15 Agosto 2017
O jornal L’Osservatore Romano publica uma edição monográfica especial em espanhol dedicada a Óscar Arnulfo Romero. Na revista - enriquecida com imagens menos conhecidas da vida de Romero - constará, entre outros, um artigo que apresenta a carta pastoral Ustedes también darán testimonio porque han estado conmigo desde el principio que José Luis Escobar Alas, Arcebispo de San Salvador, escreveu por ocasião do quadragésimo aniversário do assassinado do padre Rutilio Grande e do centenário do nascimento de Romero.
A informação é publicada pelo próprio jornal L'Osservatore Romano, 10-11 agosto 2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Enquanto isso, patrocinado pelo cardeal Gregorio Rosa Chávez, está sendo realizada – tanto em El Salvador como em outros países da América Central e nos Estados Unidos - a marcha de 150 quilômetros em três dias, organizada em homenagem ao arcebispo assassinado em 1980.
No dia da Assunção o centenário de nascimento de Oscar Romero. Um bispo e um Papa (Giovanni Maria Vian)
O dia da Assunção também marca o centenário do nascimento de um dos cristãos mais conhecidos do nosso tempo, Óscar Romero. O Arcebispo de San Salvador foi assassinado em 1980, aos sessenta e três anos, enquanto celebrava a missa, por ter denunciado a injustiça e a violência que flagelavam o pequeno país da América Central: posicionamento claro em nome do Evangelho. Na frente de seu túmulo, em 1983, parou para rezar João Paulo II, que em 1997 autorizou a abertura da causa de canonização, mas que só em 2012 foi retomada, por decisão de Bento XVI e depois por Francisco, até a beatificação, em 2015, como mártir.
Paulo VI benze a foto de Rutilio Grande que lhe
apresentada por Romero
Mas, para Romero, foi especialmente importante Paulo VI, o Papa que o nomeou, em 1970, bispo auxiliar de San Salvador, em 1974, bispo de Santiago de Maria e, em 1977, arcebispo da capital. O jovem clérigo tinha estado em Roma, onde estudou na Universidade Gregoriana no final de 1930 e início de 1940, já em plena guerra. Foi justamente essa formação romana, nos moldes tradicionais, que lhe permitir participar, vinte anos mais tarde, da temporada conciliar com confiança no magistério. E foi precisamente a visão aberta do Papa Montini, que liderou com coragem e sabedoria o Vaticano II, a orientação que o padre salvadorenho escolheu acolher.
Em um artigo publicado no início de 1965, Romero escrevia: "Para não cair no ridículo de um crítico apego ao velho e para não cair no ridículo de tornar-se aventureiro de "sonhos artificiosos" de novidades, melhor é viver hoje mais do que nunca aquele clássico axioma "sentir com a Igreja" que concretamente significa apego à hierarquia".
E a expressão Sentir com la Iglesia, de matriz inaciana, foi escolhida cinco anos mais tarde pelo novo bispo auxiliar de San Salvador como seu lema episcopal.
Bispo em um país cruelmente oprimido pelas oligarquias e pelos militares, preocupado com as tendências políticas manifestadas na teologia da libertação, gradualmente chegou a compartilhar o seu conceito sobre a centralidade dos pobres, que em 1968 foi reafirmado pela Conferência de Medellín, em que havia participado Paulo VI, o primeiro papa a pisar na América Latina. E foi justamente um documento de Montini, o Evangelii nuntiandi, muitas vezes relembrado com admiração pelo seu atual sucessor, que sempre incentivava monsenhor Romero. Exatamente por causa da sua posição moderada foi escolhido como arcebispo de San Salvador, enquanto a situação estava se tornando cada vez mais difícil e aumentava a violência repressiva.
A primeira homília do arcebispo foi em homenagem a um amigo fraterno, o jesuíta Rutilio Grande, assassinado por esquadrões da morte com dois fiéis, Manuel Solórzano e Nelson Rutilio Lemus, enquanto se deslocava para celebrar a novena a São José, quase uma antecipação da própria morte: "Assim ama a Igreja, morre com eles e com eles se apresenta à transcendência do céu. Ela os ama, e é significativo que tenha sido enquanto caminhava para o seu povo para levar a mensagem da missa e da salvação que o padre Rutilio Grande tenha caído crivado por balas. Um padre com os seus camponeses, no caminho de seu povo para se identificar com ele, para viver com eles não uma inspiração revolucionária, mas uma inspiração de amor".
Poucos dias depois, Romero viajou para Roma para buscar o apoio que não mais recebia do núncio, e o papa o recebeu imediatamente, como tinha acontecido três anos antes, e como iria acontecer um ano depois, precisamente no aniversário da eleição de Montini.
A memória detalhada desta última audiência é relatada no diário do arcebispo. "Paulo VI apertou minha mão direita e a segurou longamente entre as suas, e eu também segurei com minhas duas mãos a mão Papa", que falou demoradamente com ele: "Eu entendo a sua difícil missão. É um trabalho que pode não ser compreendido e precisa de muita paciência e força. Eu sei muito bem que nem todos pensam como você; é difícil, nas circunstâncias do seu país, ter tal unanimidade de pensamento; mas continue em frente com coragem, com paciência, com força e com esperança". Menos de dois meses mais tarde, Romero era assassinado.
Ele foi capaz de responder à história (Gregorio Rosa Chávez, cardeal bispo auxiliar de San Salvador)
Na manhã de 5 de agosto último, ouvindo a Rádio vaticana, tive duas agradáveis surpresas: a notícia de que o papa Francisco havia escrito uma carta ao Cardeal Ricardo Ezzati, seu enviado especial às celebrações do centenário do nascimento de monsenhor Romero; e uma ampla reportagem sobre o Beato Paulo VI, por ocasião dos trinta e nove anos de sua morte, que ocorreu às 21h40min de 6 de agosto de 1978 (13h40min da tarde, em El Salvador). Ouvi isso ônibus, voltando da missa do Divino Salvador do Mundo no seminário.
Na carta ao cardeal de Santiago do Chile, o Santo Padre qualifica o nosso Beato como: "Bispo e mártir, ilustre pastor e testemunha do Evangelho e defensor da Igreja e da dignidade humana". Além disso, chama-o de porta-voz do amor de Cristo "entre todos, especialmente entre os pobres, os marginalizados e os excluídos da sociedade", e acrescenta que como sacerdote e como bispo, ele difundiu "a justiça, a reconciliação e a paz". Mas, o mais surpreendente para mim foi ouvir durante a homenagem transmitida pela emissora, a voz de Paulo VI, porque na reportagem podem ser ouvidas, na voz do próprio Papa, as amáveis palavras dirigidas a monsenhor Rivera e a monsenhor Romero. Uma verdadeira emoção.
A ocasião é propícia para afirmar perante o país e perante a Igreja que estamos em dívida com monsenhor Rivera. Não é justo que esqueçamos o seu testemunho, não apenas por sua luta incansável para devolver a paz ao país, mas para ser o fiel continuador do legado de monsenhor Romero, a quem sucedeu como Arcebispo de San Salvador.
A Igreja deve sempre dialogar com o mundo e ouvir primeiro, para poder responder. Isso foi o que caracterizou tanto monsenhor Romero como monsenhor Rivera: souberam responder em seu momento à história. Outra dívida pendente que temos, é com monsenhor Luis Chávez y González. Ele foi o arquiteto da Igreja que estamos vivendo. Ele participou das quatro sessões do Concílio Vaticano II. Foi membro da comissão preparatória do concílio, escolhido pelo Papa João XXIII. Anunciou que essa igreja declarava-se "em estado de concílio", ou seja, que assumia de antemão o que a assembléia iria dar à Igreja. E quando aplicou o concílio à América Latina, em Medellín, ele manteve presentes tais documentos. A nossa história de martírio começou aqui, porque viver o que ensinam esses documentos conduz ao martírio.
Tanto monsenhor Romero como monsenhor Rivera foram seus bispos auxiliares. Quem teria imaginado que se tornariam mais tarde, juntamente com o terceiro arcebispo de San Salvador, os três pilares sobre os quais repousa a nossa Igreja arquidiocesana? Monsenhor Chávez, monsenhor Romero e monsenhor Rivera são essas três colunas. E que colunas fortes tivemos como dom de Deus! O emblema episcopal de monsenhor Chávez me chama a atenção por dois motivos: primeiro porque traz o contorno do vulcão de San Salvador como o vemos daqui. E, em segundo lugar, pelo lema, escrito em latim, que diz: Ipsum audite ("Ouvi-lo!").
De acordo com uma sólida tradição, a transfiguração do Senhor teve lugar no Monte Tabor. Quando ainda era sacerdote, em 1956, o padre Óscar Romero visitou a Terra Santa e deixou uma série de lindas crônicas sobre os diferentes lugares da terra natal de Jesus. Ao falar do monte Tabor escreveu: "É possível sentir Deus nesta divina paisagem de montanha e planície. O Tabor fica a 562 metros acima do mar, a cerca de 300 metros acima da planície. Devido à sua altura e suas linhas elegantes o Evangelho deu-lhe a alcunha de "um monte elevado". Porque esta é definitivamente a montanha da transfiguração. O Evangelho não menciona o nome; mas todas as circunstâncias concordam com a antiga tradição, que por testemunho de Orígenes, no século III, pode ser rastreada até os próprios apóstolos".
Muitos anos mais tarde, em 13 de Agosto de 1978, Monsenhor Romero, na função de arcebispo, proferiu a homilia da Transfiguração com estas palavras: "Um povo que fixa seu olhar e seu coração em Jesus Cristo como Salvador do mundo, é um povo que não pode perecer. Há também um sinal de esperança que precisamos manter: o nosso amor pelo Divino Patrono. Mantenhamos esta honra e tentemos nos fortalecer mais nessa adesão inabalável, cheia de esperança no Filho de Deus".
Este saudável exercício de memória permite-nos compreender o presente. Imediatamente retornam à minha mente as palavras do Papa Francisco aos jovens no Rio de Janeiro, na jornada da juventude: "Vendo vocês aqui hoje, lembro-me da história de São Francisco de Assis. Em frente ao crucifixo ele ouviu a voz de Jesus dizendo: "Francisco, vai e repara a minha casa". E o jovem Francisco respondeu prontamente e generosamente a esse apelo do Senhor: reparar sua casa. Mas que casa? Aos poucos, percebeu que não se tratava de ser um pedreiro e reparar um edifício feito de pedras, mas de dar a sua contribuição para a vida da Igreja; tratava-se de se colocar ao serviço da Igreja, amando-a e trabalhando para que nela sempre se refletisse o Rosto de Cristo".
Hoje há muitos jovens envolvidos com a Igreja, com grande entusiasmo, com grande criatividade. Mas falta uma coisa: não os estamos preparando para mudar a história. E é isso que precisamos fazer, nós que estamos na direção e temos mais experiência nesta Igreja: preparar a geração vindoura para mudar a história que tanto sofrimento está nos causando. As celebrações deste ano tiveram como tema central o centenário do nascimento de Dom Óscar Arnulfo Romero e a vocação martirial da nossa Igreja. Assim o ilustra a imagem do nosso amado pastor, ao lado da qual pode ser lido o lema de seu episcopado: "Sentir com a Igreja".
Nós precisamos interiorizar essa dimensão tão desconhecida e gloriosa que pertence à nossa igreja: somos uma Igreja de mártires. Para nós resulta fácil aplicar essa qualificação quando falamos de monsenhor Romero, dos sacerdotes assassinados e das quatro mulheres norte-americanas - três freiras e uma missionária leiga – que perderam a vida em dezembro de 1980.
No entanto, temos uma dívida que precisamos resgatar o mais rápido possível: somos obrigados por gratidão a Deus e por amor à verdade a resgatar a memória de cem mártires anônimos, a maioria dos quais é de humildes camponeses. Eles têm duas coisas em comum: a primeira é que, durante os anos da guerra, nunca mancharam suas mãos com sangue; e a segunda é que foram homens e mulheres que se esforçaram para amar a Deus e ao próximo.
Não vamos esquecer as palavras de São João Paulo II: "Os mártires são o melhor da Igreja". A tarefa não é fácil, porque em nosso país ainda se continua a chamar de mártires aqueles que empunharam armas e morreram seguindo um ideal, e porque o termo continua a ser incômodo para boa parte da população salvadorenha. Para nós mártir significa testemunha. O mártir por excelência é Cristo, "a fiel testemunha", como é chamado no Apocalipse. Sim, temos de caminhar com eles em nome de Cristo.
Uma bela parábola desse convite é a peregrinação que vai colocar em marcha milhares e milhares de homens e mulheres de todas as idades e condição social na sexta-feira11, sábado 12 e domingo 13 deste mês, quando celebraremos pela primeira vez na nossa história ‘O caminho de monsenhor Romero’. O lema que nós, bispos de El Salvador, estamos propondo para este ano é: "Em peregrinação até o berço do profeta", ou seja, Ciudad Barrios. Devemos ter em mente que todos podemos participar, percorrendo pelo menos parte do caminho, na medida em que permitirem as nossas forças e o nosso entusiasmo. Estou certo de que o país e o mundo irão assistir com admiração a algo nunca antes visto, que irá se tornar tradição anos após ano: um povo que se coloca em marcha, com fé, em profunda oração, pedindo a intercessão de beato Romero para obter o dom tão ambicionado da paz, é um povo que não será vencido.
Repito aqui o que já disse em várias ocasiões: um povo que decide se por em caminho, é invencível. É invencível quando sabe pelo que está caminhando, quando sabe rumo a que está caminhando e quando confessa sua fé em Jesus Cristo, caminho, verdade e vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Edição especial de L'Osservatore Romano sobre Mons. Óscar Romero em comemoração ao centenário do nascimento do Beato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU