28 Outubro 2016
"Tudo obedece a uma rotina, quando não preconceituosa contra a necessidade dessas multidões, as vezes chega ao cúmulo da indiferença e até do sarcasmo quanto ao destino futuro de pessoas expulsas de um chão do qual a sua própria vida depende", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
O Município de Sapiranga ajuizou uma ação de reintegração de posse contra dezenas de famílias pobres que tinham ocupado uma área de terras daquela cidade. A determinação judicial do desapossamento, como costuma acontecer aqui, não demorou. Como acontece todos os dias no Brasil, os violentos efeitos das ordens judiciais desse tipo raramente sensibilizam o Poder Judiciário para pensar sobre as possibilidades de uma consequência funesta fazer hesitar a mão que sustenta a caneta ordenadora do mandado judicial. Tudo obedece a uma rotina, quando não preconceituosa contra a necessidade dessas multidões, as vezes chega ao cúmulo da indiferença e até do sarcasmo quanto ao destino futuro de pessoas expulsas de um chão do qual a sua própria vida depende.
Foi o que aconteceu em Sapiranga. José Marques, com 76 anos, um dos réus dessa maldita ação, sentiu-se mal em decorrência do esforço para desmanchar o seu barraco, possivelmente na esperança de armá-lo em qualquer outro canto que encontrasse “disponível” à sua condição de pobreza. Alerta feito na hora pelas/os advogadas/os de defesa das/os moradoras/es, trouxe alguém para o local que mediu-lhe a pressão arterial dizendo que tudo estava “normal”, podendo ele prosseguir no “trabalho” de desmanche da sua moradia...
Essa “normalidade” levou o José Marques para o cemitério, no dia 25 deste outubro. A casa que o Poder Público lhe negou, quando em vida, só a mãe terra lhe concede agora, depois de morto.
Petições diversas, recursos, lembranças de todo aquele arcabouço legal mais moderno, como o Estatuto da Cidade, a Constituição Federal, as Constituições estaduais e as leis orgânicas dos Municípios, foram invocadas pelas/os advogadas/os de defesa das acampadas/os, procurando chamar a atenção do Judiciário para a irracionalidade com que se substitui, nesses casos, toda a política pública habitacional de proteção e defesa do direito à moradia pelo uso da força pública contra multidões pobres.
Se era o Município o autor da ação de reintegração, a sua própria lei orgânica aconselhava (artigos 171 a 182) a não se desistir de alcançar alguma alternativa para evitar o pior. A tudo, tanto no primeiro, como no segundo grau de jurisdição, o Executivo do Município e o Judiciário mostraram-se surdos.
Um dos últimos despachos judiciais relacionados com o caso serve para formar-se juízo, por mais primário seja, sobre o descaso, até um certo deboche com o que as/os rés/réus da ação judicial pediam:
Processo 11500066263. “Vistos. Em vista da manifestação dos demandados a fls. retro, esclareço que não cabe ao judiciário decidir acerca do destino das pessoas, que são livres para escolher o seu próprio caminho. Quanto aos alegados prejuízos decorrentes do procedimento adotado pela Prefeitura de Sapiranga, consigno que cabe aos demandados acionarem seus advogados a fim de buscar ressarcimento por eventuais danos. Por fim, aguarde-se o retorno do mandado expedido à fl. 154. Intimem-se. Cumpra-se. Diligências legais. Em 20/10/2016. Ricardo Petry Andrade. Juiz de direito.
São livres para escolher o seu próprio caminho? Pode um despacho judicial estar tão astralmente distante da realidade pobre desse contingente populacional para afirmar um absurdo destes? O que essa decisão - decisão judicial sublinhe-se - de onde se espera um mínimo de sensibilidade social, consciência ética de legalidade e justiça, entende por liberdade? Será que alguém, com 76 anos de idade, vê-se forçado pela mais dura necessidade a ocupar uma terra por ser “livre”, e de lá possa sair “livre” também a hora que quiser para outro destino? Qual? Nem o Estatuto do Idoso pode ou deve ser lembrado numa ocasião como essa?
E ainda por cima, depois de tudo isso, que vá procurar advogada/o para pedir reparação de dano? Mas se há reconhecimento de que poderá haver dano, por que não impedir essa desgraça? Ou há necessidade de, com essa “lição de direito”, aumentar-se a humilhação da vítima? Lamentavelmente, não dá para se excluir essa hipótese, pois, partindo de quem parte o tal despacho, ele autoriza deduzir-se estar baseado na convicção de que essa gente toda também recebe a cada mês um polpudo auxílio moradia, tão expressivo que mais lhe sirva para ampliar a sua “liberdade” de gozar o lazer de algum recreio do que para ter um teto sob o qual se abrigar.
A vida de um/a sem-teto ou de um/a sem-terra, para decisões judiciais desse nível de alienação, não vale ser prevista e garantida por qualquer artigo de lei que lhe favoreça. Basta o Código Civil para lhe oprimir, desobrigar o Judiciário de “se envolver” com problemas de “tão pouca importância”. Se isso acarretar a perda de uma vida, dane-se, azar o dela/e.
José Marques, a tua morte comprova, mais uma vez, como a invocação interpretação da lei, traduzida em despacho judicial, pode ser a mais despropositada e desarrazoada garantia de injustiça. Tua ausência, agora permanente, como a de tantas/os outras/os vítimas do Judiciário, vai contribuir para legitimar o poder de resistência de todo o povo pobre como tu que, no Estado e no Brasil, ressuscita a cada morte como a tua.
Isso não serve de nenhum consolo para ti nem para a tua família, mas segue advertindo o país e a sociedade de que um Estado só pode ser reconhecido como democrático e de direito quando impede morte como a tua, quando a vida vale mais do que a propriedade, quando o direito à cidade é um bem comum, a terra não é mercadoria e, suficiente para todas as pessoas, é partilhada, como faz qualquer mãe, sem a disputa responsável pela procissão fúnebre do processo judicial que te levou para o cemitério.
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Que morra o sem teto, mas seja executada a reintegração de posse - Instituto Humanitas Unisinos - IHU