17 Abril 2017
"Por esquerda, ou na falta desta, o projeto popular ficou relegado ao apelo eleitoral e não ao trabalho cotidiano de organizar a luta coletiva, dar significado às conquistas da maioria e não permitir que o aumento da chamada “classe C” viesse junto a uma noção de individualismo empreendedor", escreve Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais.
Eis o artigo.
É lugar comum ouvir em análises e expressões vindas de todas as camadas da esquerda e da centro-esquerda, algo como “quando este povo vai se levantar indignado”? Além do sentimento de revolta e frustração – totalmente compartilhado por este que escreve – a afirmação também traz elementos de certa condescendência com o governo deposto e algo da perigosa inocência politica.
Neste breve texto, tento demonstrar como a categoria ideologia foi desprezada e, por óbvia consequência, a relação com o oligopólio da mídia – em especial com a empresa líder – foi reificada.
Se levarmos em consideração os 13 anos de governo petista na Presidência, nos damos conta de que faltaram elementos fundamentais para um projeto de poder prolongado. Quando me refiro a projeção de uma vontade política, não significa perpetuar no Poder Executivo a este ou aquele partido, mas sim a construir condições de conquistas permanentes e não retorno. Não retornar para situações anteriores implica ir além de melhorias materiais – embora estas sejam fundamentais – mas também dar um significado ideológico para a base da sociedade.
A pesquisa aplicada pela Fundação Perseu Abramo (FPA, para a pesquisa ver aqui), vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT), justo partido de governo que foi deposto traz elementos para reflexão. Nesta pesquisa qualitativa realizada na periferia de São Paulo capital, os resultados são a difusão de um liberalismo popular crescente e a perda de reservas eleitorais para a legenda que financiou o trabalho. Para além das constatações do voto mutável, a carga de valores e comportamento, reforçada após treze anos de mandato “popular” em Brasília, traz elementos de reflexão.
Considerando quem convive com estas camadas sociais, ou de forma mais apropriada, com a pobreza e a exclusão espacial nas regiões metropolitanas, nada disso se trata de “novidade”. Talvez o elemento novo seja transparecer o debate e trazê-lo à tona. Logo, aponto aqui a necessidade mais urgente de uma primeira inflexão, para além de uma reflexão. Ou seja, abordo algo que não passa apenas por uma exterioridade (já antes abordada nesta publicação), mas pela ausência de um protagonismo político a partir de alguma forma de ideologia de câmbio.
Entendo que se pudermos acumular lições históricas da política brasileira trata-se de não repetir erros, e ao mesmo tempo, reeditar exemplos positivos, revigorando-os. Grandes campanhas demarcam os momentos cruciais. Através de atividades de comoção coletiva, podemos mobilizar setores de uma sociedade, ao mesmo tempo, correndo o risco (no meu ver um risco positivo).
Uma campanha fundamental e que motivou ao golpe político de 1954 – consumado com o suicídio de Vargas em 24 de agosto daquele ano – foi a do “O Petróleo é nosso”. Na ocasião, o país não tinha uma empresa petrolífera nacional e o nacionalismo substituiu o classismo como motivador de anseios populares. Quando vivemos uma campanha desta envergadura, ainda que por alguns meses, a sociedade se polariza, projetando um destino coletivo. Quando as campanhas populares conseguem somar a ideia de nação com a do interesse da maioria, das classes subalternas, do povo, então é uma ocasião para mobilizar corações e mentes. Assim, em situações limite, regionalizadas – como nas greves do ABC de 1978, 1979 e 1980 – ou nacionais, está dado um momento para acumular forças duradouras.
A conta é de chegada e uma oportunidade de ouro passou. Não por desatenção, mas sim pelas escolhas. Ao reconhecer em frações irreconciliáveis do inimigo interno um “possível parceiro”, o governo Lula, ainda em seu primeiro mandato e passando o susto do Mensalão, entregou uma fatia da revolução tecno-científica para a Rede Globo. Afirmo que o padrão tecnológico de transmissão de dados seria o equivalente ao período da “modernização”. No embate pelo padrão do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T) teríamos uma chance concreta de entrar com os dois pés no século XXI, aí sim arriscando desenvolvimento, para além do reforço dos fatores de troca que já tínhamos em 2002.
O tema é espinhoso, mas vale observar a posição do governo Lula através do então ministro Hélio Costa (ele mesmo, senador pelo PMDB e ex-correspondente da Voice of America no Brasil em pleno AI-5, ver aqui). No mesmo sentido, ressaltar a pujança dos consórcios brasileiros de pesquisa que conseguiram chegar à condição de protótipo do mesmo Sistema (ver aqui) e a dimensão tétrica do Decreto de 2006 (ver aqui). Afirmo o compromisso de sanar as dúvidas de todo este processo no debate posterior a publicação ou então em comunicação direta; para este artigo, trago o tema do SBTVD-T apenas para demonstrar como um recurso de mobilização poderia ter sido utilizado, amarrando desde a base da comunicação popular do século XXI - como nas rádios comunitárias, pontos de cultura e todo um universo de ativismo periférico – com um projeto nacional, popular (pelos multicanais) e soberano.
Operar uma campanha desta envergadura teria acossado a direita e dito a que vinha um projeto nacional e popular que ultrapassasse os arranjos pré-determinados já na Carta ao Povo Brasileiro, um pacto que o andar de cima fez a contragosto e na oportunidade devida, virou a mesa e de lado. Reforçando o argumento, para além do nacionalismo policlassista da Campanha O Petróleo é Nosso, a defesa do SBTVD-T seria nacional e classista. Logo, mais incisiva, operando também como um autêntico divisor de águas no ambiente doméstico.
Ao longo dos treze anos do lulismo como ideologia hegemônica, não tivemos um momento sequer de tensão, de acumulação de forças, com exceção da rebelião popular de 2013. Na ocasião, foi colocado nas ruas um desafio para ir além do pacto conservador com distribuição de renda tornado público com a Carta ao Povo Brasileiro em 2002. Outros momentos de tensão interna elevada foram os segundos turnos das eleições de 2002, 2006, 2010 e principalmente 2014. Na sequência, a campanha permanente de desestabilização bateu por direita no segundo governo de Dilma Rousseff. Por esquerda, ou na falta desta, o projeto popular ficou relegado ao apelo eleitoral e não ao trabalho cotidiano de organizar a luta coletiva, dar significado às conquistas da maioria e não permitir que o aumento da chamada “classe C” viesse junto a uma noção de individualismo empreendedor.
O cotidiano da maioria, e em especial da pobreza territorializada – nas chamadas periferias – é atravessado por forças importantes: igrejas neopentecostais, exposição midiática da TV aberta, currais eleitorais e clientelismo político, compadrio e cumplicidade, além de uma constante luta pela sobrevivência, incluindo iniciativas formais e informais de micro-empreendedorismo. O avanço ideológico de um neoliberalismo difuso é proporcional à ausência de um projeto de Poder do Povo, e obviamente, pela pouca expressão das esquerdas no universo simbólico do dia a dia.
Ao subestimar a categoria ideologia, e em especial ao não ousar um confronto mais direto com os barões das empresas de mídia, o lulismo entregou a mentalidade política da maioria para os abutres de sempre. Reverter essa derrota é tarefa de longo prazo, embora o tempo corra contra os interesses da maioria.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ausência de ideologia de câmbio e a base para a guinada à direita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU