30 Outubro 2016
"O encontro de Lund será um encontro global entre católicos e luteranos. Como luteranos, temos motivo para refletir de maneira autocrítica sobre como podemos contar a história da Reforma, com respeito recíproco, espírito de responsabilidade ecumênica, consciência global e vontade constante de fazer com que a reforma ocorra."
A opinião é de Antje Jackelén, arcebispa primaz da Igreja Luterana da Suécia, em artigo publicado no jornal L'Osservatore Romano, 30-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 31 de outubro, católicos e luteranos de todo o mundo se reunirão em Lund para comemorar o quinto centenário da Reforma. Naquele dia, vão se completar os 499 anos da afixação, por parte de Lutero, das 95 teses que contestavam a Igreja e a teologia do seu tempo.
O Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Federação Luterana Mundial colaboraram na organização desse evento ecumênico especial em Lund. Para mim, como arcebispa da Igreja da Suécia, é um prazer que a responsabilidade de hospedá-lo tenha sido confiada a nós, em cooperação com a Igreja Católica na Suécia.
Martinho Lutero queria renovar a Igreja a partir de dentro, não fragmentá-la. A história seguiu um caminho diferente. A Reforma teve uma grande importância para os desenvolvimentos em muitos âmbitos, da Igreja e do Estado à educação, à economia e à cultura. Aquilo que desejamos, porém, não é uma celebração triunfal da Reforma. Ao contrário, luteranos e católicos expressarão juntos, na oração partilhada, a alegria por aquilo que têm em comum, o arrependimento pelo dano criado pela discórdia e o firme propósito de testemunhar juntos ao mundo a misericórdia de Deus, trabalhando pela reconciliação, pela paz e pela justiça para toda a criação.
Provavelmente, o encontro em Lund assumirá uma importância histórica. Ele foi precedido por 50 anos de diálogo entre o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Federação Luterana Mundial. Esse diálogo levou à revolucionária publicação "Do conflito à comunhão" (2013), agora disponível em 12 línguas [aqui, em português]. O texto se baseia naquilo que nos une, sem ignorar o que ainda nos divide. Pela primeira vez, depois de 500 anos, luteranos e católicos chegaram a um acordo sobre uma descrição conjunta da história, assim como sobre imperativos comuns para o futuro. É um novo e importante para o nosso caminho rumo a uma maior unidade visível da Igreja.
É justo reconhecer as consequências contrastantes da Reforma. Ele trouxe benefícios em nível literário em termos de capacidades tanto de leitura quanto de escrita e, por extensão, contribuiu para o desenvolvimento da democracia. A família do pastor protestante se tornou um fator cultural. À Reforma, seguiu-se um longo período de conflitos políticos, tanto dentro dos países europeus, quanto entre eles. A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) dilacerou comunidades e causou tragédia para milhares de famílias. As pessoas foram perseguidas por causa da sua fé. O monaquismo foi prejudicado. A única verdadeira doutrina estabelecida pelo poder secular criou, por muitos séculos, limites à fé e aos costumes religiosos. Essa ordem afetou tanto os fiéis cristãos das diversas confissões, quanto os judeus e muçulmanos.
Ao mesmo tempo, a literatura espiritual na Suécia, contudo, foi muito aberta às influências ecumênicas, incluindo os escritos da tradição inaciana. O teólogo luterano Johann Arndt, que foi uma espécie de autor de best-seller do seu tempo, baseou em parte o seu próprio trabalho em textos do terciária franciscana Angela de Foligno. A herança ecumênica e as tradições espirituais medievais permaneceram vivas em todos esses séculos nas diversas partes da Igreja.
Depois de 500 anos, talvez foi mais fácil do que nunca chegar a uma visão equilibrada da Reforma, capaz de comemorar continuidade e desacordo, benefícios e opressões. As desconcertantes palavras de Lutero sobre os judeus contribuíram com um ódio devastador contra eles. É doloroso ler sobre a vigorosa máquina de propaganda contra aquele que era definido como papismo, sobre o sentimento anticatólico e sobre a caça às bruxas da ortodoxia extrema contra a religião popular.
No entanto, a alegria e a liberdade que decorrem da justificação por meio da graça através da fé se destacam como um dom perene. Libertados por graça de Deus, os cristãos podem viver e trabalhar juntos por um mundo justo, pacífico e reconciliado.
O aniversário da Reforma coincide com uma fase de crescimento no cristianismo. A Europa não domina mais a comunidade mundial das Igrejas. Nas últimas décadas, no hemisfério Norte, houve uma secularização relativamente rápida, enquanto o número dos cristãos está crescendo de modo consistente no hemisfério Sul. Não é por acaso que o papa é argentino e que o secretário-geral da Federação Luterana Mundial vem do Chile.
A discórdia entre católicos e luteranos não pertence, de modo idêntico, à herança histórica dos cristãos em outras partes do mundo. O desafio para a comunidade das Igrejas não diz respeito em primeiro lugar às diferenças confessionais, mas sim às questões relacionadas com a injustiça social, os conflitos armados e a pobreza. As mudanças no panorama religioso e político levaram a uma maior abertura ecumênica em relação ao passado.
O encontro de Lund será um encontro global entre católicos e luteranos. Como luteranos, temos motivo para refletir de maneira autocrítica sobre como podemos contar a história da Reforma, com respeito recíproco, espírito de responsabilidade ecumênica, consciência global e vontade constante de fazer com que a reforma ocorra. Também temos razão para comemorar a continuidade desde que esta nossa parte do mundo, pela primeira vez, se tornou cristã. Essa continuidade contribuiu para a escolha do Vaticano e da Federação Luterana Mundial de realizar o seu encontro conjunto em Lund, onde há uma catedral que, sozinha, testemunha muitas centenas de anos de presença cristã.
Em um recente artigo, o cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, e Martin Junge, secretário-geral da Federação Luterana Mundial, afirmaram: "Em um mundo que lida com falhas na comunicação, com a crescente recorrência de discursos inflamados e divisivos e com o aumento da violência e dos conflitos, luteranos e católicos irão partir do profundo da sua fé compartilhada no Deus Uno e Trino para declarar publicamente: juntos, católicos e luteranos vão se aproximar cada vez mais do seu Senhor e Salvador comum Jesus Cristo".
Ou, como disse o cardeal Walter Kasper, presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos: "O ecumenismo não significa conversão de uma Igreja a outra; significa conversão de todos a Jesus Cristo", o que reflete o modelo proposto pelo papa, ou seja, o de um poliedro, de um corpo de muitas facetas, em que todas as partes formam um conjunto; mas participam desse conjunto de modos diferentes, e é precisamente porque mantêm a sua unicidade que contribuem para a beleza e a atratividade do conjunto.
Uma mulher luterana, casada com um católico, perguntado ao papa quais eram as possibilidades de receber juntos a Santa Comunhão, obteve a seguinte resposta: "Façam sempre referência ao batismo... Um só batismo, um só Senhor, uma só fé. Falem com o Senhor e sigam em frente".
Atitudes passadas de antiecumenismo e de autocomplacência surgem novamente em todas as comunidades de fé. A comemoração comum do dia 31 de outubro, porém, recordará fortemente que não há melhor caminho para seguir em frente do que o da cura das memórias, de um ecumenismo da amizade e de um serviço comum a um mundo que pede em alta voz esperança, paz justa e reconciliação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Papa na Suécia: finalmente a mesma história. Artigo de Antje Jackelén - Instituto Humanitas Unisinos - IHU