Por: João Vitor Santos | 07 Junho 2017
O nosso tempo é do mundo da gestão, da articulação e do cálculo social, onde Estados e grandes entes econômicos ditam as regras do jogo. É com essa perspectiva que o professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Guilherme Castelo Branco abre sua fala durante a conferência A captura biopolítica da vida humana pelos dispositivos de poder contemporâneos. A palestra, realizada na noite de terça-feira, 6-5, numa promoção do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, é mais uma das atividades preparatórias para o IX Colóquio Internacional IHU - A biopolítica como teorema da bioética, que será realizado nos dias 17 e 18 de outubro deste ano. Para Branco, um dos dispositivos centrais de poder que controla as vidas atualmente é a estatística. “Fazemos cálculos e mensurações a todo instante. São cálculos que coagulam as ciências humanas e políticas. A atual burocracia estatal também tem na sua alma a estatística”, reflete.
A perspectiva do professor fica mais clara quando recorda o exemplo de uma amiga que vive uma experiência inusitada na Holanda. “Ela tinha uma conhecida que, depois de muitas idas ao médico e vários tratamentos, descobre que tem câncer no cérebro”, recorda. É por essa história que Branco conhece o conceito da ortotanásia, pois naquele país há um cálculo previdenciário em que se prevê essa morte assistida em caso de pacientes com doenças graves. “Como a doença dela era grave, receberia o tratamento de acordo com o que contribuiu para o sistema de previdência. Como não era rica e nem contribuía para o sistema com grandes quantias...”. Ou seja, havia um cálculo de quanto se poderia gastar no tratamento. Passando desse teto, seriam apenas cuidados paliativos para uma morte assistida. “É gestão e administração, cálculo. A vida está no decorrer disso”, critica o professor.
Branco: “Fazemos cálculos e mensurações a todo instante. São cálculos que coagulam as ciências humanas e políticas” (Foto: João Vitor Santos| IHU)
O que o professor evidencia é a capacidade que se cria, através dos cálculos estatísticos, de mensurar quanto vale uma vida. “Em alguma medida, é a decisão sobre quem pode ou não morrer”, dispara. É como se existisse não mais o Estado, mas sim uma máquina e os cidadãos não fossem mais cidadãos, mas sim usuários. “E aí temos a maior descoberta do capitalismo contemporâneo: a constituição de grandes bolos de dinheiro, de capital, em nome da saúde e do bem-estar das pessoas. Afinal, os maiores ativos no mercado de capitais têm origem nos fundos de previdência, fundos habitacionais, etc.”, analisa. “Assim, o grande capital foi criado em cima do que é a administração da vida das pessoas”, completa.
Branco ainda recorda que há um outro lado dessa gestão e manipulação da vida que “não é tranquilo e apaziguado”. “Nos países onde há essa gestão da vida, vimos que também há constante manutenção do racismo de Estado”, destaca o professor, recuperando a perspectiva foucaultiana. Para ele, é através das estatísticas que se criam parcelas da população que podem ser eliminadas, como numa equação econômica que precisa ser resolvida. O professor não chega a esse exemplo, mas há muitas conexões com as discussões sobre os chamados déficits previdenciários do Brasil e até mesmo a bandeira que se tem levantado sobre a necessidade de discutir o custo do Sistema Único de Saúde – SUS. “Quem sofre são os mais pobres, e também aqueles que pagam um plano de saúde, por exemplo, que vai nessa lógica. Você contrata um plano, mas não se dá conta de que há limite para permanência em UTI. Se você é rico, não tem nem plano de saúde. Paga por médico e fica ‘queimando’ seu dinheiro em tratamentos até o fim da vida”, analisa.
O maior exemplo a que somos remetidos quando se fala em racismo de Estado é o nazismo, mas o professor recorda que esse não é o único. “O nazismo foi o mais explícito, que se revela mais. Entretanto, podemos perceber esse racismo em outros níveis. Basta analisarmos os Estados Unidos de Obama e de Trump. Veremos inúmeras leis inusitadas que revelam esse racismo tanto numa gestão quanto noutra”, explica. Por isso, Branco recupera as formas como o nazismo vai se incrustando e justificando a eliminação de muitas vidas. As cenas que reconstitui de campos de concentração e fuzilamentos coletivos chocam, mas na época se justificava por uma perspectiva muito similar ao que vimos hoje como racismo de Estado, ou vidas possíveis de serem eliminadas em nome de uma redução de custo social para manter essas pessoas. “O racismo de Estado pode ter vários aspectos que podem justificar a eliminação de vítimas em potencial, como mulheres, homossexuais e os jovens, chamados jovens delinquentes, os subversivos”, completa.
Guilherme Castelo Branco recorre a outro conceito de Foucault para demonstrar como na ditadura da gestão estatística impera o controle sobre a vida: o Estado de exceção. “É paradoxal no mundo da gestão pensar em estado de exceção. Mas é isso que se dá. É um golpe de estado operacionalizado pelo próprio Estado”, analisa. O que o professor quer demonstrar é como o Estado, aquele detentor e criador de leis, pode, pelas mesmas vias legais, justificar que passe por cima dessas suas próprias leis. “É uma violência do Estado e a manifestação mais abrupta de sua razão”, avalia.
A fala do professor Branco possibilita outra conexão direta, desta vez com a ideia de terrorismo. Em nome da chamada guerra ao terror, os estados institucionais justificam as mais diversas atrocidades. “Os Estados Unidos, por exemplo, mantêm programas secretos que transportam para lugares distantes e eliminam suspeitos de terrorismo”, pontua, ao associar com os campos de concentração operados pelo nazismo. “Vivemos num mundo que, por atribuição de suspeição, toda pessoa pode ‘ser desaparecida’”, completa.
Guilherme Castelo Branco (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Branco encerra a exposição provocando os espectadores a refletirem mais sobre a biopolítica de nosso tempo. “Se pensa em biopolítica, mas não se fala do controle dessa forma”, aponta. O controle, para ele, é feito de uma maneira muito sutil, que vai agenciando e conduzindo as vidas humanas. “É a criação e mudanças de regulamentos e regras para justificar que determinadas vidas sejam eliminadas ou não”, explica. “Temos um mundo de gestão burocrática e financeirista da vida. É aí que reside nossa maior ameaça”, conclui.
Graduado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde também realizou doutorado em Comunicação. Atualmente é professor de Filosofia da UFRJ trabalhando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia. É líder do Laboratório de Filosofia Contemporânea da UFRJ. Em 2015 publicou dois livros: Michel Foucault. Filosofia e Biopolítica (Rio de Janeiro: Editora Autêntica, 2015) e Clássicos e Contemporâneos em Filosofia Política: de Maquiavel a Antonio Negri (Rio de Janeiro: Relicário Edições, 2015).
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Imperativo da estatística para valoração do direito à vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU