14 Fevereiro 2018
“Uma leitura original e profunda da tradição patrística e medieval sobre a Eucaristia nos é proposta por um jovem teólogo francês, Matthieu Rouillé d’Orfeuil, que utiliza coisas novas e coisas antigas para construir uma meditação refinada e tocante”, afirma o teólogo Andrea Grillo, em seu blog Come Se Non, 31-01-2018.
D’Orfeuil é formador do Pontifício Seminário Francês de Roma, professor visitante da Universidade Gregoriana. Publicou sua tese de doutorado: Lieu, présence, résurrection – Relectures de phénoménologie eucharistique, na coleção Cogitatio Fidei 300 (Paris: Le Cerf, 2016). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
por Matthieu Rouillé d’Orfeuil
O que os Evangelhos sinóticos chamam de “milagre” (dunamis), João denomina como “sinal” (sémeion) para sublinhar que o fato extraordinário remete também a coisas do mundo cotidiano, que não é apenas uma argumentação a ser atribuída ao poder taumatúrgico de Jesus, mas também contém uma chave de leitura do real e indica, para quem sabe ver, uma verdade a mais, de natureza espiritual.
Gostaria, portanto, de partir do primeiro dos “sinais” que Jesus faz: mudar a água em vinho em Caná (Jo 2, 1-11). Se preferirmos ficar encantados com o “milagre”, pensamos que não é possível mudar em um instante a água natural e insípida em uma bebida sabor forte e cheia de sabores, a menos que se seja um prestidigitador de grande talento.
Mas, se quisermos contemplar o “sinal”, tornamo-nos livres para ver também outra coisa. Não existe, talvez, no nosso mundo comum, algo que seja capaz de mudar a água em vinho, a água da chuva, fria e triste, em um vinho delicioso e alegre? A resposta nos escapa pela sua evidência: para mudar a água em vinho, basta uma videira e um vinhateiro. Isso geralmente requer um pouco mais de tempo do que o que Jesus fez em Caná; mas essa conversão da chuva desagradável em bebida de festa não tem nada de incomum.
Essa transubstanciação (já que se pode justamente chamá-la assim) que muda toda a substância da água na substância do vinho é um processo que erraríamos em não reconhecer, acima de tudo, na vida comum dos homens do Oriente Médio, que sabiam, por experiência autêntica, como a chuva é rara, como a videira é frágil, como a fermentação da uva é muito delicada, e como é preciosa a alegria. Para mudar a água em vinho, portanto, são necessários uma videira e um vinhateiro.
Continuando minha leitura do Evangelho de João, encontro esta palavra de Jesus, ao término da última refeição: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o vinhateiro” (Jo 15, 1). Se o quarto Evangelho não apresenta o relato da instituição da Eucaristia do mesmo modo que os sinóticos, seria, então, um erro não entender tal declaração de identidade de Jesus antes de morrer como uma palavra eminentemente eucarística.
Ao entregar aos seus apóstolos a última palavra das bodas de Caná, Jesus diz quem ele é, a videira, indica quem é o vinhateiro, seu Pai, e sugere que a refeição pascal que ele quis como revelação de seu amor excessivo, “até o fim” (Jo 13, 1), era o cumprimento alegre de uma aliança, a celebração de bodas novas e eternas nas quais o vinho e a alegria nunca faltariam.
Lá onde o “milagre” fascina como algo extraordinário, o “sinal” remete à Igreja-Esposa, como sinal da aliança, “o sacramento da união íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1).
A questão seguinte parece muito previsível: o que pode mudar o pão em corpo, o vinho em sangue? Existe, talvez, um fenômeno natural, comum, que realiza isso? Assim formulado, o enigma torna-se muito simples: o que muda o pão em corpo e o vinho em sangue é obviamente esse processo vital que assimila os produtos alimentares que eu como para torná-los não apenas “meus”, mas para torná-los “eu”.
Aquilo que se chama de “metabolismo” (ou seja: ultramudança) pode muito bem ser chamado também de transubstanciação. Toda a substância do pão que eu como mudou na substância do meu corpo; e toda a substância do vinho que eu bebo mudou na substância do meu sangue.
Falar assim parece ser uma artimanha; mas é preciso se perguntar se tal linguagem é realmente tradicional. Verdadeiramente, os teólogos refletiram nessa direção sobre a Eucaristia e sobre essa incrível conversão de substâncias? Ou é apenas um jogo sutil, mas tão inovador, a ponto de não ser possível pretender explicar nada sobre a história da Eucaristia?
Sabemos muito bem, a Eucaristia é, na Igreja, uma realidade totalmente tradicional: Paulo nos transmitiu aquilo que recebeu (cf. 1Cor 11, 23), e, portanto, é preciso, no mais alto grau, conectar também o pensamento eucarístico, o discurso eucarístico, a espiritualidade eucarística com uma continuidade de interpretações, sob o risco de ver reduzida toda a teologia do sacramento, que constitui (nas palavras de Irineu, IV, 18,5; cf. CCC 1.327) a norma da nossa doutrina, a uma perigosa leviandade.
Não, minha tarefa é ilustrar todas as consequências patrísticas e escolásticas das imagens e dos símbolos. No entanto, gostaria de indicar alguns marcos, descrevendo assim a lógica de tal tradição que parte do metabolismo para chegar à transubstanciação.
Começo a partir de uma observação de Tertuliano:
“O que é a carne, senão terra mudada em formas próprias? [“Quid [est] caro quam terra conversa in figuras suas?”] (Tertuliano, De carne Christi, IX, 2).
Tal observação parece culpável de ingenuidade, se for interpretada apenas como um comentário à criação de Adão a partir do barro... Mas, assumindo tal credulidade infantil por parte do genial teólogo, não somos nós mesmos, talvez, ingênuos?
Tertuliano não fala de uma carne feita de terra, mas de uma terra mudada em carne. Ele sabe muito bem que a materialidade do ser humano não é a de uma estatueta; mas ele também vê muito bem, para além do que parece ser, que há uma afinidade: uma continuidade e uma mudança.
O que muda a terra em carne? O processo, talvez, permanece misterioso para o homem das cidades; mas um homem do campo sabe muito bem. O trigo de trigo caído na terra, que nela morre, obtém dela tudo o que é preciso para se tornar espiga (Jo 12, 24); a espiga colhida e esmagada fornece a farinha; a farinha misturada com água e cozida no fogo torna-se pão comestível (Is 55, 10); e o pão comido se torna carne do homem.
O que é, portanto, a carne do homem, senão um pouco dessa terra, a partir da qual o grão de trigo desencadeou sua primeira metamorfose; e foi levado a se tornar, depois, em última e sublime transubstanciação, na reivindicação biológica de um ser espiritual? Se alguém quiser usar um pouco de filosofia científica, pode ir reler o que Aristóteles diz sobre a nutrição e também o comentário de Tomás de Aquino sobre esse tema [1].
Seria completamente equivocado pensar que Tomás de Aquino, quando fala de “transubstanciação”, está interessado apenas em uma transmutação física de um tipo muito estranho, isto é, a mudança de uma migalha de pão, aqui posta sobre a patena, em um pedaço de carne (mudança ainda mais paradoxal pelo fato de que, visivelmente, nunca nada é mudado).
Tomás sabia muito bem que a Eucaristia não é um caso de ilusionismo, mas vida de um corpo. Ele sabia que a transubstanciação é, acima de tudo, a realidade vital, íntima, de uma carne visível e sensível, e não um jogo de prestígio sacerdotal, por mais piedoso que possa ser.
“Os produtos alimentares corporais são mudados na substância daquilo que deles se alimenta.” [“Alimentum corporale convertitur in substantiam eius qui nutritur”] (Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, III Q. 73 a. 3 ad 2m ; cf. I Q. 119 a. 1).
E Boaventura não diz outra coisa:
“Não há vida para o corpo sem incorporação dos produtos alimentares que lhe são adequados (...) Os produtos alimentares comidos passam para a substância do comedor para fazer a sua nutrição.” [“Non est vita corpori absque incorporatione cibi convenientis ei (…) cibus comestus transit in substantiam et nutrimentum comedentis”] (Boaventura, De præparatione ad Missam, 13). “O pão nutre a carne ou o corpo; e o vinho é mudado em sangue, que é a própria vida.” [“Nam panis nutrit carnem sive corpus, et vinum transit in sanguinem, qui est sede animæ”] (ibid., 2).
O corpo de que falamos, obviamente, é a Igreja. Pensando que, para os Doutores escolásticos, a transubstanciação era uma questão de mudança da “coisa-posta-lá”, o pão em carne, o vinho em sangue, interpreta-se de modo errôneo aquilo que foi inicialmente pensado como uma imagem eloquente da vitalidade do corpo eclesial.
Se a Igreja é viva, e se a Igreja é orgânica (isto é, estruturada em comunhão hierárquica onde a unidade de missão pressupõe a diversidade dos ministérios) – em uma palavra: se a Igreja é um corpo, obtém sua vitalidade, seu crescimento, sua coesão, de alimentos que ela transubstancia e que se tornam ela.
Como a Igreja é corpo “de Cristo”, o que ela transubstancia se torna, justamente, corpo de Cristo. O que, portanto, é assim transubstanciado por essa matéria do pão? Certamente não são os átomos de carbono, nem as moléculas de água, que, fisicamente, permanecem no mesmo estado antes e depois da consagração. É, antes, “o fruto da terra e do trabalho humano”, essa convergência de uma abundância da natureza e de um esforço agrícola, a colaboração do mundo puramente criado em uma lógica de fecundidade natural e de um ser humano, operário na criação, que dá a si mesmo os meios da sua subsistência e da saciedade da sua família, onde a refeição é lugar de prazer e de palavra, de convivialidade e de ação de graças.
Se a nossa sociedade do consumismo removeu essa dimensão festiva, se a alegria da refeição e da amizade praticamente desapareceu da nossa era individualista, parece oportuno que o rito eucarístico permaneça como um sinal existencial e vivo disso, mais do que um mero vestígio: um “memorial”.
Em que é transubstanciada essa obra comum do mundo e do ser humano? As definições dogmáticas do Concílio de Trento, assim retomadas por Paulo VI em Mysterium fidei, fornecem uma verdadeira clareza sobre esse assunto:
“‘Corpo, sangue, alma e divindade’ de Cristo estão presentes no sacramento. ‘O corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, com a alma e a divindade, e, portanto, o Cristo todo inteiro’.” [“Corpus et sanguinem una cum anima et divinitate Domini nostri Iesu Christi ac proinde totum Christum”] (Concílio de Trento, Decreto sobre a Eucaristia [11 de outubro de 1551]; cân. 1; COD 697). “Cristo, Homem-Deus, todo inteiro se faz presente.” [“Totus atque integer Christus, Deus et homo, fit præsens”] (Paulo VI, Mysterium fidei [3 de setembro de 1965]; EE – 7, 883).
Ao passar pela oração da Igreja, a abundância deste mundo e os esforços das pessoas se tornam Deus. Novamente, alguém poderia se admirar in perpetuum com esse milagre metafísico: uma substância inanimada e mínima que se torna o próprio ato puro, que materializa em si o Deus-Espírito...
É óbvio que tal fascínio pelo objeto eucarístico faz perder de vista a própria realidade. A transubstanciação não produz no nosso mundo “uma-coisa-que-é-Deus-incriado”. Em vez disso, ela instaura no corpo da Igreja essa coerência harmoniosa, essa relação recíproca que é caridade – e Deus é caridade.
Uma palavra de Santo Agostinho explica isso com uma eloquência breve que parece melhor do que qualquer discurso:
“‘Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus, e quem ama é gerado de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conheceu a Deus, porque Deus é caridade’ (1Jo 4, 7-8). Esse modo de falar é bastante claro e mostra, com tal autoridade, que essa caridade fraterna (porque a caridade fraterna é esta com que nos amamos uns aos outros) não apenas vem de Deus, mas é Deus.” [“‘Dilectissimi, diligamus invicem, quia dilectio ex Deo est; et omnis qui diligit, ex Deo natus est, et cognoscit Deum. Qui non diligit, non cognovit Deum; quia Deus dilectio est’. Ista contextio satis aperteque declarat, eadem ipsam fraternam dilectionem (nam fraterna dilectio est, qua diligamus invicem) non solum ex Deo, sed etiam Deum esse tanta auctoritate prædicari”] (Agostinho, De Trinitate, VIII, viii, 12).
Pode-se ainda fingir esquecer que Tomás de Aquino recordava-se disso e procurar nele uma metafísica da transubstanciação, que, na verdade, parece muito próxima de uma idolatria da presença. Mas também se pode reconhecer que, na reflexão imensa e genial sistematizada por ele para tentar explicar racionalmente a ação sacramental, ele nunca negligenciou que a “res” da Eucaristia, isto é, sua realidade mais significativa, é a unidade da Igreja na caridade.
Ghislain Lafont comenta assim um trecho da Summa Theologiæ (III Q. 67 a. 2):
“Nela encontramos, no início, uma definição da Eucaristia na sua relação com a Igreja: ‘sacramentum ecclesiasticæ unitatis’; e o texto nos indica, depois, em que sentido real, intenso, é preciso entender essa expressão: da celebração eucarística, ela é chamada de ‘operari totum’. Em outras palavras, se a Eucaristia significa a unidade da Igreja, ela também é a sua causa, sendo isso totalmente conforme à teologia sacramental de São Tomás. A unidade da Igreja é o fruto da celebração eucarística, ou ainda: a Eucaristia faz a Igreja na sua unidade. Todas essas expressões indicam uma doutrina constante junto ao Angélico: a ‘res’ da Eucaristia nada mais é do que a unidade da Igreja” (G. Lafont, Structures et méthode dans la « Somme Théologique » de saint Thomas d’Aquin (1961), Cogitatio Fidei nº 193. Paris: Le Cerf, 1996, p. 457; cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, III Q. 67 a. 2; Q. 73 a. 2-5; 74, 1…).
Não se trata, portanto, de ver apenas o que faz a subsistência vital da Igreja; antes, é preciso reconhecer, com um estupor muito mais lúcido e profundo do que um mero prodígio da matéria, que a unidade da Igreja é, para o mundo e no mundo, uma graça de presença.
A teologia eucarística, assim, completou uma passagem, um “transitus” admirável que tem relevância para a definição da teologia “tout court”. Pode-se dizer, em certo sentido, que a teologia é uma investigação sobre o crer, uma introspecção do crente (uma “analysis fidei”, como dizia Gregório de Valência).
Nessa perspectiva, podemos nos perguntar: “O que é crer na presença de Cristo na Eucaristia?”; pode-se tirar dessa pergunta um conhecimento adequado, científico, do dogma eucarístico. Então, são examinados os textos; interrogamo-nos sobre o significado preciso desse “est”, tão misterioso ao afirmar que “este é o meu corpo” e ao realizar, ao mesmo tempo, que este “é” o corpo de Cristo.
Mas seria muito insuficiente. Porque a teologia é mais ainda uma fenomenologia da caridade, e a atitude primordial do teólogo é esse maravilhar-se, ainda mais exclamativo do que interrogativo. Em um mundo tão violento, onde a constatação do amor não pode passar senão pelo estupor, “nisto todos reconhecerão que vocês são meus discípulos: se tiverem amor uns pelos outros” (Jo 13, 35). A teologia se faz assim [2].
1. Aristóteles. Della generazione e della corruzione, I, 5 ; 320 a 8 – 322 a 33. Tomás de Aquino. In libros De generatione et corruptione, I, 16, 3. J. Maritain, “Philosophie de l’organisme – Notes sur la fonction de nutrition” (1937), in: Jacques et Raïssa Maritain Œuvres complètes – VI, Edition publiée par le Cercle d’Etudes Jacques et Raïssa Maritain. Friburgo-Paris: Editions Universitaires de Fribourg – Editions Saint Paul, 1984, p. 981-1000.
2. P.A. Sequeri. Il Dio affidabile. Saggio di Teologia fondamentale, BTC85. Bréscia: Queriniana, 2000, p. 70-77 (sobre Gregório de Valência, p. 72; n 24) Id., “L’affidabilità dell’amore”, Anthropotes 33 (2017), p. 25-43.
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Nova teologia eucarística: o milagre e a parábola. Artigo de M. Rouillé d’Orfeuil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU