31 Janeiro 2017
Considerado uma das maiores autoridades em estudos de historiografia soviética no mundo, Richard Pipes (Polônia, 1923), professor emérito da Universidade de Harvard, é autor de mais de 25 livros de história, entre os quais se destaca A Revolução Russa, monumental estudo de mil páginas, publicado originalmente em 1990, considerado uma das análises mais rigorosas e exaustivas já escritas sobre a Revolução Russa, cujo centenário se comemora em 2017. Apesar de seu inegável brilho, o livro não foi recebido de maneira unanimemente favorável, dado o radicalismo com que Pipes condena tudo o que guarda relação com o fenômeno histórico que estuda.
A entrevista é feita em sua casa de Harvard, uma mansão de aspecto professoral situada em uma rua calma, em um dia chuvoso. Pipes, de 93 anos, é um homem lúcido e afável, de conversa tranquila. No hall de entrada de sua casa acumulam-se caixas de papéis manuscritos, as notas de uma vida inteira dedicada à pesquisa, que logo serão transferidos para a biblioteca de Harvard com a ideia de reuni-los em um arquivo que levará o nome do prestigioso professor.
A entrevista é de Eduardo Lago e publicada por El País, 27-01-2017. A tradução é de André Langer.
O ano de 2017 marca o centenário da Revolução Russa, um dos acontecimentos chaves do século XX. Qual é o legado de um fenômeno de semelhante envergadura histórica?
Milhões de cadáveres. A Revolução Russa foi um dos acontecimentos mais trágicos do século XX. Não houve absolutamente nada de positivo nem de grandioso naquele acontecimento. Entre outras coisas, arrastou a humanidade para a Segunda Guerra Mundial. Os sovietes estabeleceram um regime de terror sem precedentes. Eles não tiveram nenhum escrúpulo na hora de estabelecer uma aliança com os nazistas na Segunda Guerra Mundial. Hitler não teria se atrevido a iniciar as hostilidades se a Rússia não tivesse estado ao seu lado.
Como o senhor se fez historiador?
Interessei-me pela história desde a infância. Meus pais, judeus poloneses, abandonaram o país fugindo dos nazistas. Uma das minhas últimas lembranças é ver Hitler da sacada de casa, desfilando triunfalmente pelas ruas de Varsóvia, dias depois do início da ocupação da Polônia. Quando chegamos aos Estados Unidos, eu me matriculei em um college de Ohio. Durante a guerra me destinaram a uma unidade especial de estudos e aprendi o russo em três meses. Ingressei na Harvard em 1946, e ali me matriculei no curso de História, especializando-me em estudos soviéticos, que na época era um campo muito aberto no qual faltavam especialistas. A história explica como chegamos ao lugar em que nos encontramos. Se se quer entender os Estados Unidos, compreender a textura da mentalidade do país, é absolutamente imprescindível estudar sua história. A história nos explica o meio em que nos movemos e vivemos.
O curso da Revolução Russa foi determinado pelas formidáveis figuras de Lênin e Stalin, que você estuda em profundidade. Poderia compará-las?
Stalin tomou Lênin como modelo, mas suas personalidades eram totalmente diferentes. Lênin inicia a revolução e Stalin termina com ela. Os dois foram responsáveis pela morte de muitos seres humanos, embora a balança se incline pavorosamente para o lado de Stalin no que se refere ao número de vítimas. Basicamente, Lênin era indiferente à vida humana; se tinha que dispor da morte de alguém, o fazia sem problemas, mas Stalin desfrutava decretando o extermínio de milhões de pessoas. Ele tinha instintos sádicos.
Lênin era um idealista, fanático em grau superlativo. Ele acreditava cegamente que a abolição do capitalismo e o advento do socialismo estenderiam a revolução a todo o mundo. Sua morte tem algo de trágico: morreu decepcionado, perfeitamente consciente de que o sonho da revolução tinha fracassado. Stalin, no entanto, chegou a ver como a revolução se estendia sobre grande parte da Europa. Muitos lugares do mundo abraçaram o comunismo estando ele no poder, mas o regime que ele criou traiu o espírito da revolução. Uma diferença importante com respeito a Lênin era que possuía um ego desaforado.
Quando compara Stalin com Hitler, parece que as diferenças se dissipam, mesmo que suas ideologias fossem antagônicas.
Os dois foram responsáveis diretos pela morte de milhões de pessoas, que perpetraram em nome de suas ideologias, que se sustentavam sobre premissas radicalmente diferentes. O nazismo se apoiava no sangue, e o comunismo, na fé, mas no tocante à perseguição que cada um dos dois regimes levou a cabo não houve diferenças. Ambos construíram campos de extermínio. Stalin também perseguiu pessoas em virtude de sua origem nacional. E é um fato que acabaram colaborando. No balanço final, os dois regimes têm muito em comum.
Como explica o fato de que Alexandr Solzhenitsyn, cuja repulsa ao regime soviético é comparável à sua, estivesse em total desacordo com suas teses sobre a Revolução Russa?
A raiz da nossa discrepância reside em que para ele a Revolução Russa foi uma violação da história, um atentado contra o espírito russo, ao passo que na minha opinião, a Revolução Russa deitava suas raízes no passado do país; ela está profundamente imbricada com sua história.
Você defende que na história do povo russo há uma longa tradição de admiração pelos líderes fortes, autocratas.
Os russos não suportam a fraqueza. Eles gostam de líderes fortes. Há uma razão histórica por trás de tudo isso: o Estado russo nunca foi suficientemente coerente, e a única maneira de dar-lhe coerência é mediante a intervenção de um líder forte. Todos os heróis da história russa são figuras fortes: Ivã o Terrível, Pedro o Grande, Alexandre III, Stalin e agora Putin, um autocrata que conta com a aprovação de 85% da população.
Em que consistiu o seu trabalho como assessor de Ronald Reagan?
Ele me nomeou membro do Conselho Nacional de Segurança para questões relacionadas com a União Soviética e a Europa Oriental.
O que era a Equipe B, criada por você?
Uma equipe de trabalho formada por especialistas que realizavam trabalhos de inteligência para a CIA em relação ao futuro da União Soviética. Ela complementava o trabalho da Equipe A, que trabalhava diretamente com a CIA.
O senhor acredita que Reagan acelerou a queda do império soviético?
Sim, embora o regime soviético tenha caído por razões internas, não por influência externa de nenhum tipo. Reagan não provocou o colapso; o colapso veio de dentro.
Reagan foi seu presidente favorito. Qual é a sua opinião sobre Obama?
É um homem fraco, e sua política externa, muito desacertada.
O que pensa de Donald Trump?
Tenho uma opinião muito baixa sobre ele. Gostaria que me decepcionasse e fosse melhor do que acredito que é; ele tem um ego desaforado, que me recorda muito certos ditadores europeus. É completamente diferente de todos os presidentes americanos que eu já tenha estudado. Sou republicano, mas nas últimas eleições votei democrata. Agora mesmo os Estados Unidos atravessam uma gravíssima crise, da qual a eleição de Trump é um sintoma inequívoco. Há cerca de 20 ou 30 anos, isso não teria acontecido. Não consigo compreender como as pessoas votaram nele e não sei o que esperam dele. Ser presidente dos Estados Unidos requer certas qualidades que Trump não tem.
O que vai acontecer?
Eles vão destituí-lo, é capaz de violar a Constituição.
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“Não houve nada de positivo nem de grandioso na Revolução Russa”. Entrevista com Richard Pipes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU