07 Julho 2017
"Por isso Jesus não é enterrado, mas semeado. Um grupo de leigos, majoritária e sintomaticamente formado por mulheres, se encarrega de descer do madeiro o corpo do Crucificado. São as personagens do momento da crise, da tragédia, da escuridão. Os demais, até mesmo os futuros apóstolos e colunas da futura Igreja, haviam se dispersado. Mas aquele punhado de pessoas toma sobre si a tarefa de prestar as últimas homenagens ao falecido. Não é difícil imaginar com que dor e com que tristeza tais pessoas o fazem. Tampouco é difícil imaginar com que carinho e com que delicadeza elas o transportam ao túmulo. Aí o corpo, de acordo com o costume da época, é cuidadosamente perfumado, envolto em lençóis limpos e “semeado”", escreve Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor das Pastorais Sociais.
A cruz é maldita. Instrumento de tortura e morte do mundo antigo: atroz e duradouro, reservado aos rebeldes mais execrados. “Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro”, diz São Paulo na Carta aos Gálatas (Gl 3,13), citando o Livro do Deuteronômio. Deus está ausente da cruz, pois, ainda conforme a citação do Deuteronômio, “aquele que é pendurado é um objeto de maldição divina” (Dt 21,23). O Pai não pode comungar com a violência extremada dos homens, especialmente quando esta se abate sobre um inocente que “passou pela vida fazendo o bem” (At 10,38). Daí o grito atormentado e incompreensível do Filho, agonizante no alto da cruz, citando o salmo 22: “Elói, Elói, lamma sabactáni?”, “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” (Mc 15,34).
Mas é igualmente incompreensível que, em momento tão crucial (e este adjetivo tem origem na cruz), o pai abandone o filho. É este último, aliás, que torna presente o amor do Pai no seu gesto humano-divino, o gesto mais inaudito e surpreendente de todos os tempos: “Pai perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem!” (Lc 23,34). Aqui o contraste se eleva à máxima potência. À ação violenta das autoridades que o julgaram e dos soldados que o executam, Jesus responde com o perdão. A manifestação mais extremada da violência se confronta com a própria personificação da misericórdia. Enquanto, de um lado, os verdugos se atiram como que embriagados sobre a presa inocente, de outro, Deus “se vinga” oferecendo a dádiva do perdão. Sendo Jesus Cristo a revelação do amor divino, o verbo feito carne, este é sem dúvida o momento sublime de tal revelação.
Nesta linha de reflexão, exclui-se completamente a ideia de que o Pai entrega o Filho em sacrifício pela salvação da humanidade. Hoje é unânime entre os estudiosos (Cfr. por exemplo, o livro de José Antonio Pagola) o consenso de que a morte brutal de Jesus é fruto de seu profetismo e testemunho, ambos de uma radicalidade sem precedentes. Nessa trajetória em defesa da justiça e dos pobres, o nazareno se bate com as forças conservadoras da época, representando tanto o poder judaico quanto o império romano. São as autoridades constituídas que manipulam o povo, exigindo deste um “crucifica-o, crucifica-o” que, irremediável e fatalmente o levará ao calvário. E o Pai, permanece silencioso, indiferente, alheio à cena do Gólgota? O silêncio de Deus é a condição da liberdade humana. Deus é fiel porque cala, respeitando as opções de cada um. Em tudo, menos no pecado, Jesus experimenta a condição humana (Hb 4,15).
Semelhante reflexão remete à obra de René Girard, particularmente A Violência e o Sagrado e O Bode Expiatório. Nesses estudos, o autor sustenta que a resposta de Jesus ao seu julgamento e execução tão bárbara quebra o círculo vicioso da violência, tão comum nas religiões antigas. Nestas, a violência cotidiana exigia um ritual esporádico, igualmente violento, para refazer a coesão e a paz social. Assim se equilibrava e se neutralizava o ciclo espiral dos atos violentos. Era como se o sangue das vítimas – humanas ou animais – aplacasse a fúria das multidões, refletida na ira dos deuses. A reciprocidade violenta ajudava a conter o círculo repetitivo do caos indiferenciado, gerado por algum tipo de agressão. Dessa forma, a vida em sociedade era como que re-fundada periodicamente em rituais de sacrifício. A civilização estava alicerçada na violência recíproca.
Em outra obra, As coisas escondidas desde a criação do mundo, o mesmo autor esclarece como o perdão, oferecido no alto da cruz e no auge do sofrimento, instaura a fundação de outro tipo de relações humanas e sociais. Aqui os laços nascem não do medo e do equilíbrio entre as forças em permanentes choques violentos, e sim no amor e na solidariedade, inclusive para com os inimigos. Jesus inaugura a possibilidade de outro princípio para própria civilização, desta vez alicerçada em redes solidárias recíprocas. As duas grandes guerras mundiais, o holocausto e a guerra-fria, períodos cáusticos e tragicamente pontilhado por milhares de cadáveres insepultos, pode ser outro resultado da violência mútua.
Retomando o tema, o Pai encontra-se, ao mesmo tempo, ausente e presente na cruz onde o Filho dolorosamente agoniza. Ausente na fúria humana que desencadeia a tormenta assassina sobre o profeta dos últimos tempos. Fúria que se reproduz ao longo dos tempos sobre milhões e milhões de vítimas da história, crucificadas pela pobreza, a miséria, a fome e a violência em suas mil formas. Mas Deus está presente no ato de perdão do Filho que, desse modo, revela com todas as luzes o coração misericordioso, compassivo e amoroso de Deus. Coração do bom pastor, do bom samaritano ou do pai que espera ansioso pela volta do “filho pródigo”. Nesse contraste inédito entre a violência e o amor, há como que um curto-circuito, uma faísca, um raio – que ilumina o mistério da cruz. O gesto gratuito de perdão como resposta aos algozes que o torturam constitui uma semente. Uma semente que não pode morrer!
Por isso Jesus não é enterrado, mas semeado. Um grupo de leigos, majoritária e sintomaticamente formado por mulheres, se encarrega de descer do madeiro o corpo do Crucificado. São as personagens do momento da crise, da tragédia, da escuridão. Os demais, até mesmo os futuros apóstolos e colunas da futura Igreja, haviam se dispersado. Mas aquele punhado de pessoas toma sobre si a tarefa de prestar as últimas homenagens ao falecido. Não é difícil imaginar com que dor e com que tristeza tais pessoas o fazem. Tampouco é difícil imaginar com que carinho e com que delicadeza elas o transportam ao túmulo. Aí o corpo, de acordo com o costume da época, é cuidadosamente perfumado, envolto em lençóis limpos e “semeado”.
A ternura e o esmero que revestem semelhante tarefa parecem acompanhadas de uma profunda intuição: aquele corpo é uma semente e a semente, quando o lavrador lança-a à terra, o faz na esperança de que possa brotar. Inconscientemente, para aqueles poucos fiéis, o retorno à vida parece ser um fruto inevitável frente a uma entrega tão grandiosa. Como se a ressurreição precedesse a própria morte: resultado inequívoco de uma vida que não pode ser apagada nas marcas deixadas na pedra viva da história. Os ventos furiosos da morte não podem desfazer as pegadas de um amor tão belo, tão inteiro e tão profundo. No ato mesmo de “semear” o corpo de Jesus no túmulo está impregnada a intuição de que sua obra e seu gesto final constituem uma semente. Semente que, no solo úmido e aparentemente estéril, irá amadurecer e se levantar. Lançará raízes no terreno da história humana, para depois erguer-se triunfante rumo ao ar livre, ao céu azul, à luz do sol, à Casa do Pai. A ressurreição está em germe, no coração contrito e entristecido daquele pequeno grupo. Talvez para ele o túmulo vazio não tenha representado nenhuma surpresa!
Em outras palavras, na árdua travessia do deserto, quando tudo se faz escuro e parece não haver saída, quem toma nas mãos as rédeas da “história da salvação” é um grupo de leigos, especialmente mulheres. De fato, o espaço compreendido entre a cruz e a ressurreição é tempo de trevas, de desespero. As expectativas com relação ao Reino de Deus se frustram. Tudo parece acabado, o medo tomou o lugar da esperança. Diante dos acontecimentos trágicos, os antigos discípulos sentem-se órfãos, sós e perdidos com a morte do Mestre: enquanto um o havia traído e outro negado, os demais se põem em fuga. Com a exceção do discípulo amado, a debandada contamina a todos.
Emblemático a esse respeito é o episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). Tristes, impotentes, medrosos e cabisbaixos, retornam para o seu povoado, dando por encerrada a aventura de Jesus de Nazaré. Se o líder terminou suspenso no alto da cruz, o que não poderá ocorrer com eles! O mais seguro é deixar os arredores de Jerusalém e refugiar-se tranquilamente em casa. O mesmo episódio, porém, marca uma reviravolta. Se a ida de Jerusalém a Emaús é o caminho do medo e do fracasso, a volta de Emaús a Jerusalém representa o despertar da chama encoberta pelas cinzas: “não ardia nosso coração quando Ele nos explicava as Escrituras?” Os antigos companheiros de Jesus, que empreendiam uma dolorosa fuga, o reconhecem ao partir o pão. Imediatamente se lhes abre os olhos e o coração para a nova realidade. A brasa ressurge, se reaviva, e ambos regressam com asas nos pés para anunciar a Boa Nova. Todo o episódio representa um parto em que o discípulo triste e desalentado se torna missionário ardoroso, para usar a expressão do Documento de Aparecida. A semente lançada à terra começa a germinar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O enigma da cruz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU