12 Março 2007
"Homem em parte máquina, em parte humano. Até há pouco tempo, puro mito. Mas a ciência avança em ritmo galopante e já vislumbra soluções que costumavam ser material para roteiros de Robocop e Terminator. O olho biônico para cegos, o braço biônico para amputados, o chip que devolve operações a tetraplégicos: nos últimos meses se sucederam os anúncios de novas conquistas na capacidade do homem para reconstruir-se a si mesmo. Integrando a máquina ao seu corpo, substituindo neurônios por chips, nervos por cabos, o homem biônico abre passagem para o cenário da próxima grande revolução depois dos computadores e da internet: o advento do universo robô". Sobre o tema desta reportagem confira o no. 200 da revista IHU On-Line, disponível nesta página, e cujo tema de capa é: O Pós-Humano.Limites e Possibilidades.
Eis a íntegra do artigo de Joseba Elola para o El País, 11-02-2007. A tradução é do Cepat.
Há um ano, George Lucas, diretor de Guerra nas estrelas, pegou o telefone e pediu que o conectassem a um laboratório próximo a Pisa, na Itália. Havia ouvido falar de uma mão que ali estava sendo desenvolvida parecida com a do herói Luke Skywalker. E se a mão existia, ainda que colocada sobre um tapete verde e com cinco dedos apontando para o teto, a cyberhand lembra mais a do C3PO, o cyborg despistado da série espacial.
Esta prótese em desenvolvimento é um dos projetos estelares da Neurobotics, programa vanguardista e multidisciplinar em que a neurociência se encontra com a robótica. Uma iniciativa que converteu a sua sede, Pólo de Sant`Anna, um antigo armazém da Vespa, em viveiro europeu do homem biônico.
Homem em parte máquina, em parte humano. Até há pouco tempo, puro mito. Mas a ciência avança em ritmo galopante e já acaricia soluções que costumavam ser material para roteiros de Robocop e Terminator. O olho biônico para cegos, o braço biônico para amputados, o chip que devolve operações a tetraplégicos: nos últimos meses se sucederam os anúncios de novas conquistas na capacidade do homem para reconstruir-se a si mesmo. Integrando a máquina ao seu corpo, substituindo neurônios por chips, nervos por cabos, o homem biônico abre passagem para o cenário da próxima grande revolução depois dos computadores e da internet: o advento do universo robô.
Ramón Sampedro abre seu e-mail, movimenta um braço robótico com a mente e se põe de pé. Ray Charles anda pela rua sem se chocar com os passantes. Beethoven escuta a orquestra executando sua Quinta sinfonia. Ficção científica? Sim, porque estes três homens já não estão aqui. Mas aquelas pessoas tetraplégicas, cegas ou surdas poderiam ter acesso a soluções insuspeitadas num prazo de 10 anos. Isso dizem os cientistas que estão na primeira linha. Dez anos.
Há 600 milhões de pessoas no mundo que sofrem de algum tipo de incapacidade. Jesse Sullivan, de 60 anos, eletricista. Eletrocutado em acidente de trabalho em 2001. Perde os dois braços. Nunca pensou que poderia voltar a se pentear. Ou pôr as calças. O braço biônico desenvolvido pelo Instituto de Reabilitação de Chicago lhe devolveu essa possibilidade.
Chamam-no de o homem biônico. Biônico porque com ele se conseguiu uma proeza: conectar seus nervos a eletrodos. Permitir que sua prótese fosse algo diretamente controlado por seu cérebro. Pensa em pegar um copo e o pega. O sonho da integração total entre homem e máquina.
Com uma prótese como as atualmente disponíveis no mercado, o paciente deve pensar em contrair um músculo para que um braço elétrico acabe executando sua ordem. Não pensa que tem que pegar o copo. Pensa que tem que contrair o bíceps.
A chave deste salto, apresentado ao mundo no último mês de setembro com a presença do eletricista Jesse Sullivan e da ex-fuzileira naval Claudia Mitchell, consiste em redirecionar os nervos que antes controlavam o braço na zona do peito. Ali entram em contato com os eletrodos do braço biônico. Quando Sullivan pensa em fechar a mão, o nervo que o fazia fechar a mão faz com que os músculos de seu peito se contraiam. Os sensores ali situados dão a ordem à mão para que se mova.
Seis pacientes já o provaram. Apenas um o recusou. Ainda restam obstáculos por vencer com estas tecnologias. A biocompatibilidade entre tecidos humanos e eletrodos varia em função de cada sujeito. O material dos componentes pode deteriorar-se com o passar do tempo.
Mas a linha de pesquisa do doutor Todd Kuiken avança. Na semana passada, a publicação científica TheLancet anunciava que o braço de Claudia Mitchell, a ex-fuzileira naval de 26 anos, poderá incorporar o tato. Um novo avanço: a informação não viaja apenas numa direção, da mente do paciente ao objeto que pega. Também faz a viagem de volta. O objeto está frio, o paciente o detecta. Um avanço que ilumina o futuro de pessoas como Juan José Ureña.
Nnnnnn! Soa o movimento do braço de um robô. Juan José, ex-mecânico, 30 anos, explica como funciona seu braço mioelétrico numa sala do centro madrilense Fisiortam, especializado na reabilitação de mutilados. Seu braço é um dos mais modernos disponíveis atualmente no mercado espanhol. "Faço tríceps e abro a mão." Nnnnn! "Tensionando o bíceps, a fecho. Movendo o ombro, bloqueio e desbloqueio o cotovelo." Nnnnn! Tem uma prótese híbrida: a parte do cotovelo é mecânica, como as antigas próteses; a da mão é mioelétrica, quer dizer, tem um motor e lhe permite fazer o movimento da pinça. Isto é, pegar um garfo, um iogurte. Ou pegar a bolsa da compra e poder falar ao mesmo tempo ao celular.
O acidente de moto não lhe provocou a perda do trabalho. Teve que deixar a oficina, sim, e passar a realizar atividades administrativas, das quais gosta menos; mas seguiu recebendo todos os meses, o que lhe permitiu pagar os 24 mil euros que custa a prótese.
No dia em que se viu sem o braço lhe veio à sua mente a mão de Luke Skywalker. Logo veio a realidade das próteses disponíveis. Entre as linhas de investigação e o mercado há um autêntico abismo.
A nova comunidade
O sol de inverno bate nas paredes rosadas de Pólo de Sant`Anna, o lugar onde se gesta a cyberhand, uma ilhota de conhecimentos em meio ao polígono industrial de Pontedera, a 20 minutos de trem de Pisa. Um enorme depósito cinza com a logo de Piaggio preside este espaço, localizado em plena fortaleza da mítica marca de motos italiana. Para cá acodem diariamente mais de cem profissionais da informática, da robótica e da engenharia para inventar. Quinze deles dedicados aos projetos da Neurobotics, programa financiado pela União Européia com 5.64 bilhões de euros.
A cyberhand pretende ser uma mão que sente. Com controle, em vez de força. Capaz de detectar a temperatura. Com seus cinco dedos móveis, é capaz de segurar um copo de plástico com delicadeza e, segundo este vai se enchendo de água, a mão redistribui a força entre os dedos para se adaptar ao novo peso. Por mais sofisticada e perfeita que parece ser, ainda fica a anos luz de uma mão real: terá 53 sensores táteis, ao passo que a mão de verdade contém 17 mil.
À frente da Neurobotics encontra-se um dos grandes gurus da biônica, o professor Paolo Dario, ilustre e global conferencista; um visionário cujo sonho é que o Pólo de Sant`Anna acabe sendo um lugar povoado por humanos, animais e humanóides. Não vai por mau caminho: 1. As piscinas para lampreias e polvos já estão em fase de montagem (o estudo do sistema neurológico da lampreia, similar à enguia, permitirá desenhar robôs mais flexíveis, muito úteis para futuras pernas biônicas). 2. Há três humanóides em construção, um deles, o Wabian, um robô que caminhará como um humano.
Aos 55 anos, Dario está desenvolvendo uma nova geração de robôs que poderão ser controlados com a mente. "O robô tem que ter com o homem uma relação similar à do cachorro: está entregue ao seu dono, nunca lhe faz mal, o salva se for preciso. E é inteligente, mas não muito", explica entre risos. Acaricia seus cabelos brancos para trás e proclama que estamos num momento chave: há infra-estrutura e tecnologia. A neurociência, a nanotecnologia e a robótica estão maduras. "Os novos robôs devem interagir com nosso cérebro, e têm que ser desenhados graças ao encontro de diferentes comunidades de pesquisadores. Na Neurobotics estamos assentando as bases para o nascimento de uma nova comunidade científica."
A porta do cérebro
No outro lado do atoleiro, na Universidade Brown, em Providence (Rhode Island, Estados Unidos), se encontra outro grande guru do universo da biônica, John Donoghue. "O vice-presidente dos Estados Unidos é um homem biônico", espeta, em conversa telefônica transatlântica. É a maneira que este neurologista norte-americano encontra para expressar que o biônico já é uma realidade. Mais adiante explica.
Imaginemos por um momento o que significa para uma pessoa que não pode nem falar, nem andar, nem mover um braço, poder abrir seu e-mail e comunicar-se com o mundo. Pensar em movimentar um braço robótico e que este se move. Ela própria poder fazer funcionar a cadeira de rodas. Pois isso MatthewNaggle, de 26 anos, de Massachusetts, tetraplégico depois de levar um soco no pescoço numa briga na praia, em 2001, já pode fazer. Seu milagre é fruto da visão de John Donoghue, cujo projeto, o Braingate (a porta do cérebro) é tão revolucionário quanto polêmico: baseia-se na implantação de um chip no cérebro. Um chip do tamanho de um comprimido. Um chip que, dizem seus críticos, abre a porta para um futuro controle das vontades do indivíduo.
O Braingate vem a ser "uma espécie de segunda espinha dorsal". Os sinais cerebrais (as ordens) são captados mediante o chip. Da cabeça saem cabos conectados ao computador, que processa a informação e devolve o sinal ao músculo. Um dispositivo engenhoso, sim, mas que no futuro será sem cabos e que poderá ser controlado com um dispositivo do tamanho de um telefone celular, garante Donoghue. Quatro pacientes paralíticos já provaram seu Braingate. "Os quatro recuperaram algum nível de controle."
O vice-presidente Dick Cheney anda com um desfibrilador, um dispositivo que se implanta no peito e que permite detectar arritmias cardíacas e enviar um sinal elétrico para evitar um ataque cardíaco. Quer dizer, assim como o Braingate, explica Donoghue, trata-se de um dispositivo que não apenas estimula, mas que, além disso, lê: lê a arritmia e envia o sinal.
"O homem biônico já está aqui. Há dispositivos para o coração, para os implantes de cóclea [também chamado de caracol, situado no ouvido interno]; há 30 mil pessoas com Mal de Parkinson nos Estados Unidos cujos músculos deixaram de ser rígidos graças a um eletrodo de quatro centímetros...". O Braingate, esse sim, ao estar implantado no cérebro, desperta certas reticências, sobretudo na Europa. Paolo Dario, o especialista italiano, diz que só é aceitável para casos de tetraplegia.
Todas estas linhas de pesquisas dispersas pelo mundo são as que permitem, daqui a algum tempo, que a tecnologia chegue aos usuários. O campo das próteses de pernas é um dos que já hoje oferece soluções de vanguarda. Como a C Leg, uma perna futurista que incorpora um chip que é programado em função do peso e dos passos do paciente e que é carregado como um telefone celular.
São quatro da tarde no Es Mercadal, pequeno povoado de Menorca [ilha], e Gabriel Pons Horada, está no pátio de trás de uma casa que divisa com o restaurante Las Vegas. Gorro de beisebol, óculos de desenho, corpo de esportista, sorri e arregaça a calça de moletom para ensinar sua perna futurista. Cinco crianças que estão na sobremesa de uma festa que está acontecendo no restaurante vizinho ficam boquiabertas. "Agora sim sou uma máquina total, eh?", diz às crianças. "É que eu fiz Robocop", brinca. As crianças não sabem bem como reagir. Ao senhor falta uma perna, mas que perna mais chula tem!
Gabriel podia ter morrido aos 15 anos. Agora tem 34, mulher e duas filhas, mas esteve a ponto de deixar a vida por culpa de um turista bêbado que caiu com a moto em que ia de carona a 180 km por hora. Era a primeira vez que ia a discotecas com seu irmão mais velho e seus amigos.
Com sua prótese, Gabriel pode andar de bicicleta, jogar o ping-pong, fazer footing. Gosta de ir de short para que vejam sua perna: "É espetacular, vais pela rua e todos te olham. Olha, um robô!"
Irene Villa é outra que acedeu ao que há de mais avançado. No verão passado viajou para a Suécia para se submeter a uma osteointegração, intervenção cirúrgica mediante a qual se prende a prótese ao osso por meio de um parafuso de titânio.
A jovem madrilense, vítima de um atentado da ETA em 1991 que lhe segou as duas pernas e três dedos da mão esquerda, está feliz. "Me trouxe muita qualidade de vida. Eu sou muito festeira, e, antes, saía uma noite para caminhar e no domingo as dores produzidas pelo encaixe a hipotecavam. "Agora, nem tomo conhecimento".
Ela não gosta de falar sobre o assunto porque sabe que há muita gente que não se pode permitir uma operação que custa 70 mil euros, mas a recomenda. "Agora posso usar calças ajustadas. Depois de 15 anos, por fim tenho a bunda no lugar. Há gente que me diz como isso me pode importar tanto se o que me faltam são as pernas; mas para mim é muito importante, mesmo que seja apenas uma questão estética".
Irene Villa assiste maravilhada aos progressos que estão se dando no campo da biônica. "A ciência é para isso. Essas pesquisas me parecem magia, é preciso investir nisso e não em bombas."
Devolver a vista ao cego. Pura magia? Em setembro, a Bionic Eye Foundation de Sidney apresentou seu olho biônico: implantam-se pequenos eletrodos na superfície do olho; uma minicâmera de vídeo adaptada a óculos capta imagens e as transmite aos eletrodos via computador; os eletrodos estimulam a retina e mandam seu sinal à zona do cérebro que controla a vista. Eureka? Então, mais ou menos. Porque o paciente de fato não vê, só recebe flashes. Tem uma visão funcional que lhe permite superar os obstáculos numa casa, dizem.
"Fazer um olho é possível, mas não é suficiente. O importante é que o olho possa falar com o cérebro", diz Álvaro Pascual Leone, neurologista valenciano, de 46 anos e diretor do Centro de Estimulação Cerebral de Harvard. As novas linhas de pesquisa se centram agora não tanto em criar um olho, mas em reeducar o cérebro. Que veja escutando. Converte-se a imagem (captada pela minicâmera dos óculos) num som. A parte do cérebro destinada à visão interpreta esse som visual de modo que o paciente vê graças ao som.
Na Universidade de Montreal (Canadá) se aposta numa linha paralela, colocando uma placa na língua do paciente. Neste caso, veria graças à língua, em vez do ouvido. Pura magia. A capacidade do homem para reconstruir-se a si mesmo não pára.
O segundo Viagra
A Espanha não está à margem de todos esses avanços. O Instituto Guttmann de Barcelona está implantando hoje um dispositivo que permite remediar a incontinência urinária deparaplégicos: dois cabos que, conectados às saídas nervosas da medula, vão aos músculos que contraem a bexiga. E não só permitem ao paciente escolher o momento de urinar. Além disso, lhe devolvem a saúde sexual e lhe permitem conseguir uma ereção. "É um segundo Viagra", proclama José Maria Tormos, coordenador de pesquisa do Instituto.
O Sars, implantado pelo doutor Borau em 150 pacientes, conseguiu um êxito de 95% dos casos. O Instituto Guttmann tem mais dois programas em andamento: capas para as pernas, calças que andam sozinhas para pessoas com lesão medular; e um dispositivo de estimulação magnética transcraniana, eletrodos que estimulam zonas do córtex cerebral e que têm aplicações na luta contra a depressão.
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A revolução do homem biônico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU