31 Agosto 2017
Lucía Ciccia mexe com o tabuleiro das neurociências. Sabe que pode ganhar vários inimigos com sua tese de doutorado que está a ponto de defender, sobretudo entre médicos famosos, grandes vendedores de livros, que afirmam que os cérebros da mulher e do homem são distintos, e que por essa razão elas, por exemplo, são mais intuitivas e melhor preparadas para a multifunção e eles mais propensos à ação, entre outras diferenças, que – segundo essa ótica – viria marcada desde o nascimento.
Após analisar centenas de experimentos publicados, sobre os quais se baseiam estas afirmações, chegou à conclusão de que se tratam de estudos de baixa “confiabilidade estatística”, porque utilizam apenas um punhado de participantes, entre 12 e 20, e geralmente os experimentos não costumam ser replicados.
“Não se pode generalizar dessa maneira a partir de só um ou dois estudos, com tão baixo número de amostra. Não existe um dimorfismo sexual cerebral. Não há consistência nas características de um cérebro para dizer que pertence a um ou outro sexo. Se há diferenças, podem ser consequência de nossa prática cultural, mas não são inatas. Além disso, a variabilidade existente nos cérebros de um mesmo sexo é tão grande que invalida agrupá-los de acordo com homens e mulheres, para se fazer um experimento”, destaca em conversa com o jornal Página/12, entre o burburinho da tarde do bar Varela Varelita, de Palermo.
“Com diferentes métodos de comparação e formas de argumentação, segundo os avanços tecnológicos e científico-técnicos da época, a partir da ciência moderna, o cérebro operou como o fundamento biológico predileto para legitimar a opressão da mulher. Hoje, as neurociências representam a autoridade científica capaz de respaldar a histórica categorização binária e hierarquizada dos sexos”, adverte Ciccia.
É bolsista do CONICET (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas) e seu lugar de trabalho é o IIF-SADAF (Instituto de Investigações Filosóficas-Sociedade Argentina de Análise Filosófica). Sua tese de doutorado, La ficción de los sexos: hacia um pensamiento neuroqueer desde la epistemología feminista, tem como madrinhas a pesquisadora Diana Pérez e a filósofa feminista Diana Maffía, do Instituto Interdisciplinar de Estudos de Gênero (IIGGE), da Universidade de Buenos Aires. Já entregou sua tese e aguarda para defendê-la. Está há mais de três anos lendo sobre a história do estudo do cérebro, por um lado, e centenas e centenas de papers, sobre neurociências, por outro.
A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada por Página/12, 28-08-2017. A tradução é do Cepat.
Qual é a relação do patriarcado com a ciência?
Ao longo da história, as práticas políticas que implicaram a violação sistemática dos direitos das mulheres e a imposição de uma norma de conduta sexo-específica necessitaram de um amparo científico capaz de legitimá-las. Como consequência, as pesquisas orientadas ao estudo das diferenças biológicas entre os sexos sempre buscaram “confirmar” a inferioridade da mulher como um universal que, por sua vez, utilizando tal viés como justificativa, era excluída da própria produção do conhecimento científico.
Claro, é importante ressaltar que, na antiguidade, a ciência era quase exclusivamente patrimônio masculino...
Ao longo da Idade Média, a Igreja Católica garantiu essa continuidade. Finalmente, com a institucionalização da ciência a partir do século XVII, as mulheres ficaram oficialmente excluídas da produção do conhecimento científico até fins do século XIX, quando se regulamentou o ingresso da mulher nas universidades. Como sustenta Evelyn Fox Keller, hoje, não é a ausência relativa de mulheres o que torna a ciência essencialmente masculina, mas, sim, a própria atividade científica. Ou seja, a natureza de sua metodologia.
O discurso científico sempre sustentou a existência de uma incapacidade inata na mulher?
Sim. Conduto, os argumentos para fundamentá-la foram mudando de acordo com o marco científico no qual se desenvolveram. Não obstante, assim como sustenta Diana Maffía, é factível identificar um método em comum, utilizado pelas ciências, a fim de legitimar a superioridade masculina. Esse método implica: a) destacar diferenças biológicas e psicológicas naturais e inevitáveis entre os homens e as mulheres; b) hierarquizar essas diferenças de tal modo que as características femininas são sempre e inescapavelmente inferiores às masculinas; c) justificar em tal inferioridade biológica o status social das mulheres.
O que você pesquisou em sua tese?
Seguindo a linha de análise de Maffía, explorei como as diferenças biológicas entre “homens” e “mulheres” foram construídas historicamente para legitimar o ponto “b”. Especificamente, centrei-me na nova cosmovisão dos sexos que começou a se instalar a partir do nascimento da ciência moderna, durante o século XVII. Proponho que esse ponto de inflexão, que significou abandonar a teoria Hipocrática-Aristotélica-Galênica a respeito dos corpos, implicou em centralizar as diferenças no órgão que era comum a “ambos sexos”: o cérebro. Ao se tornar um objeto de estudo, medível e pesável, foi a pedra angular para garantir não só a subordinação da mulher, como também uma organização hierárquica regida em termos de raça e de classe. Desta maneira, sobre o cérebro se apoiou a polarização dos papéis sociais, que era necessária para a sociedade pré-capitalista, em vias de industrialização.
Defende, então, que as ciências do cérebro foram centrais para respaldar o papel que a mulher precisou ocupar na ordem social emergente?
Exato. Em minha pesquisa, descrevo como os discursos protofeministas dos séculos XVII e XVIII, e posteriormente os das três ondas do feminismo, tentaram ser neutralizados pelos postulados provenientes das ciências do cérebro. Desta maneira, a frenologia surgida no século XVIII - segundo a qual cada instinto ou faculdade mental radica em uma região precisa do cérebro, que corresponde a um determinado relevo do crânio - contribuiu para as justificações biológicas que legitimavam a classificação hierárquica e binária dos corpos, atribuindo papéis sexo-específicos: a mulher pertencia por natureza ao âmbito privado, ao passo que o homem estava apto a conquistar o espaço público. Considero que o aprofundamento dessa dicotomia, ocorrida durante a segunda metade do século XIX, coincidiu com o triunfo definitivo da teoria da “localização cerebral”.
O que diz essa teoria?
Significou conferir funções específicas a áreas cerebrais determinadas. O cérebro, que até aquele momento havia sido um órgão inclassificável, começou a ser estudado para além das medições antropométricas concebidas pela frenologia, e posteriormente pela craniologia, possibilitando a modernização dos argumentos cerebrais para justificar a incapacidade mental da mulher. Somado a esses fatos, em fins desse século, a descoberta do “neurônio” como unidade funcional revolucionou a forma de conceber os cérebros e semeou as bases das atuais neurociências. Em definitivo, com diferentes métodos de comparação e formas de argumentação, segundo os avanços tecnológicos e científico-técnicos da época, proponho que, a partir da ciência moderna, o cérebro operou como o fundamento biológico predileto para legitimar a opressão da mulher. Como consequência, sustento que são as neurociências que hoje representam a autoridade científica capaz de respaldar a histórica categorização binária e hierarquizada dos sexos.
Como se envolveu com este assunto?
Sou licenciada em Biotecnologia. Comecei uma pesquisa na Faculdade de Medicina. A ideia era descobrir o papel de um receptor que estava associado a déficits cognitivos em pacientes com transtornos psiquiátricos, especialmente esquizofrênicos ou esquizofrênicas, e que tem a ver com a capacidade de se adaptar a mudanças no ambiente. Não se sabia o que, especificamente, esse receptor fazia. Havia alguma ideia, mas nada concreto. Contudo, chamou-me a atenção terem dito que só utilizam roedores machos para evitar as flutuações hormonais nas fêmeas.
Existem flutuações hormonais nas ratazanas?
Sim, por conta do ciclo de ovulação, e se considera que tal flutuação introduz variáveis nos ensaios comportamentais. Tanto é assim que há estudos em Neurociências concentrados em estudar nos humanos as habilidades para testes cognitivos que se baseiam na fase folicular tardia e precoce, que são dois períodos distintos da etapa de menstruação, onde os níveis de estrogênios variam.
Por quê?
Porque os níveis de estrogênios se associam a desempenhos diferentes para certos testes, assim como a testosterona. Há testes que demonstram uma das diferenças mais consistentes entre os sexos, e são os associados a uma capacidade cognitiva chamada habilidade visuoespaciais. Em linhas gerais, está relacionado a como o cérebro processa a informação do ambiente para se movimentar através do espaço. Vincula-se à capacidade de abstração. Esse teste mostra uma das diferenças mais consistentes entre os sexos com o desempenho masculino superando ao feminino, e relaciona isto com os níveis de testosterona: maior testosterona, melhor desempenho.
Então, é certa a afirmação de que é mais difícil para as mulheres do que para os homens ler um mapa, por exemplo?
A leitura de mapas tem a ver justamente com esta tarefa. Afirma-se que há uma correlação positiva com os níveis de testosterona.
E o que há de verdade?
É um tema controverso, os resultados são contraditórios, porque os experimentos em Neurociências se caracterizam por ter poucos números de participantes: 10,12, 15, 20 pessoas.
Tão poucos?
Há exceções que podem chegar a ter grupos grandes, de até 500, inclusive. Contudo, em linhas gerais, os números são baixos, pela complexidade dos estudos, porque às vezes faltam sujeitos experimentais, dependendo do que se queira avaliar pode ser difícil conseguir participantes, e por razões de infraestrutura. Mas, sim, caracterizam-se por esse número, baixíssimo.
Vamos retomar este ponto, mas nos restam os ratos...
Para evitar a flutuação hormonal, eram utilizados só machos. Se são utilizados só machos para descobrir a função de um receptor, o que se pensa, então, é que não há diferenças nos cérebros entre machos e fêmeas e entre homens e mulheres. Porque a ideia é extrapolar esses resultados a humanos. Quando começo a indagar nas pesquisas o que tem a ver com diferenças cerebrais entre homens e mulheres, na base de dados que se chama PuBMed - uma das maiores disponíveis através da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos -, ao colocar no buscador human brain + sex difference (cérebro humano + diferenças sexuais), aparecem mais de 8.000 artigos com esse título. Ou seja, centenas de pesquisas que, em teoria, provam as diferenças cerebrais, ponto a ponto, entre homens e mulheres. Por exemplo: o processamento das imagens eróticas com diferentes padrões de ativação neuronal, do humor, do medo, emoções, capacidades cognitivas, comportamentais.
Qual o grau de seriedade desses estudos, se são realizados com 15 ou 20 pessoas?
Há um problema: quando há um baixo número de amostras, embora seja possível replicar o estudo, isso não significa aumentar o número, porque são dois experimentos diferentes. É incorreto estatisticamente. Ainda que seja o que se costuma fazer e não está bem. É preciso reportar as vezes que foram feitas o experimento e com qual número de participantes foi realizado. No entanto, como os números são baixos, o que se costuma fazer é realizar o experimento duas vezes, ou mais, para aumentar o número da amostra e reportá-lo como um único estudo. Não é correto. Mas, em geral, só são realizados uma vez, não são replicados. Isto se deve ao fato de que a replicação é algo que leva tempo, e que “não dará” um resultado inovador, porque já se realizou uma vez, e só se estaria checando um resultado. Para publicar, não se valoriza a replicação de experimentos. Por isso, as equipes de pesquisa não costumam proceder assim. O que se exige nas revistas científicas é mostrar diferenças significativas em um estudo inovador. Por isso, a confiabilidade estatística em geral não é boa.
O que você afirma pode desqualificar muitos dos livros questão sendo vendidos em livrarias, hoje, e que se baseiam em experimentos de neurociências para reafirmar diferenças cerebrais entre homens e mulheres...
Não sei o que esses livros dizem pontualmente, mas afirmar em termos conclusivos que o cérebro da mulher é mais emocional que o do homem é falso. Em primeira instância, porque não podemos falar do cérebro como um todo. O que significa dizer que é mais emocional? Há múltiplas estruturas, circuitos, áreas, e diferentes tipos de emoções, não uma só, homogênea, que se correlaciona com um único padrão de ativação neuronal. O cérebro é muito mais complexo que uma relação linear “estímulo-resposta”.
Voltemos aos ratos...
Primeiro, comecei a indagar sobre a confiabilidade das pesquisas que, baseando-se no dimorfismo sexual genético-hormonal-genital, projetavam esse dimorfismo nos cérebros. Ou seja, dois tipos diferentes de cérebros correspondentes “com seu sexo cromossômico”. Esclareço que considero polêmica esta classificação binária para nosso corpo em geral, sendo um parâmetro normativo para marginalizar aqueles corpos que não se ajustam a tal norma. O interessante dessas pesquisas era que ainda que afirmassem um dimorfismo sexual cerebral, esse fato não se refletia nos ensaios básicos com roedores. Cometia-se o deslize de não avaliar as fêmeas. E me dei conta de que não se tratava de um erro metodológico, que não se davam conta de que não usavam fêmeas, mas, ao contrário, que era o viés de usar o macho como índice de referência.
O universal?
Como o homem é o universal, o macho é o índice de referência. Hoje, nos ensaios pré-clínicos em geral, são utilizados machos. De fato, em 2014, nos Estados Unidos, o Instituto Nacional da Saúde retirou um anúncio, obrigando a que se introduzisse o sexo como variável biológica nos ensaios pré-clínicos, a menos que estatisticamente se demonstrasse o contrário.
Vamos ver... Você destaca que é necessário utilizar fêmeas e machos nos experimentos em ciência básica, mas, ao mesmo tempo, afirma que nos estudos não aparecem diferenças entre os cérebros de mulheres e homens, não é contraditório?
A pergunta é muito boa. O primeiro ponto era: se há um dimorfismo cerebral em humanos, aqui, nós não o estamos registrando e é um problema. Ou seja, se há tanta busca exaustiva de diferenças cerebrais entre homens e mulheres, com finalidades clínicas, por que essas diferenças não aparecem registradas nos ensaios pré-clínicos? O segundo ponto era que as hipóteses das quais partiam as pesquisas que afirmavam tais diferenças reproduziam os clássicos vieses sexistas e androcêntricos que serviam para legitimar a leitura hierárquica e binária dos sexos. Se não era válido afirmar a existência de um dimorfismo cerebral, como repercutia este fato na prática clínica? O que estou investigando agora são as consequências clínicas desta divisão.
Finalmente, deixou a ciência básica e os roedores...
Sim. Minha tese se baseia na revisão crítica do discurso neurocientífico da diferença sexual e o impacto que possui na pesquisa biomédica e na prática clínica, por esse vazio do qual estamos falando entre o ensaio pré-clínico e o ensaio clínico e, por sua vez, é o que delineia: se não há um dimorfismo sexual cerebral, então, por que seria um problema não usar fêmeas nos ensaios pré-clínicos.
E quais seriam essas consequências?
O problema é que, em primeiro lugar, os ensaios pré-clínicos não são somente cerebrais. Há ensaios pré-clínicos que tem a ver com questões farmacológicas, a metabolização de fármacos, que, sim, é válido – considero – como uma aproximação à contribuição do sexo: utilizar como um recurso metodológico a classificação binária entre machos e fêmeas. Porque, em grandes traços, podemos dizer que podem existir dois tipos de fígados, por exemplo, para o processamento de fármacos. Agora, é válido afirmar o mesmo para o cérebro? O cérebro não é um órgão isolado. Se pode pensar que, se é válido classificar os sistemas fisiológicos restantes de maneira binária, como recurso metodológico para a prática clínica, ao ser parte do mesmo corpo, por que também não o cérebro? Podemos dizer: se nos sistemas fisiológicos restantes é possível dividir em dois, o cérebro também. O problema é que nossa espécie se caracteriza pela alta plasticidade cerebral...
O que isso significa?
É a capacidade de incorporar experiência. Isso se reflete em nosso cérebro. Tanto é assim que um tipo de genialidade não prediz um tipo de cérebro. Hoje, você não pode olhar um cérebro e dizer se é de homem ou de mulher.
Não é possível identificar?
Não, porque há um montão de estruturas, de solapamentos, entre o que categorizamos como homem e mulher, e mais, em um cérebro não há consistência lógica. Ou seja, não há estruturas ou áreas que sejam características só de “homem” ou de “mulher”, mas, ao contrário, os cérebros são mosaicos: combinações destas estruturas que hoje se rotulam como “de homem” e “de mulher”.
Há médicos especializados em neurociências, com grande presença midiática, que afirmam que as mulheres têm mais facilidade para a multifunção, em razão das características dos cérebros femininos. Poderíamos também pensar que nos adaptamos à multitarefa, porque fomos historicamente designadas ao âmbito do doméstico, que é muito diferente do que considerar que é uma predisposição natural por nossa característica cerebral?
Exato! Disse antes que uma alta plasticidade cerebral nos caracteriza como espécie, e que temos a capacidade de incorporar a informação e experiência individual que impacta em nossa fiação neuronal e que nos devolve um cérebro singular. Não há um cérebro igual ao outro. Ora bem... sim, há estereótipos normativos de gênero.
Que impacto tem o estereótipo de gênero em nossa estrutura cerebral?
Eu, sim, acredito que as condutas normativas que reproduzimos e produzimos, como mulheres e homens, que são os únicos sexos inteligíveis hoje, segundo o discurso científico - esclareço que entendo os termos homem e mulher como categorias biológicas -, podem repercutir em nossa arquitetura cerebral. Ou seja, a aprendizagem de nossas práticas de gênero pode se refletir em nossos cérebros, e podemos cometer o deslize de pensar que existem diferenças entre “sexos”, quando na realidade se trata de diferenças de gênero, são aprendidas, são programações culturais. Por isso, podemos falar de condutas que tem capacidade de agenciamento individual e de mudança. Em definitivo, se nós olhássemos para cérebros de mulheres e de homens e encontrássemos diferenças em respostas associadas com tarefas multifunção, pode ser que tais diferenças tenham sido consequência de nossa prática cultural, e não causas biológicas.
Há cérebros que não contem com influência de qualquer tipo social, para poder estudar e determinar se é causa biológica ou consequência cultural?
Essa pergunta é chave e a resposta é que não. Minha hipótese é verdadeira assim como qualquer pesquisa que diga que é causa genética hormonal. Porque não temos nenhum cérebro que esteja isento de cultura. As maiores diferenças, as mais consistentes, são as associadas às áreas de reprodução, à química e à mecânica, falamos de ereção, de ejaculação e de ciclo de ovulação. São as duas estruturas cerebrais que apresentam as diferenças mais consistentes em humanos, mas inclusive nelas existem solapamentos.
O que quer dizer?
Que nem sequer nessas áreas estamos isentos da prática cultural e social. Somente podemos ter uma aproximação da contribuição que tem a constituição genética hormonal em nossa fiação neuronal, sendo tal contribuição indissociável de nossa prática social e cultural. Não podemos ver o cérebro e dizer “até aqui é biológico” e “até aqui é cultural”.
Por que a partir da neurociência se reafirmam os estereótipos de gênero? Que interesse há por trás, dado que essas pesquisas possuem tão pouca confiabilidade estatística, segundo você mesmo afirma?
As pessoas que fazem ciência não são, muitas vezes, conscientes destes vieses que se reproduzem. Muitas e muitos realmente pensam que essa é a verdade, que existem dois cérebros e que nossa biologia determina capacidades e condutas sexo-específicas. No entanto, classificar os cérebros de acordo com uma categorização binária pode apresentar falsos positivos. Ou seja, agrupar os cérebros segundo o critério homem-mulher pode, ou não, resultar em diferenças, dependendo do acaso, de “quais cérebros” participam de um estudo. Salvo certas exceções, não é válido incorporar o sexo como variável biológica nos estudos cerebrais em humanos, e em roedores só em condições muito específicas, devendo-se controlar uma multiplicidade de variáveis. Em minha tese apresento a urgência de reconceitualizar o regime sexual binário, com a finalidade de habilitar a produção de novas metodologias que possibilitem um melhor acesso à compreensão de como afeta nossa biologia na vulnerabilidade e prevalência de desordens e enfermidades neuronais. Neste sentido, proponho começar a partir de uma perspectiva cerebral, mas também sugiro a necessidade de nos estender a todo o organismo. A classificação binária responde a um regime patriarcal que “produz” dois sexos ideais com fins prescritivos e normativos, e nós devemos transformar essa categorização, em termos de saúde, em aproximações biológicas como recurso metodológico a serviço de nossos sexos reais. Também sustento que, na atualidade, o gênero deve indefectivelmente se incorporar como variável na pesquisa biomédica e na prática clínica.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“As neurociências respaldam a hierarquia dos sexos”. Entrevista com Lucía Ciccia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU