Por: João Vitor Santos | 22 Fevereiro 2018
A intervenção militar no Rio de Janeiro, articulada pelo Governo Federal, impede que ocorra qualquer alteração na Constituição. Logo, como a proposta de reforma da Previdência requer emendas à Constituição, o governo Temer teve de levar essa matéria para a gaveta, não a colocando em votação no Congresso. Não é preciso ser nenhum expert em análise política para supor que essa intervenção não está somente relacionada a questões de segurança pública, pois é sabido que o Planalto não tem votos suficientes para aprovar a reforma. Entretanto, ainda assim, segundo o professor Eduardo Fagnani, o engavetamento da reforma pode ser considerado uma vitória da sociedade que, segundo ele, percebeu que os argumentos do governo não se justificam. “As pessoas compreenderam a falácia dessa estratégia e com isso o governo não conseguiu ter os votos que precisava”, dispara.
Entretanto, Fagnani alerta: “essa proposta pode voltar a qualquer momento, sim, e pode voltar após as eleições”. Isso porque, acredita ele, “a reforma da Previdência é uma peça importante nessa estratégia de implantar um modelo liberal radical no Brasil”. “O que está por trás é a implantação de um projeto ultraliberal no Brasil. Esse projeto vem sendo tentado há mais de 40 anos, foi parcialmente implantado nos anos 1990 e agora se quer concluir o projeto aproveitando a oportunidade do golpe parlamentar”, acrescenta.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o professor explica como a sociedade civil organizada apreendeu os dados técnicos que contrapõem todos os argumentos do governo e os fez ecoar no Congresso Nacional. Com medo das reações, a adesão ao projeto do Governo pelos parlamentares não ocorre e ainda há o risco de derrota no Legislativo. Fagnani defende a permanência das mobilizações, pois acredita que o quadro pode mudar depois do pleito de outubro. “Haverá uma situação na qual quem perdeu as eleições para o parlamento não tem mais nada a perder e quem ganhou tem mais quatro anos pela frente e pode, na verdade, atender aos interesses do capital”, analisa.
Fagnani | Foto: Arquivo pessoal
Eduardo Fagnani é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Ciência Política e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente leciona no Instituto de Economia da Unicamp, coordena a rede Plataforma Política Social e é pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho - Cesit.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que a tramitação da proposta de reforma da Previdência foi suspensa?
Eduardo Fagnani – Porque, na verdade, o governo tentou passar um rolo compressor na sociedade. Estou falando de uma reforma que mexe com a vida de mais da metade da população brasileira. Então, uma reforma desse tipo tem que ser feita com base no debate, em argumentos técnicos respeitáveis, tem que ter um diagnóstico que aponte exatamente quais são os problemas, mas o governo simplesmente passou por cima disso tudo. Ele interditou o debate, desqualificou os críticos, desprezou o conhecimento técnico acumulado nessa área, partiu de um diagnóstico intencionalmente equivocado – que é essa ideia de jogar os pobres contra os privilegiados – e, na falta de argumento, partiu para um terrorismo rudimentar que não tem sustentação nenhuma.
Podemos destruir e derrubar esses argumentos empregados pelo governo com a maior facilidade, tanto nos que sustentam o que chamo de terrorismo demográfico, como o econômico e o financeiro. A sociedade percebeu isso e se mobilizou, as pessoas compreenderam a falácia dessa estratégia e com isso o governo não conseguiu ter os votos que precisava para fazer mudanças e acabou abandonando a ideia de reforma, mas momentaneamente. Momentaneamente!
IHU On-Line – Então, podemos considerar uma vitória da sociedade o fato de o governo engavetar a reforma da Previdência?
Eduardo Fagnani – Sim, foi uma vitória da sociedade. Mas esse jogo é muito pesado. O que está em curso no Brasil é fazerem, numa só tacada em 2018, o que tentam fazer há mais de 40 anos. Você não ganha uma batalha dessas com jargões do tipo “nenhum direito a menos”. É preciso ter argumentação técnica. E no caso da reforma da Previdência, a sociedade conseguiu contrapor esses jargões com argumentação técnica, inclusive servindo de subsídio aos parlamentares. Por isso afirmo que foi uma vitória da sociedade que, infelizmente, não temos visto em outros processos.
IHU On-Line – Como compreender o que está por trás dessa estratégia do governo com relação à reforma da Previdência?
Eduardo Fagnani – O que está por trás é a implantação de um projeto ultraliberal no Brasil. Esse projeto vem sendo tentado há mais de 40 anos, foi parcialmente implantado nos anos 1990 e agora se quer concluir o projeto aproveitando a oportunidade do golpe parlamentar. Porque um projeto desse tipo não passa pelo crivo popular. O que se está pensando aqui é a mexicanização do Brasil. Querem que a carga tributária no Brasil seja de 17%, querem que os direitos trabalhistas acabem – no México, hoje, 90% da força de trabalho é informal –, esse que é o projeto. É por isso que se tem a proposta de reformas liberais do Estado, no sentido da implantação do Estado mínimo.
IHU on-Line – Mas falando de um futuro mais próximo, podemos dizer que essa tentativa de votar a reforma da Previdência neste ano não deve mais ocorrer?
Eduardo Fagnani – A reforma da Previdência é uma peça importante nessa estratégia de implantar um modelo liberal radical no Brasil. Isso porque a Previdência é o maior item de gasto não financeiro. O que está em jogo, na verdade, é uma luta de classes que se manifesta pela captura desses recursos públicos. Então, essa proposta pode voltar a qualquer momento, sim, e pode voltar após as eleições, onde haverá uma situação na qual quem perdeu as eleições para o parlamento não tem mais nada a perder e quem ganhou tem mais quatro anos pela frente e pode, na verdade, atender aos interesses do capital.
IHU On-Line – O senhor está afirmando que o governo poderá apostar numa nova tentativa de votação ainda este ano, logo depois do pleito de outubro?
Eduardo Fagnani – É até uma coisa paradoxal, diziam que sem reforma da Previdência o Brasil quebrava. Agora, arrumaram outro bode com a intervenção militar no Rio de Janeiro, usando o argumento de que a questão da segurança pública está explosiva [e por isso teria mais prioridade do que a reforma]. A reforma pode voltar para a pauta este ano mesmo porque os parlamentares perceberam que a população compreendeu o alcance da reforma e é contra. Após as eleições, esse incômodo, por assim dizer, estará resolvido. É possível que o governo vote essa reforma em novembro. Não tenho dúvidas.
IHU On-Line – Como avalia as 15 medidas que o Governo Federal anunciou, em substituição à votação da reforma da Previdência?
Eduardo Fagnani – São várias medidas, mas eu insisto: elas caminham no sentido da implantação de um projeto ultraliberal no Brasil, que passa pela reforma do Estado. Isso no sentido da privatização, no sentido de aperfeiçoar a gestão macroeconômica pelas regras do chamado tripé macroeconômico e pela destruição do estado social.
Vou destacar duas medidas que considero as mais importantes. A primeira delas diz respeito às privatizações, que é aquela coisa da reforma liberal do Estado, com destaque para a Eletrobras e também para a Petrobras, ao menos em parte. É importante destacar essa medida porque está diretamente relacionada com a ideia de reforma liberal do Estado.
E para aprofundar a gestão macroeconômica do tripé eu destaco a questão da independência do Banco Central. É algo que na prática já existe, mas se quer que isso seja regulamentado como uma legislação constitucional. O que significa a independência do Banco Central? Significa que o mercado financeiro vai indicar, colocar no Banco Central seus representantes e só cabe a ele discutir uma questão fundamental da economia que é a política monetária. Está se alijando a sociedade, o conjunto da sociedade, de qualquer influência sobre a definição política monetária, da taxa de juros etc., que é central para o crescimento e desenvolvimento do país.
IHU On-Line – Ou seja, tanto a reforma da Previdência como essas medidas anunciadas agora caminham para se quebrar o pacto constitucional de 1988?
Eduardo Fagnani – Sem sombra de dúvidas. Um dos focos dessa investida é acabar com o pacto social de 88. Por que sempre se é contra esse pacto? Porque a sociedade conseguiu pela primeira vez, ao menos no plano legal, a cidadania plena. É a primeira vez na história que temos direitos civis, públicos e sociais e isso custa dinheiro. Ao fazer isso, a sociedade capturou em nível federal cerca de 15% do Produto Interno Bruto - PIB. Isso é inaceitável para alguns. Todo o foco é esse e por isso se desenvolvem teses absurdas, rasteiras, do tipo que as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento. Os detentores das riquezas sempre foram contra o pacto de 88.
IHU On-Line – Quais são as principais mentiras do argumento que justifica a Reforma da Previdência?
Eduardo Fagnani – Quando se analisa a experiência internacional, se observa que há uma correlação muito clara entre democracia, industrialização e gasto social. Ou seja, nos países desenvolvidos os gastos sociais crescem desde o início do século XX e esse aumento foi mais intensificado entre 1945 e 1975. O que é mais paradoxal nisso tudo é que o gasto social continuou crescendo na vigência do neoliberalismo e após a crise financeira de 2008. Então, o gasto social é um fenômeno ligado à democracia nos países centrais.
No Brasil, em 1988, foi a primeira vez depois de 500 anos que se passou a ter políticas que passaram a responder às demandas e necessidades da sociedade. Então, é óbvio que o gasto social no Brasil, a partir da Constituição de 88, tem que crescer, porque depois dessa data é a primeira vez que temos aposentadoria rural, programa de desemprego, uma defesa social que protege as pessoas que não conseguem contribuir para a previdência, sistema de saúde público etc. A outra questão é que o gasto social no Brasil não é elevado na comparação internacional. Então, a falácia que está por trás do argumento da reforma é que, sem rever os direitos sociais, não é possível fazer ajuste fiscal.
No caso da Previdência, as mentiras são as maiores possíveis. Por exemplo, não se leva em conta que nos últimos 30 anos foram feitas quatro ou cinco grandes reformas da Previdência. Então, antes de fazer uma reforma desse tipo, que é necessária, tem que se ter clareza de qual é o problema. Então, eu te digo: o problema não está no regime geral porque a idade mínima de 65 anos para homens e 60 para mulheres existe desde 1998, com a emenda constitucional número 20, e representa mais de 70% das aposentadorias por idade. É possível ter um problema com as aposentadorias por tempo de contribuição, onde os homens precisam ter 35 anos de contribuição e as mulheres 30, mas se a pessoa começou a trabalhar com 15 anos, como acontece no Brasil, com 50 anos a pessoa pode se aposentar. Esse problema existe, mas ele é restrito a 30% das aposentadorias e essa reforma já foi feita em 2015 pela Dilma Rousseff, que criou o Fator Previdenciário Progressivo 85-95, que em 2026 vai chegar a 100-90. Então, o homem, para se aposentar, a partir de 2026 vai precisar ter 70 anos e 30 de contribuição e as mulheres, 60 de idade e 30 de contribuição; esse já é um padrão europeu.
Por isso afirmo que o problema não está no regime geral. O problema está no setor público, mas em qual setor público? Nos que ingressaram no mercado de trabalho a partir de 2012 ou nos que estavam no serviço público antes dessa data? No caso de quem ingressou no serviço público depois de 2012, a Dilma aprovou uma legislação que criou o Fundo Complementar da Previdência do Servidor Público e quem entrou a partir dessa data vai se aposentar em 2040 e vai receber um teto de 5.500 Reais. Portanto, não haverá marajá no serviço público a partir de 2040, ou seja, esse problema já foi resolvido.
O problema da Previdência está na questão dos militares e dos servidores públicos que entraram antes de 2012. Então, se for feita uma reforma, tem que se ter clareza do que se quer atacar, e vários problemas precisam ser resolvidos, como a questão de direitos adquiridos. Então, não dá para dizer que no Brasil não se tem idade mínima para aposentadoria ou dizer que as aposentadorias são precoces. Essas coisas já foram resolvidas.
A outra questão complicada é dizer que a reforma não vai afetar os pobres. Isso é um absurdo, porque ela os afeta na medida em que altera a idade. Sobre esse aspecto tem uma questão que ninguém comenta, mas que é importante. Hoje, a maior parte dos trabalhadores se aposenta com 65/60. Mas tem um dispositivo que diz que sempre que a expectativa de sobrevida aos 65 anos aumentar um ano, automaticamente essa idade aumenta em um ano. Hoje, no Brasil, quem chega aos 65 anos vive cerca de 17 anos a mais, e na Europa, 22 ou 23 anos a mais. Então, é possível que no Brasil, nos próximos 25 anos, a idade para se aposentar para os homens seja de 68 anos. Só que isso não existe em lugar nenhum do mundo.
Além disso, a reforma também prejudica o trabalhador rural, porque ele terá que contribuir mensalmente para a Previdência, ao contrário do que é hoje, em que ele contribui com um percentual sobre a produção. É inviável para o trabalhador rural contribuir mensalmente. Também tem a questão das pensões, que poderá reduzir a renda de uma família em 50% se ela tiver que optar por uma ou outra pensão, porque não poderá mais acumular duas pensões. Também se mantém o tempo de contribuição de 15 anos, que na proposta original é 25 anos, para ter direito à aposentadoria parcial, mas essa aposentadoria parcial representa 60% do benefício, e a aposentadoria integral é inviável porque requer 40 anos de contribuição.
Recentemente um dirigente do Ministério do Bem-Estar Social disse na Folha de S. Paulo que o objetivo do governo é aumentar de 65 para 70 anos a idade mínima do Benefício de Prestação Continuada através de legislação complementar. Quem recebe esse benefício? Portadores de deficiência e pessoas com renda familiar per capita de até ¼ do salário mínimo. Então atinge, sim, os pobres.
A outra série de mentiras diz respeito ao terrorismo demográfico: um número maior de pessoas estará aposentado e um número menor de trabalhadores estará contribuindo, ou seja, chama-se a isso razão de dependência. Cada vez mais um menor número de trabalhadores estará contribuindo e um maior número de aposentados usufruirá da Previdência. Tem vários problemas nessa lógica e o primeiro deles é o seguinte: quem disse que a Previdência é financiada apenas pelo trabalhador da ativa? No Brasil, a Previdência é financiada pelo mecanismo clássico tripartite, que é a contribuição do empregado, do empregador e do governo através de impostos gerais. Na Europa a contribuição do governo chega a 50%. O Brasil incorporou o sistema tripartite na década de 1930, que foi aperfeiçoado no artigo 195 da Constituição de 88, que trata do orçamento da seguridade social.
Além disso, tem um terrorismo financeiro e econômico. O terrorismo financeiro é a ideia do déficit da Previdência, mas já está mais do que comprovado e ratificado pela CPI da Previdência que o déficit é um mito e consiste em não contabilizar a parte do governo, como prevê a Constituição. Mais escandaloso é dizer que esse suposto déficit será explosivo em 2060, quando sabemos que o governo não dispõe de um sistema para fazer esse tipo de projeção e, na ausência desse modelo, isso é palpite de economistas.
O terrorismo econômico é mais vulgar, porque diz que se não for feita a reforma, os investidores internacionais irão embora do país, a inflação vai subir, a dívida pública vai se tornar inadministrável, o desemprego vai aumentar etc. Como se pode dizer que o problema é a Previdência e que a reforma vai proporcionar uma economia de 50 bilhões por ano, e que sem essa economia o Brasil vai quebrar, ao mesmo tempo em que o governo concede isenções tributárias durante 25 anos para petroleiras internacionais estimadas em 1 trilhão de Reais? Ou seja, é praticamente a economia que se faria com a reforma da Previdência.
Além disso, tem a questão dos juros no país, que continuam elevados e todo ano são gastos 400 bilhões com isso. Sem falar nas isenções tributárias que representam quase 300 bilhões por ano, 4,5% do PIB, e nos refinanciamentos que foram feitos. Ou seja, uma parcela significativa da dívida ativa da União chega a 1.8 trilhão de Reais, e ao invés de o governo penalizar o mau pagador, dá uma carta branca para a sonegação e refinancia as dívidas por 20 anos. Então, como se pode dizer que sem a reforma da Previdência o destino do país será negro, se há todas essas alternativas que beneficiam as classes de maior renda e que estão sendo ofertadas ou mantidas por esse mesmo governo que diz barbaridades desse tipo?
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Eduardo Fagnani – A questão toda é a seguinte: a alternativa para a Previdência passa pelo crescimento, porque se pode fazer ajuste fiscal cortando despesas ou aumentando receitas, e 2/3 da receita da Previdência vêm da folha de salário pago pelo empregador e pelo trabalhador. No contexto em que intencionalmente se faz uma recessão - porque com a recessão “não tem outra alternativa a não ser acabar com o estado de bem-estar social” - se aumenta o desemprego, se reduz o salário e declina a massa salarial. Se fosse feito o contrário, se o crescimento econômico fosse induzido, a atividade econômica aumentaria, a arrecadação do governo aumentaria, a arrecadação da previdência aumentaria, porque se incentivaria a massa salarial e a atividade produtiva.
Entre 2006 e 2014 a previdência foi superavitária e em 2012 chegou a mais de 40 bilhões de Reais por conta do crescimento e do comportamento do mercado de trabalho. Então, não há alternativa senão focar no aumento da receita, e não no corte burro da despesa.
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Reforma da Previdência engavetada: sociedade vence uma batalha, mas não a guerra. Entrevista Especial com Eduardo Fagnani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU