13 Setembro 2017
As telas da artista Bia Leite, que integravam a exposição “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira”, no Santander Cultural, e que foram apontadas como “apologia à pedofilia”, na verdade, nasceram de um questionamento sobre o bullying enfrentado por crianças LGBT desde cedo. A expressão “criança viada” viralizou na internet desde que o jornalista Iran Giusti ressuscitou fotos suas da infância e passou a publicá-las em site, em 2012.
A reportagem é de Fernanda Canofre, publicada por Sul21, 12-09-2017.
Para quem teve que crescer entre preconceito e discriminação, a expressão e os depoimentos que passaram a vir com ela, faziam sentido. “Eu sempre fui chamado de ‘bichinha’, de ‘viado’, de ‘bolsa’, porque meu nome é Victor Hugo, como a marca. São piadas que vieram por todo o ensino fundamental, ensino médio, que seguem até hoje quando caminho na rua”, conta Victor Hugo Xavier, 31 anos, jornalista. “O preconceito existe, as pessoas são preconceituosas, uma exposição que coloque holofote nessa situação é importantíssima”.
A exposição, que levou um ano e meio para conseguir reunir todas as obras e sete anos de planejamento, ficou em cartaz durante 24 dias, mas foi cancelada depois de 72 horas de críticas nas redes sociais. A narrativa empreendida por movimentos que se sentiram ofendidos por ela afirma que as obras fariam apologia à zoofilia, à pedofilia e ofendiam a religião cristã.
Para quem foi protestar contra a decisão do Santander, no entanto, a Queermuseu, era uma ferramenta de visibilidade. “Não é estímulo à pedofilia, mas ao contrário, uma crítica pela forma como a gente trata as crianças”, afirma o coordenador do Somos, Gabriel Galli. “Refletir sobre o bullying e trazer obras desse jeito é o mínimo que a gente pode fazer, enquanto sociedade, para pensar essas questões. Um banco do tamanho do Santander, pedir desculpa por trazer essas questões, é mais do que uma vergonha. É para chorar no canto e refletir que sociedade a gente está construindo”.
O curador da exposição, Gaudêncio Fidélis, diz que “não há diálogo” entre ele e o Santander Cultural no momento. Fidélis conta que só ficou sabendo da decisão do banco de encerrar a exposição quando um amigo enviou a nota publicada pelo Santander, nas redes sociais. “O Santander Cultural não fez nenhum contato real comigo depois do fechamento da exposição, eu ouvi através de um jornalista que me procurou, que o Santander teria dito que é irrevogável”, diz ele.
Graças a repercussão internacional da história, Fidélis conta que tem sido procurado por instituições culturais de Belo Horizonte, Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro interessadas em receber a exposição. Nenhum museu ou galeria de Porto Alegre o contatou até o momento. Porém, ele acha difícil que uma reabertura, como a Queermuseu foi pensada, se concretize. “Eu não vislumbro nesse momento outra instituição que esteja preparada para receber uma exposição com essa complexidade de logística, que envolve todo um aparato”, afirma o curador.
O filho de Lygia Clark (1920-1988), uma das artistas consagradas que estava no catálogo da exposição, veio a Porto Alegre para buscar as obras assinadas por ela. Para Arthur Edwards Clark, que preside a fundação com o nome da mãe, o público gaúcho “não estava preparado” para os trabalhos apresentados.
“A coordenadora do MBL disse que tinha uma obra onde as pessoas teriam que colocar as mãos nas nádegas um do outro. Eu disse: meu bem, leia sobre a obra. A obra mostra um querendo se reconhecer no outro”, disse se referindo a uma entrevista da qual ambos participaram na Rádio Guaíba. “A obra dela é assexual, não tem conotação sexual. Tudo o que ela apresentava, ela colocava um plástico entre os participantes. Se na interpretação da pessoa houvesse essa conotação, acabava com a obra dela”.
Para Fidélis, o Movimento Brasil Livre (MBL) viu na exposição uma “plataforma” para ganhar visibilidade. Desde que foi aberta, na metade de agosto, cerca de 20 mil pessoas já haviam visitado a Queermuseu. “É importante lembrar a gravidade do que estamos vivendo. Pela primeira vez, na história da arte brasileira e das exposições de artes visuais, nós temos uma exposição fechada. Nem na época da ditadura, uma exposição com 263 obras de 85 artistas foi fechada”.
O ato convocado por movimentos sociais, ativistas LGBT e artistas ganhou companhia de um grupo de cerca de 12 pessoas, enroladas em bandeiras do Brasil e camisetas com verde e amarelo. O grupo segurava cartazes com dizeres como “só queremos paz e respeito”, “queremos o fim da criminosa ideologia de gênero” e gritava frases como “os islâmicos estão chegando”. Algumas senhoras também entregavam panfletos defendendo a intervenção militar.
O empresário Felipe Saldanha, identificado pelo próprio grupo como “porta-voz” do ato, diz que não era essa a intenção do protesto. “Nós viemos fazer apenas um contraponto, pacificamente, e estamos sendo atacados aqui. Já tentaram empurrar e cuspir. Sabíamos que seríamos minoria, mas viemos pelo contraponto”.
Saldanha não visitou a exposição, mas afirma que “no seu entendimento”, a tipificação de crimes como apologia à pedofilia e à zoofilia, “estava claro” a partir do que interpretou em vídeos que recebeu de amigos pelas redes sociais. Ele também diz não fazer parte de “nenhum grupo militante”, mas que participou dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) e se identifica como “apoiador” do Escola Sem Partido.
“Eu não visitei, mas recebi os vídeos completos e pra mim basta. Não preciso nem ver [as obras]. A exposição em si traz algumas figuras que, no meu entendimento, caracterizam crime de apologia à zoofilia, à pedofilia e contra figuras religiosas. Dessas figuras, existem outras obras de arte do curador que eu não questiono. O problema é que 4 ou 5 são subversão e imoralidade”, explica ele.
Na interpretação do Ministério Público, que visitou a exposição fechada nesta segunda-feira, no entanto, não há apologia a nenhum dos crimes apontados pelas críticas. “Pedofilia, por definição legal, é a utilização de criança e adolescente em cena de sexo explícito, reprodução de sexo explícito ou simulação de sexo explícito, ou ainda a exposição de genitália de criança e adolescente. Isso não existe na exposição. Pedofilia não acontece”, afirmou o promotor Júlio Almeida, em entrevista à Rádio Guaíba.
“Essa exposição é culminância de um processo de questões importantes que vêm acontecendo e nas quais o Brasil avançou, que é sobre criar plataformas de expressão sobre identidade de gênero, sobre orientação sexual, sobre liberdade, diferença e diversidade. A exposição foi feita com essa convicção, de que ela abriria o diálogo para todas essas expressões”, defende Gaudêncio. “A decisão foi intempestiva, que não leva em consideração a produção dos artistas, a produção de conhecimento, o direito de cada um de nós de ter acesso a essas obras”.
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Ativistas LGBT protestam contra fechamento de exposição no Santander e por visibilidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU