09 Janeiro 2017
Nem sempre aquilo que a Igreja oficial pensa coincide com o sentimento popular. Um exemplo claro dessa forma diferente de sentir é o Padre Cícero Romão Batista, o santo do povo nordestino brasileiro.
A entrevista é de Luis Miguel Modino, publicada por Religión Digital, 07 -01-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Quando o romeiro chega à Juazeiro do Norte, buscando o Padre Cícero, depara-se com uma figura profundamente unida ao Santuário de Nossa Senhora das Dores. Trata-se de Annette Dumoulin, nascida na Bélgica, que deixou sua terra natal para chegar à Juazeiro e acolher com amor e carinho os romeiros, que sempre serviram com dedicação e entrega total, seguindo um conselho recebido de seu pai, que lhe ensinou que a felicidade está em ajudar os outros, o que ao longo do tempo tornou-se sua filosofia de vida.
Sendo professora da Universidade Católica de Lovaina, a religiosa da Congregação de Nossa Senhora chegou ao Brasil em 1970 para estudar as Comunidades Eclesiais de Base na periferia de Recife, na diocese do Monsenhor Helder Câmara. Ali ela ouviu falar de Padre Cícero e buscou saber tudo o que estava envolvido com este personagem surpreendente.
Depois de um tempo de idas e vindas em Juazeiro, em 1976, ela deixa a docência em Lovaina e assumiu definitivamente a defesa do Padre Cícero e a acolhida aos romeiros, criando o Centro de Recepção para estes. Ao longo de quarenta anos, provida de um chapéu de palha, sua voz forte ressoou nas celebrações dos romeiros, não deixando de se assemelhar com a figura de um dos personagens mais populares do país, além de realizar um grande trabalho pastoral e vocacional, o que fez com que vários jovens na região buscassem fazer parte de sua congregação.
Nesta entrevista, a irmã Annette Dumoulin ajuda-nos a conhecer um pouco mais sobre a figura de quem se tornou uma das maiores referências da religiosidade popular brasileira, alguém que com o passar do tempo, e graças aos esforços do Papa Francisco, está prestes a ser reconhecido pela Igreja oficial, como aquilo que já é pelo povo mais pobre: um santo.
Eis a entrevista.
A senhora é uma das grandes conhecedoras da figura de Padre Cícero. O que aprendeu com a vida deste notável homem?
Aprendi muito, mas posso resumir apresentando algumas qualidades extraordinárias deste padre: sua escolha incondicional pela causa dos pobres, a fidelidade e a sua consciência e espírito de profunda misericórdia, de preocupação com o sofrimento alheio.
Outra virtude extraordinária é a sua grande confiança na possibilidade de conversão de qualquer pecador arrependido, sempre dando-lhe uma nova oportunidade e fazendo de Juazeiro um espaço de humanização e de esperança através do trabalho e da oração.
Sua capacidade como conselheiro também foi fantástica, pois ele não era teórico, mas procurou antes de tudo avaliar diversas propostas para soluções, deixando para as pessoas, entretanto, a liberdade de seguir ou não o conselho que ele dava.
De que forma o Padre Cícero contribui para a história do Brasil e da Igreja Católica?
Na história do Brasil, o Padre Cícero deu valor para a região Nordeste, reconhecendo a dignidade dos habitantes do "sertão" (região semi-árida do nordeste brasileiro com secas prolongadas e grandes bolsões de pobreza). Ele ensinou as pessoas a viver no semi-árido, possibilitou que o Nordestino vivesse em sua terra e não tivesse que migrar para o sul. Ele foi um ecologista e defensor da Mãe Terra um século antes de que essa problemática, que hoje é tão presente, fosse pensada.
Ele deu valor a uma "reforma agrária", contra os latifúndios daquela época, aconselhando os beatos, como José Lourenço, a experimentar outras formas de organização dos agricultores, vivendo com dignidade. Ele defendeu a hegemonia e a independência da Nação brasileira em relação às outras nações mais poderosas. Ele não tinha tendências racistas. Respeitava e valorizava as mulheres e defendia os seus direitos.
Em relação à Igreja Católica, que tanto o fez sofrer, ele não deixou de lado sua fidelidade, mas, seguindo o exemplo do Padre Ibiapina, ele nunca separou a "salvação da alma, do corpo e da dignidade humana". Apesar do movimento de "romanização", valorizou a religiosidade popular. Foi um exemplo de sacerdote, mesmo quando não pôde exercer o seu sacerdócio.
A Igreja o expulsou por muitos anos de sua sacristia, do altar e do confessionário. Por isso podemos dizer que ele foi obrigado a ser um sacerdote em saída. O Padre Cícero soube falar para as pessoas e ser ouvido, porque ele encarnava o Evangelho em palavras simples e informais. E acima de tudo, o seu exemplo de vida marcou profundamente a sua missão evangelizadora, especialmente a sua profunda caridade, a sua capacidade de acolher, compreender, e doar a si mesmo.
Qual é a importância do Padre Cícero para Juazeiro do Norte?
Meu Deus! Juazeiro do Norte deve tudo ao Padre Cícero, ainda que esteja esquecendo disso. O Padre Cícero além de acolher os romeiros e convidá-los a sempre visitar o "Santo Juazeiro da Mãe das Dores", foi um visionário em relação ao desenvolvimento deste lugar que era insignificante quando chamado de Tabuleiro Grande.
O Padre Cícero, buscando dar aos romeiros trabalho e meios de sobrevivência, tinha uma visão moderna do desenvolvimento do comércio, pois alguns iam buscar ouro e diversos materiais na Amazônia, outros trabalhavam como artesãos em Juazeiro e outros iam até o Sul, e inclusive para fora das fronteiras, vender artesanatos de Juazeiro.
O Padre Cícero foi um conselheiro a quem vinham pedir conselhos profissionais. Primeiro ele buscava descobrir as habilidades e gostos da pessoa interessada para em seguida, orientá-la em tal profissão. Ele amou e cuidou de Juazeiro como um pai cuida de seu filho.
Os romeiros são figuras importantes na vida de Juazeiro do Norte, o que eles representam para a cidade?
Os romeiros são a principal fonte de renda do comércio de Juazeiro. Infelizmente, muitos habitantes de Juazeiro estão apenas olhando pelo lado do interesse financeiro. Mas o romeiro significa muito mais para a cidade, pois é ele quem consagra esta terra conhecida como a "Jerusalém dos pobres". A dimensão mística e religiosa é o ar que se respira nesta cidade da Mãe das Dores.
Somente aqueles que têm olhos para enxergar o mistério e o sagrado podem descobrir essa dimensão que faz de Juazeiro uma cidade única no mundo. Desgraçadamente, quem não percebe essa dimensão mais profunda quer transformar Juazeiro em um centro turístico com atrações que querem distrair o romeiro de sua verdadeira vocação. Ele quer viver e se aprofundar em uma experiência mística e religiosa, enquanto o turista quer, antes de mais nada, ver e se distrair. Não tenho nada contra o turismo em si, mas é fundamental não misturar experiências. Como o turismo dá mais dinheiro, vejo que ele invade o espaço místico como um trator.
Como pode-se explicar que, ao longo de tantos anos, os romeiros vieram em busca de alguém que morreu em confronto com a Igreja Católica?
Mas o padre Cícero não morreu para o romeiro. E ele não confrontou a Igreja Católica, mas foi uma vítima dela. Como afirmou o Monsenhor Delgado quando era arcebispo de Fortaleza, o Padre Cícero foi um "mártir da disciplina", mas manteve-se fiel ao seu povo. Assim como os pobres, especialmente o romeiro nordestino também é vítima de uma sociedade injusta, pois ele ficou ao lado de seu "Padim" e padeceu com ele, identificando-se com ele.
Muda alguma coisa na vida dos romeiros o fato de que o Padre Cícero tenha se reconciliado com a Igreja Católica?
Me perdoe, mas a pergunta está mal feita. Não foi o Padre Cícero quem se reconciliou com a Igreja. Foi a Igreja quem se reconciliou com ele. O Padre Cícero havia dito, em vida: "Não se preocupem em defender-me, meus amigos, porque um dia será a própria Igreja que me defenderá". Para o romeiro, a reconciliação é uma prova a mais de que o Padrinho Cícero tinha razão. É claro que o romeiro está feliz, especialmente vindo do Papa Francisco, um latino-americano.
Mas o Padre Cícero já foi canonizado nas mentes e nos corações dos romeiros. Com paciência, ele espera que um dia a "Igreja de Roma" descubra o que ele já sabe há muitos anos.
Para muitas pessoas o Padre Cícero já é um santo. Algum dia ele será canonizado pela Igreja Católica? O que está faltando para que isso aconteça?
Quando o Bispo, Dom Fernando Panico, agradeceu ao Papa Francisco pela carta de reconciliação, escrita por seu Secretário de Estado, o Cardeal Parolin, ele escutou do Papa a seguinte promessa: "Padre Cícero? Sim, quero fazer mais a seu favor".
O que está faltando é a entrada do processo em nome do padre Cícero, feita pelo bispo de Crato, para que seja reconhecido como servo de Deus. Depois, o dinheiro para que seja realizada a beatificação e canonização. E os milagres e provas? Não vão faltar, tenho certeza e sou testemunha disso.
Falta também a conversão de uma parte do clero da diocese de Crato, que continua se opondo a qualquer reconhecimento das virtudes do "Padim Ciço". O tempo e a morte podem ajudar.
Padre Cícero sempre teve inimigos. Ele ainda tem? Quem são esses inimigos?
Sim, ele ainda tem, dentro da diocese de Crato, como disse o Cardeal João Braz de Aviz, quando veio, em nome do Papa Francisco, para participar das comemorações do Centenário da Diocese de Crato.
Quando perguntei por que o Padre Cícero ainda não havia sido reabilitado pela Igreja, ele olhou para o Monsenhor Fernando e perguntou: posso dizer a verdade? Com a resposta afirmativa do bispo, o cardeal, frente a mais de duzentos religiosos da Diocese, disse claramente: "o problema não está mais em Roma, mas na Diocese de Crato, onde nem todos os padres aceitam essa reabilitação", e acrescentou, "há também alguns bispos do Ceará que não são favoráveis. Agora, bem, não me peçam para dizer nomes... busquem e encontrarão".
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“O Padre Cícero já foi canonizado nas mentes e nos corações dos romeiros”. Entrevista com Annette Dumoulin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU