas boas, quando chegam para nós, não duram muito”. Esse é um exemplo de como o povo é desconfiado. Mas de fato, por conta da crise e do golpe, 1/3 do dinheiro da saúde já foi reduzido para municípios como esse e, por causa disso, muitos municípios estão querendo diminuir a equipe de saúde da zona rural. Está se vivendo muitos constrangimentos por causa desse tensionamento.
IHU On-Line – Uma recente pesquisa apoiada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário calcula que 36% da população brasileira é rural, sugerindo, com isso, que o número da população rural brasileira é maior do que até então considerado pelo IBGE. Como o senhor avalia esses novos dados? Considerando esse percentual, que outras políticas seriam necessárias para atender à população do campo?
Fernando Carneiro — Essa informação é muito interessante e temos feito muito debate em torno disso, porque oficialmente o IBGE considera a população do campo basicamente o que não é urbano, e quem decide isso são as Câmaras Municipais. Muitas áreas rurais são consideradas centros urbanos apenas por conta de uma estratégia da prefeitura para conseguir IPTU.
De todo modo, esse dado revela que o rural também está escondido nas bases oficiais. Então, como vamos criar políticas de desenvolvimento se os dados oficiais estão escondidos? Segundo o Censo de 2010, a população rural brasileira era algo em torno de 16%, mas o dado do Ministério informa que temos quase o dobro desse percentual. Segundo a pesquisadora Tania Bacelar, que coordenou esse estudo, 90% dos municípios brasileiros têm menos de 5 mil habitantes, e que, sociologicamente, deveriam ser considerados zonas rurais, e não urbanas.
Então, o primeiro aspecto para resolver as questões de políticas públicas é atualizarmos o que denominamos como rural, pois essa categoria não está dando conta de explicitar quem é a população do campo hoje, e o próprio IBGE reconhece isso. No final do ano passado o IBGE divulgou um documento propondo uma nova forma de delimitar o rural, dada a pressão que está recebendo dos movimentos sociais e da sociedade.
O segundo aspecto diz respeito às políticas de governo. Hoje, para o governo, a prioridade é apenas o desenvolvimento. Enquanto essa questão política não for superada, não haverá alternativa para as populações do campo. Hoje o governo quer transformar essas populações em terroristas. Existe um projeto de lei no Congresso Nacional que quer qualificar o MST como terrorista, por exemplo.
IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?
Fernando Carneiro — Eu quero terminar dizendo que o tema da violência nas comunidades do campo, floresta e das águas está gritando e exigindo que mais pesquisadores se debrucem sobre ele. Os profissionais de saúde que atuam em áreas de violência estão acostumados a se calar, a se omitir, porque quem quer trabalhar com violência, hoje, corre risco de vida. Esse é um entendimento básico de quem quer trabalhar. Nós estamos lindando com uma situação desafiadora e espero que mais pessoas possam estar se debruçando sobre isso e pensando numa perspectiva emancipatória, envolvendo a sociedade para pensarmos soluções.
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O grande desafio da saúde pública no Brasil é o enfrentamento da violência. Entrevista especial com Fernando Carneiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU