24 Janeiro 2017
A crise habitacional no Brasil é ao mesmo tempo irônica e trágica, define a urbanista Erminia Maricato. Isso porque o avançado arcabouço legal existente no País voltado para as questões urbanas é tão reconhecido e prestigiado no mundo quanto ignorado em território nacional.
A entrevista é de Manuela Azenha, publicada por Revista Brasileiros, 18-01-2017.
“Toda essa legislação se aplica a uma parte da cidade, que é a visível, a da elite. Há 2 milhões de pessoas nas áreas de proteção dos mananciais, só na metrópole paulistana, morando ilegalmente e pondo em risco nossas reservas de água. Como o Judiciário, o Executivo e o Legislativo trabalham com essa realidade? Fechando os olhos”, afirma a especialista.
Maricato é professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da ex-prefeita de São Paulo Luiza Erundina e Secretária Executiva do Ministério das Cidades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Não há apetite das prefeituras para aplicar a legislação porque o poder local, as câmaras municipais e os prefeitos são muito comprometidos com o capital imobiliário.”
Eis a entrevista.
Qual o tamanho da crise habitacional no Brasil?
A nossa situação é irônica e trágica ao mesmo tempo. Temos um arcabouço legal no Brasil dos mais avançados no mundo se considerarmos a questão urbana. A partir da Constituição de 1988, nós tivemos uma série de leis que foram aprovadas, das quais uma das mais importantes é o Estatuto da Cidade, de 2001. Depois vêm a Lei do Fundo Nacional de Habitação do Interesse Social, de 2005, e a Lei de Consórcios Públicos, muito importante porque tem problemas que não estão dentro de apenas um município, são intermunicipais. Serve para resolver problema de bacia hidrográfica, questões ambientais, captação de água. Em 2007 tem a Lei Federal do Saneamento, que institui um novo marco regulatório. Depois temos a Lei da Mobilidade Urbana, que é um problema seríssimo no Brasil. E também tem a Lei dos Resíduos Sólidos.
Aparece mais recentemente o Estatuto da Metrópole, outra lei fundamental.
As nossas metrópoles são a fotografia do desgoverno. Em São Paulo, são 39 municípios. Mas, em geral, a mídia trabalha como se a metrópole fosse o que há entre os rios Tietê e Pinheiros. O resto não existe. Nessa área você tem 70% do emprego. Só que a metrópole é gigantesca, uma das maiores do mundo. Justamente por morar distante e mal, o tempo médio de viagem das pessoas na metrópole é de mais de 2 horas e 40 minutos. As pessoas não têm ideia do que é o trabalhador se deslocar nessa metrópole.
O mundo inteiro admira o arcabouço legal brasileiro. Nós tivemos honrarias na ONU por causa disso, já fui fazer consultoria em vários países do mundo. Mas no Brasil isso não se aplica. O Judiciário desconhece esse quadro. A produção da cidade é absolutamente atrasada, edifícios, ruas, infraestrutura. Temos raízes nessa produção da cidade que vem lá do país escravista, oligárquico e toda essa legislação se aplica a uma parte da cidade, que é a visível, a da elite. A Lei de Zoneamento, por exemplo.
Apesar disso tudo, temos 2 milhões de pessoas nas áreas de proteção dos mananciais, só na metrópole paulistana, morando ilegalmente. Como o Judiciário, o Executivo e o Legislativo trabalham com essa realidade? Fechando os olhos.
Por que fecham os olhos?
Eu já estive em governos duas vezes, na gestão da Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo, e depois na transição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para Lula, para criar o Ministério das Cidades. Você encontra barreiras na correlação de forças, de uma elite que não quer perder os privilégios, um mercado imobiliário altamente exclusivo, especulativo e restrito a uma minoria. Mas você tem também uma universidade, um Ministério Público e um Judiciário que trabalham com uma ficção, não com a cidade real. Quando você tenta aplicar a lei, há uma resistência na sociedade como um todo, na mídia, no mercado. Então você tem uma interpretação da realidade que é profundamente ideológica.
Se há uma ocupação de um prédio no centro da cidade, vazio há 10 anos, juntando barata e rato, de acordo com a Constituição, com o Estatuto da Cidade e com os Planos Diretores, esse prédio não cumpre a função social. Em volta dele tem asfalto, oferta de emprego, universidade, transporte, ele se beneficia de um investimento feito por todo mundo. Ele vai subindo de valor, mas fica lá vazio.
O Estatuto da Cidade regulamentou a função social. Dois municípios no Brasil aplicaram a função social da propriedade. Não lembro dos dados do último censo, mas há uns 20 anos, eram 400 mil imóveis vazios na cidade de São Paulo. Desses, grande parte fica na região mais central. Onde a cidade mais cresce? Nas áreas de proteção a mananciais ao sul e na franja da Cantareira ao norte. Ou seja, onde é inadequado a cidade crescer, ela está crescendo. Onde é adequado ela se adensar, você tem imóveis vazios esperando oportunidades de investimento.
A quem cabe aplicar a função social da propriedade?
De acordo com a Constituição brasileira, esse poder estaria nos municípios.
Houve algum avanço com relação a isso?
O Estatuto da Cidade determina que a propriedade privada tem de cumprir a função social. Mas quem vai dizer o que é isso? É um buraco na lei, mas é o Plano Diretor. Todo Plano Diretor no Brasil fala o que é isso.
Outra coisa é apontar as propriedades que não estão cumprindo a função social. Aí começamos a mexer no interesse dos proprietários. Fernando Haddad começou a mapear e informar os proprietários. O Estatuto da Cidade exige que os proprietários sejam informados porque dá a eles a oportunidade de ocupar os imóveis vazios. O imóvel que não cumprir a função social será submetido a três condições.
Primeiro, a urbanização e a ocupação compulsória. O proprietário terá tantos anos para botar isso na roda, lotear, fazer um empreendimento habitacional ou outro tipo de empreendimento. Aí, se não fizer, será submetido ao IPTU progressivo, será penalizado com o aumento do IPTU. Se a pessoa mesmo assim não fizer nada, ela pode ser desapropriada com título da dívida pública. Dois municípios do Brasil fizeram esse percurso. Não há apetite das prefeituras para aplicar a legislação porque o poder local, as câmaras municipais e os prefeitos são muito comprometidos com o capital imobiliário.
Tivemos um momento em que parecia que íamos a algum lugar, em meados dos anos 90. Era o começo do PT, a luta contra a ditadura, Brizola, o PT gerou uma série de prefeitos… O programa mais festejado desse ciclo virtuoso foi o orçamento participativo, democracia direta na discussão do orçamento. Se a gente tivesse continuado com isso, a gente tinha mudado o País! O assalto ao orçamento público, nos três níveis, é bárbaro. Por que a PEC 55 foi aprovada? Porque não conseguimos diminuir o assalto dos interesses financeiros em cima do orçamento federal.
Quando Lula entrou, a gente criou o Ministério das Cidades e houve um declínio da condição de vida urbana. A minha tese é a de que, com o Lula, voltou o investimento federal nas cidades. E na hora em que o dinheiro apareceu, os movimentos sociais perderam espaço. O dinheiro apareceu e os capitais tomaram comando sobre a cidade. Enquanto não tinha dinheiro, a gente tinha democracia urbana e experiências avançadas, como urbanização de favelas, os CEUs. Imagina o que significa pegar um edifício de alta qualidade e botar num lugar extremamente pobre, irregular, sem infraestrutura. Essas periferias ilegais são uma verdadeira fonte da violência, não têm lei.
Todo o orçamento foi feito drenado para algumas políticas orientadas pelo interesse de capitais. Isso foi muito notável nos megaeventos, nas obras urbanas do PAC 2. O PAC 1 ainda conservava uma virtuosidade desse ciclo que eu estou falando.
O Minha Casa Minha Vida desandou mesmo. Não que não seja importante você pegar um recurso e investir para a construção massiva de moradia. Mas essa produção, com exceção de 2% orçamento, foi orientada pelo mercado. E ela não enfrentou o que é o nó do problema habitacional, que é a função social da propriedade. O Minha Casa Minha Vida jogou o conjunto dos pobres para fora da cidade. A mesma coisa que a ditadura fazia. Então 2% do orçamento foi aplicado em um projeto chamado Minha Casa Minha Vida Entidades, com movimentos de moradia e assistência técnica de engenheiros, arquitetos, advogados e assistentes sociais. Chegaram a projetos magníficos.
A Dilma Rousseff tem uma cabeça muito desenvolvimentista. Esse pessoal dificilmente enxerga uma cidade. Os metrôs em construção no País, por exemplo. Todos eles seguem uma lógica ditada pelo mercado imobiliário. Quase todos vão para aeroportos. Tem mulher que deixa criança sozinha e passa 4 horas por dia nos transportes. Foi por aí que se traçou o desenho desses metrôs? Não. Foi pelos interesses do mercado imobiliário.
A cabeça dos desenvolvimentistas é assim: precisamos investir para o País crescer e criar emprego. É menos pior que o ultraliberalismo do governo Temer, porque pelo menos se investe. Mas eles não percebem que o desenho da linha que essa grande obra vai criar marca a cidade, as relações sociais na cidade, acrescenta renda e valorização às terras que ela está atravessando. Aqui em São Paulo conseguimos barrar uma obra absurda: a Operação Urbana Água Espraiada.
Na época do Kassab, o pessoal deitou e rolou. As empreiteiras inventaram obras, criaram. O túnel iniciou o projeto com 500 metros e terminou com 3 quilometros. O orçamento era 50% do orçamento de saúde. O túnel supostamente seria pago pela arrecadação da operação urbana, mas o pessoal tomou cuidado quando fez a lei: se não houvesse recursos suficientes, o túnel seria pago com recursos do município. O dinheiro para esse túnel ia sair da saúde, educação, manutenção urbana. É jogo pesado. E tem um detalhe: só passa automóvel pelo túnel, não podia passar transporte coletivo. Aí reunimos doutores e mestres da USP que ainda têm algum prestígio e fizemos um abaixo-assinado dizendo que era ilegal, porque a prioridade segundo nosso Plano Diretor é o transporte coletivo. Como gastar mais de um 1 bilhão de reais para fazer um túnel que não serve ao transporte coletivo? Barramos no início do governo Haddad. O Kassab deixou esse túnel licitado.
A principal questão para resolver a crise é aplicar a função social da propriedade?
Exato. Mas tem um problema, que é esclarecer o que é a função social da propriedade na lei. Tem juízes definindo a função social pró-interesse do proprietário privado. Não é função social, aí é individual. Mas eu não acredito mais em lei. Acho uma besteira definir as coisas em lei. Elas são aplicadas de acordo com as circunstâncias do Brasil.
E qual o caminho, então?
A luta social. Não estou falando de guerra, violência, mas de luta social. Por exemplo, para informar a sociedade a realidade das cidades. Por que você tem 2 milhões de pessoas em área de proteção a mananciais, pondo em risco a reserva de água que nós temos? Que ironia, veja. O Estado e a sociedade admitem que os pobres ocupem a área de proteção a mananciais. Os pobres não evaporam, se eles não ocuparem aquilo, precisam de outro lugar. Admite-se porque aquele lugar não interessa ao mercado. Aquela área é proibida de ser ocupada com densidade. Por ser proibida ao mercado, ela sobra para os pobres.
O que esperar do governo Temer com relação às políticas habitacionais?
Aí é barbárie, né. O FHC fez algumas políticas compensatórias, mas realmente não tinha investimento. Lula voltou a investir. Assumiu um pouco do welfare state, o Estado que faz políticas sociais, para crescimento, assumiu o desenvolvimentismo. Qual o principal erro do desenvolvimentismo, principalmente a partir da crise de 2008? Na cabeça da Dilma é pensar que não podemos aceitar a recessão. Lançou o Minha Casa Minha Vida, liberou desonerações para vários setores da indústria, como a de automóveis, e um programa fortíssimo de construção na área de habitação. Sem enfrentar o problema fundiário. Isso não existe para os desenvolvimentistas, não enxergam que quando você joga dinheiro na produção de moradia, você aumenta o preço da terra. As nossas cidades acabam aumentando o círculo da periferia por causa do aumento do preço da terra. Não enfrentou a questão imobiliária. O maior erro foi apostar muito na indústria automobilística. Durante o lulismo, de 2003 a 2012, as cidades dobraram o numero de automóveis. Onde os municípios mais gastam dinheiro? Na circulação de automóvel.
E quais mudanças devem vir com o governo Temer?
Agora não tem dinheiro para nada. E agora é privatização. Eu tenho uma certa idade, estudo as cidades desde 1971, acompanhei o desenvolvimentismo da ditadura, década de 70, o impacto do choque do petróleo e a queda do crescimento econômico na virada dos anos 80. Eu fazia trabalho de base com a Igreja Católica, vi o que foi a violência aumentar na periferia a um ponto que, depois de 8 anos, eu não trabalhava mais à noite. Comecei a ver o que é a mortandade de jovens na periferia. O que vamos ver daqui para frente, nas periferias das cidades, é esse ovo da serpente que está aí, que já está gerando serpente: o crime organizado cresce e domina as periferias. A violência, a falta de perspectiva, ela está chegando.
A gestão Haddad trouxe avanços na questão habitacional?
Durante a gestão Fernando Haddad houve avanços em várias áreas, significativos, inovadores. Na questão da mobilidade ele foi de uma coragem imensa. Na agroecologia urbana, segurança alimentar, agricultura urbana, e é um negócio no qual precisamos apostar, o único jeito de salvar os mananciais. Isso foi maravilhoso. Com a Habitação aconteceu o seguinte: durante três anos ficou uma indicação do Paulo Maluf na Secretaria. Era um professor da Poli, digno e honesto, mas não foi a política do ciclo virtuoso que eu apontei. Com a potencialidade dos movimentos sociais, fazer casas de boa qualidade, de construção, de arquitetura e baixo preço. Isso só aconteceu no último ano, quando entrou João Whitaker, da FAU-USP. Ele conhece muito do assunto e em um ano ele fez dois. Tudo o que era necessário de terra para novos empreendimentos foi desapropriado, alguns conjuntos iniciados, e outros estão em andamento. Se tivesse ficado quatro anos, teríamos outro resultado. Mas habitação é mobilidade também. Ninguém mora na casa, mora na cidade, algo que o Minha Casa Minha Vida ignorou.
E de João Dória, o que podemos esperar?
Eu acho que o Dória representa uma elite que não tem a menor ideia do que é a cidade de São Paulo, que vive numa ilha. E não é uma coisa muito escandalosa porque a mídia toda e organismos públicos trabalham com essa ilha da fantasia também. Temos uma abundância de leis detalhistas e uma ilegalidade abundante também. É muito dialético trabalhar com essas coisas. O código de obras e edificações diz como se ergue uma casa, a lei de parcelamento do solo, a lei de zoneamento diz como ocupar e com que uso, qual o afastamento lateral, frontal, de fundo, e nada disso vale para uma parte da cidade. Uma parte significativa. No município de São Paulo estamos falando de um quarto da população. A impressão que eu tenho é de que essa elite trabalha com uma ficção. E eu acho que vai depender da correlação de forças. Se as coisas estão calmas, você pode trabalhar com essa ficção. A gente passa quatro anos no faz de conta. Veste a fantasia de gari, pode vestir de outras coisas e a coisa não explode. Mas como vamos entrar num aprofundamento do desemprego, não vai ser fácil.
A senhora soube da prisão do Guilherme Boulos, do MTST, na reintegração de posse de uma ocupação em São Mateus?
Esse tipo de coisa vai se ampliar. Não tenha a menor dúvida, por causa do desemprego… Quando a Erundina assumiu, a gente estava vivendo uma super depressão e o povo ocupando onde podia. O povo não evapora, gente! O pessoal precisa morar em algum lugar. Aí vai para beira de córrego, Serra do Mar, desmata, área de proteção de mananciais. Isso não mexe com o interesse do mercado.
As reintegrações de posse ocorrem da maneira como deveriam?
Claro que não! Existe juiz com sensibilidade, mas é raro. Eu já falei isso em aula para magistrados. Por que o Judiciário desconhece a legislação urbanística? Um dia um pessoal me respondeu: nas faculdades de Direito, direito urbanístico não é obrigatório, é facultativo. A tendência, com o desemprego, é aumentarem as ocupações. Se for de fato para tirar todo mundo que está ilegal, eu desafio a tirarem 2 milhões de pessoas que moram nos mananciais, que não fere nenhum interesse privado. As leis se aplicam de acordo com as circunstâncias. O povo só ocupa quando o terreno não cumpre a função social da propriedade. O direito à moradia é absoluto na Constituição, o da propriedade não, é relativizado pela função social.
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“Direito à moradia é absoluto na Constituição, o à propriedade não”, diz Erminia Maricato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU