09 Novembro 2016
Em artigo, Darlisson Apiaka constrói relação entre a destruição física de um local sagrado e o impacto na dinâmica socioecológica
A reportagem é de Felipe Milanez, publicada por CartaCapital, 05-11-2016.
Darlisson Apiaká é liderança da etnia Apiaká e vive na aldeia Mayrowi, no baixo rio Teles Pires. Recentemente, ele participou em Brasília do lançamento do livro Ocekadi: Hidrelétricas, Conflitos Socioambientais, e Resistência na Bacia do Tapajós, que pode ser baixado nesse link, e um debate na Câmara.
A palavra “Ocekadi”, da língua Munduruku, significa “nosso rio” ou “o rio do nosso lugar”. O livro, editado com apoio da International Rivers em parceria com o Instituto Centro de Vida, Instituto Socioambiental e a Operação Amazônia Ativa (Opan), foi organizado por Maurício Torres, Daniela Alarcon e Brent Millikan, e reúne artigos de pesquisadores e pesquisadoras em diversas áreas que investigam os problemas e as contradições do plano de construção de usinas hidrelétricas na bacia do rio Tapajós.
Entre os 25 artigos, fundamentais para se compreender o tamanho do problema e a violência do licenciamento — enquanto durou, já que, felizmente, foi arquivado pelo Ibama — destaco dois cuja inovação certamente vai influenciar pesquisas em outros lugares.
Um deles consiste nos trabalhos arqueológicos de Bruna Cigaran da Rocha, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) em Santarém, e de Vinicius Honorato de Oliveira: Floresta virgem? O longo passado humano da bacia do Tapajós.
O outro é o artigo Sobre sítios arqueológicos e lugares significativos: impactos socioambientais e violações dos direitos culturais dos povos indígenas e tradicionais pelos projetos de usinas hidrelétricas na bacia do rio Tapajós, de Chico Pugliese Jr. E Raoni Valle, este também professor da UFOPA.
Estes jovens arqueólogas e arqueólogos desenvolvem um lindo caminho que tem sido traçado por influentes pesquisas arqueológicas na Amazônia recentemente e que me convenceram, definitivamente, de que a arqueologia é um paradigma fundamental da ecologia política e uma ciência que pensa sobre o futuro.
Convidei Darlisson Apiaká, agora acadêmico pela Universidade do Estado de Mato Grosso no curso de Engenharia Florestal, para escrever um artigo sobre a visão dele dos problemas que estão enfrentando no processo de construção da usina que impacta suas vidas e território.
A relação que ele constrói entre a destruição física de um local sagrado e a dinâmica socioecológica resultante disso é primorosa e merece ser lida, divulgada, espalhada e, sobretudo, refletida para pensarmos o que está acontecendo com o Brasil hoje, o que está sendo feito desse lindo território.
Entre 27 e 30 de outubro foi realizado o III Festival Juruena Vivo, com a participação de mais 170 pessoas, representantes de povos indígenas (Apiaká-Kayabi, Munduruku, Manoki, Myky, Nambikwara, Rikbaktsa) incluindo Darlisson.
Em Juara, foi lançado um manifesto que pede a suspensão do licenciamento de novas usinas hidrelétricas na bacia do Juruena/Teles Pires/Tapajós (leia a íntegra). A experiência relatada por Darlisson, nesse artigo e nas mobilizações dos Apiaká, são referências fundamentais para se levar em conta antes do início de qualquer novo projeto.
Confira o artigo, na íntegra:
O empreendimento Usina Hidrelétrica (UHE) Teles Pires na Cachoeira da Sete Quedas esta localizado a apenas 30 quilômetros acima da Terra Indígena Kaiabi, no rio Teles Pires, que também é habitada, pelos indígenas Kaiabi, e por nós, povo Apiaká, que somos uma população de 400 pessoas.
A UHE Teles Pires tem trazido grandes impactos para as populações indígena, ribeirinha, pescadores, e pequenos agricultores. Desde que teve início, este empreendimento vem junto de irregularidade. Primeiro, quando não foi feito o estudo de impacto ambiental: ao invés de fazer uma pesquisa para esta realidade específica, decidiram economizar dinheiro ao transferir o risco para nós, população afetada, aproveitando o estudo de outro projeto, da São Manoel Energia.
Um das grandes tragédias no processo de construção da UHE Teles Pires foi a destruição da cachoeira das Sete Quedas, um local sagrado para nós indígenas das etnia Apiaká, e também para os Mundurucu e os Kaiabi. Nossos pais, avós e historiadores indígenas contam que naquele local era onde estavam os espíritos dos mortos; após morrerem, passavam a habitar um lugar sagrado em volta da Cachoeira.
Esse lugar sagrado também seria aos peixes para a sua reprodução: era um lugar habitado por um peixe muito grande, a quem foi dado o nome de Peixe-Mãe, ou mãe de todos os peixes. Todos os peixes respeitavam ela, e por isso o local era seguro para a reprodução. Ali, nenhum outro peixe podia atacar ao outro durante a época da produção. Além da Mãe-dos-Peixes, esse lugar também era um cemitério sagrado, onde estavam enterrados os bravos guerreiros, pajé e os caciques de nossa história.
No momento da construção da usina/destruição da cachoeira, varias urnas funerárias foram destruídas por máquinas de escavar. O cemitério virou um canteiro de obras. Ainda assim, foram “salvas” da destruição total oito urnas funerárias: essas urnas foram recolhidas, retiradas do lugar sagrado onde haviam sido depositadas para ficarem lá para sempre, e transportadas até um local isolado. A última notícia que tivemos dessas urnas funerárias que fazem parte da história de meu povo, elas estavam isoladas num laboratório na cidade de Alta Floresta (MT) em 2014.
Com a destruição da cachoeira de Sete Quedas e o fechamento do rio, os peixes começaram a morrer, sobretudo quando foi feito o desvio do rio. Para colocar as turbinas, o leito do rio foi seco e toneladas de peixes foram mortos. Depois disso tudo, eles não conseguiram mais fazer a migração anual na época da piracema e nem diariamente como era antes, e começaram a fazer a sua reprodução em locais não protegidos e nem adequados.
Para os peixes, o rio ficou sem controle. A água sobe e desce bruscamente em ritmo muito acelerado, o que provoca perdas nas desovas dos peixes. Uma grande quantidade de peixes desova em local com água muito baixa, e com o rio sem controle, isso fez com que os peixes desovem num dia e no outro dia as ovas estão num local seco e toda a produção é perdida, devido ao rio estar sendo controlado por maquinas. Mas com isso tudo da usina agora ficou muito difícil e frágil a reprodução, o que tem contribuído ainda mais para diminuir a população de peixes. Com a usina, os peixes estão em risco de extinção.
Mesmo depois de quatro anos, diariamente ainda encontramos peixes mortos no rio. Acreditamos que os peixes estão morrendo por conta do caldo orgânico vindo das florestas que foram inundadas com enchimento do reservatório.
Algumas pesquisas apontam que 58% das arvores foram retiradas do lago, e os outros 42% da área foram inundados com mata, provocando a poluição dos rios e a emissão de gases. Sabemos que toda aquela floresta inundada produz gás metano, que contribui para o aquecimento global. Além disso, deixa a água sem oxigênio e muito poluída, sem condições de uso.
Outra explicação para as mortes dos peixes é de um produto que pode estar sendo colocado na água como o cloro que é utilizado pra manter a água limpa, com o cloro na água falta oxigênio e facilita a morte dos peixes.
Ainda outra possibilidade que pode contribuir para a mortandade dos peixes foi o nível do rio que baixou muito e provoca aquecimento da agua e a diminuição dos alimentos dos peixes, como as frutas que caem na água na beira dos rios e serviam de alimento para eles. Depois das usinas, o rio não chega mais ao volume normal, só atinge um nível muito baixo. Nós temos observado que os peixes estão muito magros, sem alimento suficiente.
Estamos percebendo ainda que no curso do rio acima do usina ele está muito cheio. Enquanto que na parte abaixo, o rio está muito seco. Estamos preocupados, pois se já estamos tendo dificuldade muito grande para pegar o alimento do dia-a-dia, a cada dia que passa vemos que a pesca está ficando escassa, e desaparecendo peixes que usamos na nossa dieta, como a pirarara, jandiá, piraíba, pintado, barbado, pacu, piau, e outra dezenas de espécies que nos servem de alimento.
Outro problema muito sério que estamos enfrentando com as hidrelétricas são a dificuldade pra a navegabilidade. Com o rio cada dia mais baixo, deslocamentos que antes demoravam cerca de 8 horas, hoje levam quase dois dias.
Este é apenas o trajeto entre a aldeia até o porto. A partir de lá é que temos acesso de carro para as cidades de Paranaíta, Alta Floresta e Colíder- Até Colider, onde fica a sede da Funai, e também saúde e educação, são 380 quilômetros terrestres, e outros 300 quilômetros por água, agora bastante rasa. Por isso este trajeto pelo rio é de suma importância para as nossas vidas.
No início do ano passado, 2015, foi concedida a licença de instalação do canteiro de obras da usina São Manoel, que fica a 50 quilômetros da hidrelétrica Teles Pires e a apenas 400 Metros da Terra Indígena Kayabi.
A cada dia, aumentam os impactos dessa usina que está justamente no limite físico e político da divisa da terra indígena, mas dentro do que consideramos o nosso território ancestral. A cada dia, aumentam os impactos na nossa vida e no ambiente.
Já neste ano de 2016, durante o período de seca, foi registrado o nível mais baixo do rio em toda a história. O Teles Pires ficou tão seco que foi inviável o transporte fluvial da aldeia para a cidade.
Tão baixo o nível da água que só eram realizadas viagens urgentes, com barcos pequenos e pouco peso. Isso por mais de três meses, desde o fim de julho e início de agosto, até agora em outubro.
Com a chegada das chuvas em ritmo ainda muito baixo – percebemos que as chuvas estão diminuindo, isso de forma mais acentuada nos últimos quatro anos –, o rio começou a aumentar, ainda em ritmo muito lento e com baixo volume d’água. Melhorou um pouco para o transporte, mas não para os peixes, nossa fonte de alimentação, e nem melhorou para a nossa vida.
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Liderança indígena denuncia descaso na construção de usina em MT - Instituto Humanitas Unisinos - IHU