Por: Patricia Fachin | 18 Mai 2017
Do mesmo modo que o termo feminicídio tem sido utilizado para classificar as mortes ocasionadas por questões de gênero, a palavra juvenicídio tem sido cunhada para explicitar os “assassinatos sistemáticos de pessoas jovens”, explica o pesquisador Maurício Perondi à IHU On-Line. Somente no Brasil, que é o país “com um dos mais altos índices de morte de jovens”, informa, houve um crescimento de “669,5% em duas décadas” de “homicídios por arma de fogo na população de 15 a 29 anos”. Os dados, avalia, “são assustadores, pois cerca de 25 mil jovens de 15 a 29 anos foram mortos no Brasil em 2014. Isso é o equivalente a quase 70 jovens mortos por dia”.
Segundo ele, os conflitos que acontecem nos presídios também têm “um forte impacto na realidade juvenil”, porque “um terço da população das prisões” é composta de jovens entre 18 e 24 anos e “55,07% da população carcerária” é composta de jovens que têm entre 18 e 29 anos.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Perondi comenta a situação de vida e as expectativas dos jovens brasileiros. “Eu acho que se vendeu uma ilusão aos jovens de todas as classes sociais nos últimos anos, visto que o Brasil teve um crescimento econômico nunca visto, que, no entanto, não reverteu em políticas e oportunidades sólidas para as juventudes. Uma parcela de jovens, sobretudo de classe média, experimentou nos últimos quinze anos uma elevação do status social que os seus pais não haviam vivido ou que haviam sofrido muito para conseguir. Contudo, isso parece ter criado uma espécie de ilusão de facilidades, uma vez que ‘se vende’ uma imagem de desenvolvimento e de projeto de futuro que nem sempre tem condições reais de se concretizar”, constata.
Como exemplo, Maurício Perondi menciona o aumento dos níveis de educação no país, particularmente o acesso ao ensino superior, que foi colocado aos jovens “como se fosse a condição para proporcionar estabilidade profissional e segurança em seus projetos de vida. Ao mesmo tempo, isso passa a ser bastante frágil, uma vez que a Educação Superior já não garante bons empregos e que o mundo do trabalho tem dificuldade de abrir portas para os mais jovens”. Segundo ele, somente no final do ano passado, “o desemprego juvenil bateu recorde, ultrapassando os 25%”.
Maurício Perondi | Foto: Arquivo pessoal
Maurício Perondi é graduado em Filosofia e mestre e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é coordenador do Observatório Juventudes da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os dados mais atuais sobre o juvenicídio e o suicídio de jovens no país? Em quais estados esses índices são mais elevados?
Maurício Perondi - Primeiramente gostaria de destacar o que é o juvenicídio, visto que é um termo relativamente novo e muitas pessoas ainda não o conhecem. Quem formulou a expressão foi o sociólogo mexicano José Manuel Valenzuela na obra intitulada “Sed de mal: feminicidio, jóvenes y exclusión social”. A partir da inspiração no conceito de feminicídio – crime de ódio baseado no gênero que resulta no assassinato de mulheres – o juvenicídio implica no assassinato sistemático de pessoas jovens. Isso reflete um fenômeno que tem impactado fortemente os diversos países latino-americanos. O Brasil é um dos países com um dos mais altos índices de morte de jovens. Os dados mais atuais são apontados pelo Mapa da Violência 2016, que é referente a índices contabilizados até 2014. Neste mapeamento é possível perceber que o crescimento de homicídios por arma de fogo na população de 15 a 29 anos de idade subiu 669,5% em duas décadas (WAISELFISZ, 2016). Os números totais são assustadores, pois cerca de 25 mil jovens de 15 a 29 anos foram mortos no Brasil em 2014. Isso é o equivalente a quase 70 jovens mortos por dia. O ápice do número de morte acontece por volta de 20 anos, onde se registram 67,4 mortes por 100 mil jovens. Os jovens representam um equivalente a 26% da população brasileira, no entanto equivalem a 58% do número total de homicídios por arma de fogo em 2014.
Regionalmente, o maior número de jovens mortos encontra-se na Região Nordeste. O estado de Alagoas apresenta a maior taxa de homicídios por armas de fogo: 56,1 vítimas por 100 mil habitantes, seguido por Ceará e Sergipe. Os estados com as menores taxas são Santa Catarina (7,5) e São Paulo (8,2). São Paulo e Rio de Janeiro foram estados que conseguiram reduzir significativamente os índices de homicídio juvenil nos últimos anos. Os números dos jovens mortos no Brasil são preocupantes. Nem os países em guerra apresentam tais índices. Assim como olhamos para o passado e nos perguntamos como foi possível a escravidão, o Holocausto e o genocídio dos povos indígenas, possivelmente as gerações futuras olharão para a nossa sociedade e se perguntarão como foi possível termos matado tantos jovens. Isso é tão drástico que várias campanhas e ações têm chamado este fenômeno de “extermínio da juventude” ou de “genocídio da juventude”.
IHU On-Line - Quais são as causas das mortes entre jovens tanto por conta do juvenicídio quanto por causa de suicídios? Qual é o perfil dos jovens assassinados?
Maurício Perondi - Quanto às causas das mortes de jovens, as edições anteriores do Mapa da Violência já haviam mapeado que as três principais são: homicídio, trânsito e suicídio. Entre os homicídios, a morte por arma de fogo é a mais evidente, principalmente atrelada aos elevados índices de violência urbana que temos presenciado no país. As mortes de trânsito constituem a segunda causa de maior incidência no país, principalmente atrelada ao abuso de álcool e da imprudência. O suicídio, que já se constituía como a terceira maior causa das mortes de jovens no Brasil, passou a ter um destaque e uma preocupação nos últimos tempos, devido a dois fenômenos: a série televisiva “Thirteen reasons why” e o jogo de desafios “Baleia Azul”. Estes eventos impulsionaram algo que já estava bastante presente em diversas realidades juvenis, que são os problemas psíquicos advindos de uma sociedade que tem dificuldade em acompanhar a formação e a formação dos jovens. Creio que as instituições sociais, sobretudo as famílias, os espaços educativos, o mundo do trabalho e as igrejas têm deixado a desejar nos quesitos ouvir, compreender e auxiliar os jovens. Penso que seria muito interessante que estas instituições tivessem pessoas e espaços preparados para ouvir o que os jovens estão vivendo e o que eles têm a dizer, uma espécie de “escutatória”, que pudesse compreendê-los e ajudá-los sem julgamentos morais e direcionamentos “adultocêntricos”.
Quanto ao perfil dos jovens assassinados, é muito evidente a cor/raça, gênero e a classe social dos atingidos. Os dados revelam que aproximadamente 77% dos jovens mortos são negros, que mais de 90% são do sexo masculino e de classes populares. Quanto aos jovens negros, isso é tão impactante que inclusive se fala do “genocídio da juventude negra”. Alguns programas e políticas públicas foram desenvolvidos no Brasil nos últimos 10 anos, como é o caso do Programa Juventude Viva, que buscava formas de reduzir estes índices. Isso trouxe vários resultados positivos, no entanto, lamentavelmente as últimas políticas governamentais têm reduzido o fomento a estas iniciativas. Isso, no entanto, varia de acordo com cada região e segmento. Por exemplo, o fato de a maior parte das mortes serem do sexo masculino não deve nos levar a descuidar do sexo feminino, visto que a violência contra a mulher aumentou 44,7% em 2015.
IHU On-Line - De modo geral, qual é a situação dos jovens que vivem nas periferias?
Maurício Perondi - A situação dos jovens das periferias constitui atualmente um dos segmentos de maior vulnerabilidade social, principalmente pela situação de pobreza que atinge grande parte dos jovens. De acordo com a Secretaria Nacional de Juventude (2013), 28% dos jovens brasileiros vivem com renda familiar per capita inferior a 290,00 reais, sendo a região Nordeste aquela com a maior concentração destes índices. Deste total, a juventude negra é a mais afetada pela pobreza, pois 61% apresenta rendimento familiar per capita abaixo de 290,00 reais. Tenhamos em mente que é a média familiar, e não pessoal. Agora imaginemos como é a vida das famílias destes jovens que vivem em tal situação. Os jovens de periferia também estão mais distantes das possibilidades de acesso à educação e às políticas públicas. Por exemplo, o Estatuto da Juventude prevê uma série de direitos aos jovens, tais como acesso à cultura, ao lazer, ao esporte, à comunicação, a experiências no mundo do trabalho etc. No entanto, estas não se materializam em programas e ações concretas que cheguem até os jovens. Ainda assim, com todas as dificuldades existentes, os jovens das periferias têm se reinventado e procurado superar as dificuldades em que estão imersos. Neste sentido eles têm desafiado as suas situações particulares e criado estratégias colaborativas e em rede que têm proporcionado experiências alternativas às situações do tráfico e da violência. Principalmente na área da cultura, como é o caso do hip-hop, tem contribuído para oportunizar aos jovens possibilidades diferentes em seus projetos de construção de si e de relações com a sociedade.
IHU On-Line - Muitos jovens hoje comentam sobre as dificuldades de adquirirem bens materiais, como casa, carros, por exemplo, ao compararem sua realidade com as situações em que seus pais viviam. Que diferenças e aproximações percebe entre a atual geração de jovens com gerações anteriores?
Maurício Perondi - Eu acho que se vendeu uma ilusão aos jovens de todas as classes sociais nos últimos anos, visto que o Brasil teve um crescimento econômico nunca visto, que, no entanto, não reverteu em políticas e oportunidades sólidas para as juventudes. Uma parcela de jovens, sobretudo de classe média, experimentou nos últimos quinze anos uma elevação do status social que os seus pais não haviam vivido ou que haviam sofrido muito para conseguir. Contudo, isso parece ter criado uma espécie de ilusão de facilidades, uma vez que “se vende” uma imagem de desenvolvimento e de projeto de futuro que nem sempre tem condições reais de se concretizar. Um dos exemplos mais claros foi o aumento dos níveis de educação, sobretudo superior, colocado como se fosse a condição para proporcionar estabilidade profissional e segurança em seus projetos de vida. Ao mesmo tempo, isso passa a ser bastante frágil, uma vez que a Educação Superior já não garante bons empregos e que o mundo do trabalho tem dificuldade de abrir portas para os mais jovens. Isso fica evidente em dois aspectos importantes: no mundo do trabalho, no final de 2016, o desemprego juvenil bateu recorde, ultrapassando os 25%; já no acesso à Educação Superior, temos visto nos dois últimos anos um corte muito grande nos investimentos, no número de vagas oferecidas e na precarização das políticas estudantis para garantir a permanência na universidade.
Ainda falando das diferenças geracionais, acho que os jovens estão proporcionalmente mais diferentes das gerações adultas deste tempo do que se compararmos as gerações de jovens das décadas passadas com os adultos daquelas épocas. Isso tem a ver com a aceleração das mudanças sociais que temos vivido. Tudo muda muito rapidamente e os jovens mudam ainda mais rápido do que os adultos. Existem tendências que afirmam que a cada seis anos temos uma nova geração. Isso tem impactos na constituição das identidades juvenis, que não são nem piores nem melhores, são diferentes. Contudo, muitas vezes isso não é bem compreendido pelas gerações adultas. Eu diria que falta compreensão sobre o que significa ser jovem hoje.
IHU On-Line - No início deste ano o Brasil assistiu a uma série de conflitos nos presídios do Norte e Nordeste do país e muitos especialistas na área de segurança afirmam que as disputas entre facções já ocorrem nas ruas, além dos presídios. É possível estimar que percentual da juventude hoje está envolvida com o tráfico em geral, seja o tráfico de drogas ou tráfico de cargas, por exemplo? Quais são os fatores que fazem com que os jovens ingressem no tráfico?
Maurício Perondi - Os conflitos acontecidos nos presídios têm um forte impacto na realidade juvenil. Se tomamos apenas o aspecto numérico, embora apenas 11,16% dos brasileiros tenham entre 18 e 24 anos, este grupo corresponde a quase um terço da população das prisões, sendo que as juventudes, de 18 até 29 anos, correspondem a 55,07% da população carcerária (INFOPEN, 2014). Ou seja, além de a juventude ser o segmento que mais morre no Brasil, é também o que está mais encarcerado. É difícil estimar o número exato de jovens que está envolvido com o tráfico de drogas, no entanto é fácil constatar que é o segmento mais atingido, pois são justamente os jovens, inclusive os menores de idade que mais sofrem as consequências violentas deste meio. Quem é preso e morto é o jovem que está na ponta, não aqueles que produzem e que lucram com o tráfico. Deste modo, podemos dizer que o jovem é mais vítima deste sistema do que produtor desta realidade.
Entre os principais fatores que motivam a entrada de jovens no tráfico, pode-se citar a baixa escolaridade e desencanto com a educação como forma de elevação do nível de vida; a falta de políticas públicas, sobretudo em áreas como a cultura, o lazer e o esporte; a baixa renda familiar, fazendo com que o jovem não tenha possibilidade de ter os bens de consumo pelos quais ele é interpelado cotidianamente através de uma publicidade que exacerba na ênfase consumista; a falta de oportunidades de trabalho, os subempregos e os trabalhos precarizados.
IHU On-Line - Nos últimos anos, muitos avaliaram como positivo o ingresso de mais jovens nas universidades, por conta de programas sociais como Prouni e Fies. Outros, por sua vez, criticam tais políticas por terem sido assistenciais. Retrospectivamente, considerando a atual situação escolar e de empregabilidade dos jovens, como o senhor avalia tais políticas? O que elas significaram ou que implicações tiveram entre os jovens?
Maurício Perondi - Já existem pesquisas de monitoramento que apontam o quanto positivo foram as políticas de ingresso de jovens de classes populares e negros nas universidades. Entre os tantos avanços proporcionados por tais políticas, quero destacar dois: o primeiro tem a ver com a melhoria das condições de vida dos próprios estudantes de classes populares, visto que com a elevação da escolaridade tende a aumentar a qualidade dos trabalhos e a média salarial. Tem ainda um fator cultural que foi muito significativo com relação às famílias desses jovens, pois muitos deles foram os primeiros da família a irem para a universidade. Tive uma aluna de graduação que uma vez me disse “antes de mim nunca ninguém da minha família tinha ido para universidade, nem mesmo os primos que teriam condição para pagar, pois se considerava que a universidade não era um lugar para negros”. Este relato demonstra uma mudança que não é apenas econômica, mas também cultural, pois ela muda o modo de pensar e de se estar na sociedade. O segundo aspecto que destaco é a mudança que aconteceu dentro dos espaços acadêmicos, pois podemos dizer junto com os movimentos estudantis que “a universidade se pintou de povo”. Com a presença de estudantes com diferentes identidades, as universidades se tornaram espaços mais abertos, mais plurais, pois ela passou a conviver com características diferentes trazidas pelos estudantes, enriquecendo os espaços acadêmicos. Isso também fez com que a universidade olhasse mais para a sociedade como um todo, com os seus problemas, os seus desafios, os seus diferentes sujeitos. Por fim, muitos jovens que viam a universidade como algo distante da sua realidade, passaram a colocá-la como um horizonte de possibilidades.
IHU On-Line - Qual é a expectativa de vida dos jovens no Brasil, de modo geral? O que os jovens com os quais o senhor conversa expressam sobre a expectativa de vida no Brasil?
Maurício Perondi - A pesquisa Agenda Jovem Brasil 2013, realizada pela Secretaria Nacional de Juventude, fez a seguinte pergunta para os jovens: “Você acha que a sua vida pessoal, o seu bairro, o Brasil e o mundo estarão melhor daqui a cinco anos?”. As respostas mostraram que sobre a vida pessoal 94% acredita que sim; quanto ao bairro, o índice foi de 53%; para o Brasil foi 44%; e para o mundo caiu para 36%. Isso demonstra que quanto mais próximo de si, mais os jovens acreditam que a situação vai melhorar. A mesma pesquisa perguntou se os jovens podem mudar o mundo e 91% respondeu que sim. Isso demonstra uma expectativa positiva com relação às possibilidades de mudança.
Mesmo com este otimismo, as juventudes dos anos 2000 são impactadas pelo medo (isso não significa que elas sejam medrosas), pois as condições sociais cotidianas provocam muitos receios quanto a sua vida no presente e a sua perspectiva de futuro. A socióloga Regina Novaes aponta três medos que caracterizam esta geração: o medo de morrer (por causa da violência), o medo de sobrar (por causa da falta de trabalho) e o medo de estar desconectado (pelas dificuldades de acesso às tecnologias e redes sociais). Eu acrescentaria ainda um quarto medo que é o de ser discriminado. É incrível como, em pleno século XXI, as pessoas ainda são discriminadas por diferenças em aspectos como: posicionamento político, filiação religiosa, identidade de gênero, local de moradia, raça/cor, status econômico etc.
Creio que, neste sentido, cabe às instituições sociais e às pessoas adultas como um todo pensarem a respeito das diversidades das juventudes e buscarem compreender as mudanças que têm ocorrido no âmbito das realidades juvenis. Felizmente já existem cursos, pesquisas, materiais de formação que nos auxiliam a ampliar o olhar sobre as diferentes maneiras e condições de ser jovem hoje no Brasil.
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O juvenicídio, a ilusão das facilidades e o falso projeto de futuro. Entrevista especial com Maurício Perondi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU