09 Agosto 2008
"A dupla e contraditória conduta que veda a técnica limitadora de nascimentos não desejados e invoca, ao invés disso, a técnica capaz de manter uma vida artificial, tem ideologizado a discussão fazendo irrupção na política, nos governos, nos parlamentos", escreve Eugenio Scalfari, jornalista, fundador do jornal italiano La Repubblica, em artigo publicado no mesmo jornal, 03-08-2008. Segundo ele, "a discussão sobre os princípios tornou-se má e bárbara. Em torno das câmaras de reanimação se desencadeiam polêmicas intermináveis".
Eis o artigo.
Quando Emanuele Severino e Umberto Galimberti assinalaram a irrupção da técnica no mundo da ética, pareceu à maioria que a questão tivesse um conteúdo exclusivamente filosófico e, por conseguinte, abstrato e de escassa importância prática. De resto, já se haviam ocupado dela escritores e filósofos americanos e, na Europa, alemães, ingleses, franceses, espanhóis e gregos. Era, em suma, uma questão levantada pela atualidade e pela evidência: a técnica, a “techné”, havia conquistado uma verdadeira e própria hegemonia que incidia no mundo dos comportamentos sociais, determinava o desenvolvimento da economia, acrescentava, mas ao mesmo tempo vulnerava os territórios da liberdade. As reações mais preocupadas daquela hegemonia provieram do campo religioso, seja do lado cristão, seja do lado islâmico, seja das numerosas crenças asiáticas: as religiões denunciavam o desequilíbrio entre o progresso técnico e o moral e viam a própria autoridade sempre mais insidiada pelos progressos das ciências que não admitiam limites à pesquisa, nem se preocupavam com o fato de que os resultados de vez em quando alcançados fossem compatíveis com as verdades reveladas, das quais as religiões pretendiam ter exclusiva representação.
A discussão envolveu todas as culturas e se tornou tanto mais intensa quanto mais se aproximava do final do século e do milênio, com a inevitável carga apocalíptica que os grandes eventos trazem consigo. No limiar do século vinte e um e do terceiro milênio da era cristã o tema era agora claro em toda a sua importância. Não se tratava mais somente da hegemonia, mas precisamente da ocorrida subversão de dependência ente o homem e os instrumentos por ele criados: não estavam mais ao seu serviço aqueles instrumentos, mas era o homem que estava ao serviço da “techné”, tornada agora uma ideologia possessiva, à qual o inteiro gênero humano se entregara e servia.
Somos atualmente todos “tecno-dependentes” em cada ato e momento da nossa vida e todos, de um modo ou de outro, trabalhamos para acumular novos saberes que ampliam o poder da técnica em detrimento da nossa liberdade.
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Recordo estes fatos porque desde então, nos poucos anos transcorridos, o tema não é mais apenas filosófico, religioso, ou científico, mas fez irrupção também na política. Como sublinhou Aldo Schiavone há poucos dias, ele pôs em discussão dois momentos tópicos da existência de cada ser humano: o momento do nascimento e o da morte, ou seja, a nossa entrada e a nossa saída do mundo. Os dois momentos que dominam a nossa vida, o alfa e o ômega das nossas existências individuais, estavam até pouco tempo atrás fora do nosso controle. Mas, agora não é mais assim, já que a técnica também se apossou disto: criou instrumentos que permitem determinar o nascimento não só segundo a natureza, mas também em laboratório e prolongou a vida também além dos limites impostos pela natureza.
As religiões – e a católica em particular – adotaram uma conduta dogmática e ideológica sobre o tema da vida, transformando-o numa verdadeira e própria ideologia. No que se refere ao nascimento, a Igreja vetou rigorosamente a contracepção, rejeitando todo instrumento técnico que pudesse limitar os nascimentos; no tema da morte, ao contrário, a Igreja defende o recurso aos instrumentos que a técnica está em condições de fornecer para prolongar artificialmente uma pseudo-vida além dos limites assinalados pela natureza.
Esta dupla e contraditória conduta que veda a técnica limitadora de nascimentos não desejados e invoca, ao invés disso, a técnica capaz de manter uma vida artificial, tem ideologizado a discussão fazendo irrupção na política, nos governos, nos parlamentos. Chegou-se ao ponto de fazer votar pelos eleitores e por seus representantes parlamentares questões de extrema privacidade, com todas as torções políticas e éticas que estas intrusões comportam nas consciências e na liberdade individual. A privacidade da morte se tornou argumento público, não só como endereço geral, mas até nos casos específicos deste ou daquele. Pondo, conseqüentemente, em discussão alguns direitos fundamentais dos indivíduos, também a Magistratura tem sido chamada a campo.
A discussão sobre os princípios tornou-se má e bárbara. Em torno das câmaras de reanimação se desencadeiam polêmicas intermináveis; as Cortes de justiça emitem vereditos contrapostos e sentenças não aceitas. No caso, atualmente aberto, de Eluana Englaro, as Câmaras levantam até mesmo conflitos de competência entre o poder legislativo e o poder judiciário. A Corte constitucional é agora chamada a resolver uma questão, em duas palavras, imponderável, com o único intento declarado por parte da maioria de centro-direita de ganhar algumas semanas ou meses de tempo, deixando a existência de uma pessoa tecnicamente já morta há 16 anos, conectada a um tubo que lhe subministra substâncias capazes de oxigenar o sangue, como se se tratasse de uma planta e não de uma vida humana.
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A vida e a morte são argumentos que não podem ser decididos, ou pelo menos assim deveria ser. São experiências que marcam o caráter e a consciência de cada um. Nosso destino. Nossa dignidade. Nossa liberdade.
Descer deste nível e discutir se um Tribunal, uma Procuradoria, uma Corte de cassação tenham julgado corretamente; se uma lei deva culminar com o voto legislativo e de que modo seu preceito deva ser formulado: tudo isto depaupera uma questão que deveria ser confiada à vontade responsável da pessoa interessada ou aos seus representantes legais, se o interessado não está em condições de entender, de expressar-se, de querer.
Mas, já que esta questão está numa multiplicidade de casos que se enquadram no estado de fato, será preciso discutir sobre ela, superando o mal-estar que dela deriva. As questões que nos devemos pôr no caso específico de Eluana são as seguintes: existe uma manifestação clara e recente de vontade da interessada? Se não existe ou é considerada remota, há pessoas validamente em condições de decidir por ela? Enfim: em que pontos de apoio ou princípios se baseia a sentença da Suprema Corte que autorizou o pai de Eluana a interromper os cuidados e determinar o arresto do coração que pulsa num corpo que está em coma há 16 anos, com encefalograma zerado e uma vida não humana, mas vegetal?
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Sabemos que Eluana manifestou repetidamente sua vontade de não sobreviver à eventual morte cerebral pessoal. Ela o fez ainda muito jovem, perfeitamente sã e consciente, após a traumática experiência de ter visto e assistido uma pessoa a ela cara que se encontrava em condições de morte cerebral, à qual, para sua sorte, seguiu-se pouco depois a morte cardíaca.
Os fautores radicais da ideologia da vida objetam que aquelas manifestações de vontade eram remotas com respeito ao momento em que Eluana entrou em coma e portanto “decaiu”, ficando privada de legítima vontade. O argumento em favor desta tese se apóia na consideração de que numa matéria tão delicada e privada se pode mudar de parecer até um instante antes do último suspiro. É verdade, pode-se mudar de parecer até o último suspiro, caso se esteja em condições de mudar de parecer e de expressá-lo. Mas, se já se está morto cerebralmente? O transplante dos órgãos com os quais se salva outras vidas não ocorre, por acaso, quando a morte cardíaca ainda não ocorreu e os órgãos ainda são vitais e se a autorização para deles dispor já foi dada e os parentes consentem?
À segunda pergunta a resposta é clara: o pai e a família de Eluana, que a assistiram durante dezesseis anos e recolheram uma série de evidências clínicas sobre a irreversibilidade de seu estado, querem que a vida artificial não prossiga e que cesse a obstinação terapêutica. Exprimem em nome da própria filha a recusa dos cuidados em ato; uma recusa que é um direito reconhecido do enfermo ou de quem o representa.
Enfim, a terceira pergunta: a validez da sentença da Justiça. A Suprema Corte foi chamada para julgar sobre o direito da interessada, ou de quem a representa, de ela recusar os cuidados. Não teve sequer necessidade de fundamentar a sentença sobre as manifestações de vontade de Eluana de muitos anos atrás. A Suprema Corte acertou a inexistência de uma legislação na matéria e por isso se referiu, como é seu dever prescrito na Constituição, ao direito do enfermo, também este reconhecido na Constituição, de recusar os cuidados. Sentença irrepreensível: na ausência de normas e na presença de direitos constitucionalmente garantidos a Corte julga com base nos princípios do ordenamento judiciário que reconhece o dever do juíz de tutelar os direitos dos cidadãos.
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O bem de viver e o direito de morrer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU