14 Novembro 2017
Quinhentos anos depois do ato de rebeldia que mudou o Ocidente, eles seguem fiéis ao lema da Reforma Protestante: “Igreja reformada, sempre se reformando”.
A reportagem é publicada por revista Época e reproduzida pelo portal Metodistas, 10-11-2017.
O joelho direito dói, mas a mulher sobe firme os degraus do Morro Dona Marta, na Zona Zul do Rio de Janeiro. Enquanto caminha, os moradores saem de suas casas para recebê-la com abraços, a despeito de sua imponência e expressões firmes. Ela conhece todos pelo nome e pergunta sobre parentes, estudo, trabalho. “Essa é minha família”, diz, apontando para os barracos. “Todo mundo aqui é meu filho. É tudo preto mesmo, ué. Minha favela é minha paróquia.”
Vigorosa aos 73 anos, Edméia Williams cuida, há 27, da Casa de Maria e Marta. Das 7 da manhã às 5 da tarde, a casa atende diariamente 98 crianças do Morro Dona Marta, oferecendo-lhes refeições, aulas de reforço escolar, informática, música e canto, além de material didático e roupa. O custo mensal de R$ 30 mil é bancado com doações obtidas por Edméia. O objetivo é que as crianças tenham acesso ao que não têm em casa, ganhem oportunidades de se desenvolver e, assim, consigam se desviar de um destino de violência.
Negra, fluente em quatro idiomas e formada em quatro cursos – pedagogia, psicologia, filosofia e música – além de em liderança cristã, no Instituto Haggai, em Cingapura, e em missiologia pelo Selly Oak College, na Inglaterra, Edméia é missionária da Igreja Anglicana, uma das igrejas oriundas da Reforma Protestante, o movimento iniciado, há 500 anos, pelo monge agostiniano Martinho Lutero. No dia 31 de outubro de 1517, Lutero pregou na porta da igreja do castelo da cidadezinha de Wittenberg – hoje no território da Alemanha – 95 teses que questionavam a venda de indulgências pela Igreja Católica. A aquisição das indulgências supostamente servia para absolver pecados e reduzir o tempo dos cristãos no purgatório, mas funcionava, na prática, durante a Idade Média, como meio de financiamento das autoridades eclesiásticas.
O gesto de rebeldia de Lutero, que questionava também as missas em latim, desafiava a crença de que o papa era o intermediário de Deus junto aos homens e traduziu a Bíblia para o alemão, provocou um cisma no cristianismo e mudou o Ocidente. Com a Reforma Protestante, a era moderna se iniciou. A interpretação bíblica deixou de se concentrar na mãos da Igreja e passou a ficar ao alcance da população, que se tornou livre para desenvolver sua fé. Valores como direitos individuais, democracia e liberdade religiosa foram impulsionados e a alfabetização se propagou.
Quinhentos anos depois do ato de insubordinação de Lutero, os seguidores das igrejas protestantes representam um terço da população brasileira. Segundo o instituto Datafolha, três em cada dez brasileiros com mais de 16 anos se consideram evangélicos – 29% da população. Eles se dividem em 22% de evangélicos pentecostais ou neopentecostais e 7% de evangélicos pertencentes a igrejas consideradas históricas, como a Luterana, a Presbiteriana, a Metodista, a Batista e a Anglicana.
Com o novo status social e político alcançado pelos protestantes na sociedade brasileira, a batalha de alguns pastores passou a ser manter vivo o espírito reformador de Lutero. Esses pastores contestam as “novas indulgências”, os pedidos de pagamento de dízimos em troca de bênçãos e a venda de produtos religiosos por dirigentes de igrejas evangélicas, que abusam da fé para acumular dinheiro e poder. Eles criticam também o conservadorismo da maior parte das lideranças evangélicas.
A missionária Edméia faz parte do contingente de “novos luteros”. Seguidora de uma igreja que reúne no Brasil apenas 50 mil fiéis, sobretudo de classe média, Edméia é uma anglicana numa favela – nicho normalmente ocupado pelos pentecostais que tratam de abrir, nesses bolsões de pobreza, seus templos. Edméia não tem uma igreja no morro – e seu trabalho não pretende recrutar novos fiéis. Ela quer que as famílias beneficiadas por seu projeto sejam livres para fazer suas opções religiosas.
Dissociada do bloco “gospel”, Edméia é crítica de um sistema que, segundo ela, chama as pessoas para serem “membros de igrejas, mas não seguidores de Cristo”. A institucionalização da fé, afirma, faz com que a igreja caia na soberba e na prática comercial. “Vira uma igreja indiferente, ignorante”, diz. “Detesto o termo evangélico. Dizem que o Rio de Janeiro tem mais de 20% de evangélicos na população, mas se tivesse 5% de discípulos de Jesus seria outra coisa.” Para Edméia, o que a fé cristã exige do fiel está no livro de Miqueias, no Antigo Testamento: “O que Deus quer de ti, homem? Que pratiques a justiça, que ame a misericórdia e que andes com integridade”.
A 20 quilômetros do Dona Marta, na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, o pastor Antônio Carlos Costa, de 55 anos, comanda todos os domingos à noite (quando a violência dá trégua) cultos a partir de um púlpito cravado com dois tiros de bala. Dez anos atrás, Costa era um pastor-padrão da Igreja Presbiteriana do Brasil. Dedicava-se a suas pregações e aos problemas dos fiéis de classe média de sua igreja no bairro da Barra da Tijuca. A Igreja Presbiteriana do Brasil é uma das mais conservadoras do protestantismo brasileiro e é conhecida pelo histórico de ojeriza à mistura de evangelização com questões políticas. Para esse ramo dos presbiterianos, a atuação social da igreja, afora pontuais ações assistenciais, deve se limitar ao trabalho de conversão dos indivíduos à fé cristã, com base no lema: “Converta-se o indivíduo, e a sociedade se transformará”.
Em 2006, o trabalho pastoral de Costa se transformou completamente após uma chacina que matou 19 pessoas no Rio de Janeiro. “Eu entrei em crise. Ia para o morro e pensava ‘o que eu faço com minha teologia aqui? O meu cristianismo não tem nada a falar sobre essa realidade?’.” Ele organizou uma manifestação na frente do Hotel Copacabana Palace com centenas de cruzes espalhadas pela praia para espelhar o número de pessoas que haviam morrido na cidade naquele ano pela violência. A manifestação marcou a criação da ONG Rio da Paz, que há dez anos pauta o debate público sobre violência sem fazer proselitismo religioso.
Com sede na favela do Jacarezinho, a ONG oferece aulas de qualificação profissional em construção civil e panificação. Também tem uma ouvidoria, um centro de colocação de pessoas no mercado de trabalho e mensalmente distribui cestas básicas para famílias. Hoje, Costa se divide entre pregações dominicais em sua igreja na Barra da Tijuca e a atuação na rua nos demais dias. Autor do livro Convulsão protestante: quando a teologia foge do templo e abraça a rua, ele diz que a favela colocou em suas mãos uma Bíblia diferente. “A expressão máxima do novo nascimento é amar o que está quebrado. Sem isso, acabou o cristianismo.”
Em Campinas, no interior de São Paulo, o pastor presbiteriano Ricardo Agreste, de 52 anos, trata de seguir o lema da Reforma Protestante – Ecclesia reformata, semper reformanda est (Igreja reformada, sempre se reformando, na tradução do latim) – por outros caminhos. A singularidade de Agreste começa pelo nome de seu ministério. Ele exclui o prefixo “Igreja Presbiteriana” e adota “Comunidade”. Na Comunidade Chácara Primavera, Agreste rompe com a liturgia tradicional, como hinos antigos, leituras bíblicas e orações. Por muito tempo, foi proibido reproduzir dentro das igrejas protestantes músicas seculares – e os fiéis eram orientados a não ouvi-las em casa. Nos cultos de Agreste, não é incomum deparar com canções de Chico Buarque. Agreste prega com slides e fala sobre temas atuais, com referências de filmes, livros ou séries. “Estou sempre conectado ao cinema, à música e ao que está sendo publicado fora da igreja.”
Agreste afirma que o movimento evangélico brasileiro dialoga de forma anacrônica com a realidade. “Estamos no século XXI e nosso papel não é dar para as pessoas respostas que foram dadas para problemas que existiam no século XVI”, diz. Em sua perspectiva, há uma diferença entre tradição e tradicionalismo. A primeira é boa, porque ensina, já a segunda é extremista. “Existe um grupo que valoriza mais o pensamento protestante reformado do que o pensamento de Cristo e tem se tornado altamente bélico,” diz.
Suas críticas não se limitam aos pastores formalistas. Ele diz que quem abre mão da história corre o risco de recair em erros do passado. Como exemplo, cita a perda da referência bíblica por movimentos ligados à teologia da prosperidade, envolvidos em escândalos. “Se os reformadores assistissem a alguns programas de TV evangélicos, achariam que o que acontecia no século XVI não era nada perto do que acontece hoje em termos de exploração de pessoas, mau uso das Escrituras e abuso da fé para benefício próprio.” Nessa linha, sua “comunidade” não recorre a templos suntuosos, nem sequer tem prédio próprio. “Usamos espaços subutilizados nos fins de semana, como auditórios de universidades e de hotéis.”
Na Igreja Batista da Água Branca (Ibab), em São Paulo, o pastor Ed René Kivitz, de 53 anos, também quebra os padrões tradicionais. O culto é sucinto. O palco é escuro e o pastor prega sem púlpito. Segura apenas uma Bíblia de couro preta enquanto fala. A igreja atrai 10 mil pessoas a cada domingo à noite. Na transmissão ao vivo pelo YouTube, cada culto contabiliza 4 mil visualizações.
Kivitz define a Ibab como “uma igreja para quem não gosta de igreja, e uma igreja para pessoas de quem a igreja não gosta”. Diz que essa filosofia é reflexo de uma experiência pessoal. “Eu cresci em uma igreja que não tinha conexão nenhuma com o que acontecia fora. Se dependesse de mim, eu teria saído desse universo. Então, hoje, minha pauta é o que está no dia a dia das pessoas, e não minha agenda religiosa”, afirma. “Distinguimos experiência religiosa da experiência espiritual. Eu gostaria de ter uma igreja que tivesse o mínimo de formatação religiosa.”
Kivitz é uma das vozes protestantes mais críticas à atuação da bancada evangélica no Congresso. “Não me vejo representado em nada por essa bancada. Em nosso país, temos uma liderança evangélica na política que está vendida, associada ao poder”, diz. Para ele, o lado midiático dos evangélicos é sua face mais deplorável e menos verdadeira. “A igreja evangélica hegemônica não aparece na televisão. Ela está nos bairros, nas comunidades. E está transformando esses lugares. Sinaliza beleza, bondade e justiça em pequenos gestos de solidariedade, na partilha de sofrimento e de pão.”
Na oposição à bancada evangélica, o pastor ficou conhecido pelas postagens políticas no Facebook. Provocativo, tomava posições sobre direitos humanos e em defesa de minorias. Por isso, passou a ser acusado de herege. Hoje, Kivitz diminuiu suas postagens, que o colocavam no meio das disputas odientas das redes sociais. “Todo mundo tem responsabilidade política e a sociedade se constrói a partir da contribuição de cada um. Eu entendi que minha contribuição no processo político do Brasil deveria ser pastoral.”
Kivitz diz que os evangélicos brasileiros precisam recuperar a mensagem de liberdade de Lutero. “Antes da Reforma, o povo era submetido a um sistema religioso sem entendê-lo. Isso se chama escravidão.” Lutero pregou em tempos tão turbulentos quanto os atuais. Suas teses “viralizaram” graças a uma inovação tecnológica da época, a imprensa de Gutenberg, tão revolucionária quanto as redes sociais. Suas ideias provocaram reações violentas, mas também acenderam uma chama de liberdade. Os novos luteros esperam reavivar em seus seguidores esse mesmo ardor por mudanças, crentes de que o espírito da Reforma pode dialogar com todos os períodos históricos.
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500 anos da Reforma: Os pastores que tentam manter vivo o espírito de Lutero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU