19 Janeiro 2016
"Resta saber se a fé visceral e insubmissa de seus verdadeiros devotos se deixará cooptar pela assepsia de um perdão oficial" escreve Lira Neto, jornalista e autor de Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão (Companhia das Letras), que também escreveu a biografia de Getúlio Vargas, em artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 20-12-2015.
Eis o artigo.
A cena não poderia ser mais significativa: no último domingo, 13 de dezembro, uma pintura a óleo retratando o padre Cícero Romão Batista, em moldura dourada, adentrou a catedral de Nossa Senhora da Penha, na cidade cearense do Crato. A imagem do sacerdote, punido como rebelde em 1898 pelo Santo Ofício, foi conduzida até próximo ao altar principal, por um grupo de seis sacerdotes católicos paramentados.
No púlpito, ao microfone, falando para um templo lotado, o bispo D. Fernando Panico – italiano designado pelo Vaticano com a missão expressa de pavimentar o caminho para a reabilitação de Padre Cícero – observou: “Ele entrará como romeiro; seu lugar não será ainda o altar, mas ele ficará no meio do povo, invocando e cantando conosco a misericórdia do Pai”.
Ouviu-se o clamor dos aplausos. Muitos ali presentes, de olhos marejados, esticaram o braço para tocar a imagem ou, ajoelhados, fizeram o sinal da cruz. Enquanto isso, fogos de artifício estouraram lá fora. “Viva o Padim Ciço!”, exclamou o bispo. “Viva!”, respondeu o coro de centenas de vozes.
Para os cerca de 2,5 milhões de romeiros que todos os anos acorrem à cidade de Juazeiro do Norte – a chamada Meca Nordestina –, o episódio representa a correção de uma injustiça histórica. Até então, a imagem de Padre Cícero estava banida dos templos católicos.
Acusado de professar falsos milagres, classificado como um embusteiro incentivador de fanatismos, Cícero foi alvo de um inquérito eclesiástico que o levou a se defender pessoalmente perante o tribunal do Santo Ofício, em Roma. Confrontado pelos inquisidores, protestou inocência. Foi, porém, condenado.
Ficou proibido de rezar missas e de ministrar sacramentos. Viu-se obrigado a manter eterno silêncio sobre o maior de todos os presumidos milagres de que foi protagonista: a transformação da hóstia em sangue, quando dada em comunhão a uma beata, Maria de Araújo, mulher simples do povo, negra, pobre e analfabeta. Uma mística que dizia falar diretamente com anjos, santos, a Virgem, Jesus e com o próprio Deus, sem a mediação das instituições clericais.
As autoridades religiosas da época não aceitaram a tese de que um milagre eucarístico – como tantos outros chancelados pelo Vaticano ao redor do mundo e particularmente na Europa – pudesse ter ocorrido no interior do Ceará. “Jesus Cristo não iria deixar os campos europeus para fazer milagres nos sertões do Brasil”, teria dito o padre francês Pierre-Auguste Chevalier, reitor do seminário da Prainha, em Fortaleza, onde Cícero foi ordenado.
Uma comissão formada por um teólogo e um doutor em direito canônico ficou encarregada de desmascarar a suposta farsa. Após um mês de trabalho, os dois religiosos escreveram um relatório detalhado, com mais de quatrocentas páginas, no qual afirmavam que, para seu espanto, teriam testemunhado a transmutação da hóstia em sangue.
Ambos foram destituídos dos respectivos cargos e o processo seguiu sob o comando de um cura de aldeia, que disse não ter presenciado nada de sobrenatural durante uma nova investigação, de apenas três dias.
Padre Cícero, apesar de castigado, jamais largou a batina. Continuou a fazer seus sermões da janela de casa, reunindo multidões, pregando a bem-aventurança do binômio fé-e-trabalho, incentivando a criação de pequenas manufaturas que deram origem ao desenvolvimento do lugar.
De conselheiro religioso, converteu-se em condutor político. Dono de uma popularidade sem precedentes na história nordestina, estabeleceu alianças estratégicas com as elites agrárias e se tornou um líder respeitado tanto pelos sertanejos mais humildes quanto pelos temidos e poderosos coronéis.
Trabalhou pela emancipação de Juazeiro e foi nomeado seu primeiro prefeito. Articulado com o governo federal, abençoou os jagunços, agricultores, beatos e cangaceiros que pegaram em armas para depor as autoridades regionais, numa luta que ao final o levaria ao cargo de vice-governador do Ceará.
A pequena Juazeiro, que antes se resumia a um povoado de pouco mais de trinta casas, cresceu em torno das romarias e do nome de Padre Cícero. A cidade se transformou em um pujante centro comercial varejista e hoje abriga um vigoroso polo universitário.
Em 2001, o cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – desde 1967 o nome pelo qual passou a ser designado o Santo Ofício –, enviou uma carta reservada à Nunciatura Apostólica do Brasil. O futuro Bento XVI sugeria a reabertura dos arquivos históricos sobre Padre Cícero. Como pano de fundo, a contínua sangria de fiéis no seio da Igreja Católica, proporcional ao avanço das igrejas neopentecostais no Brasil. “Padre Cícero é um antivírus contra os evangélicos”, chegou a dizer D. Fernando Panico numa entrevista ao New York Times.
A entrada da imagem de Padre Cícero na catedral do Crato deve ser entendida como um passo decisivo para sua completa reabilitação – e, quem sabe, para sua posterior beatificação e canonização. Resta saber se o “perdão” oficial tem algum significado para os verdadeiros devotos de Padre Cícero. Uma fé visceral, que sempre se caracterizou pelo seu caráter insubmisso, se deixará cooptar pela assepsia do rito oficial?
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Perto de novo do altar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU