05 Outubro 2016
“As críticas desencadeadas contra os ensinamentos de Francisco são sem precedentes contra um papa nos tempos modernos. Mas essas críticas não são pessoais. Estamos noutra fase da transição (que não se iniciou com Francisco), de uma Igreja dirigida pela aristocracia para uma Igreja do Povo de Deus. É a transição a uma apreciação realista e teológica, baseada na experiência, da sexualidade humana; uma teologia não afastada do caos criativo que constitui a vida”, escreve Massimo Faggioli, professor de História do Cristianismo na University of St. Thomas, EUA, em artigo publicado por Global Pulse, 04-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ele, “lidar com a família e o matrimônio modernos, com a contracepção e o divórcio, a partir de um contexto de classe média-alta ou católico-aristocrata é diferente de lidar com uma família pobre ou de classe trabalhadora. Negar isso é desonestidade (ou pior). De novo, o que estamos vendo não é novidade, e não é algo que o Papa Francisco trouxe à Igreja por si mesmo”.
“Os debates em torno de Amoris Laetitia e Humanae Vitae – afirma o teólogo - são uma forma indireta e camuflada de o establishment católico ocidental lidar com o pontificado de Francisco. Eles mostram que a dinâmica social da Igreja Católica mudou radicalmente, mas não por causa das iniciativas de alguns teólogos modernistas, e sim porque os ensinamentos da Igreja estão desconectados da realidade existencial da maioria dos católicos mundo afora”.
Eis o artigo.
A literatura histórica é teológica nos mostra que as dinâmicas socioeconômicas tiveram um grande impacto na evolução da visão católica sobre o matrimônio e a sexualidade.
As tentativas de fazer o debate pós-sinodal intracatólico se parecer, hoje, como uma continuação da década de 1970 (cf. as recentes apelações e contra-apelações a Humanae Vitae) têm ajudado a expor parte da dinâmica fundamental atualmente em vigor na Igreja. Um sinal interessante foi a recente “Declaração internacional de fidelidade à Doutrina Imutável e Disciplina ininterrupta da Igreja sobre o Matrimônio”, publicada poucos dias atrás.
Essa declaração (de 29-08-2016) contesta as conclusões das assembleias dos Sínodos dos Bispos de 2014 e 2015, assim como a exortação apostólica pós-sinodal do papa Amoris Laetitia. E, no entanto, jamais menciona o Papa Francisco – nem mesmo uma única vez.
A intenção do documento foi mostrar a “verdadeira” doutrina da Igreja. Mas uma das consequências não pretendidas foi que ele também destacou a diferença aparente entre dois mundos católicos diversos – a Igreja do Povo de Deus e a Igreja de uma aristocracia sociológica e espiritual.
Um dos elementos mais interessantes desta Declaração de Fidelidade é a lista dos primeiros signatários. Há três cardeais da Igreja Católica (Raymond Burke, patrono da Soberana Ordem Militar de Malta; Carlo Caffarra, arcebispo emérito de Bolonha, Itália; Janis Pujats, arcebispo emérito de Riga, Letônia) e três membros de círculos acadêmicos católicos.
Porém os signatários mais destacados são os membros da aristocracia católica – e aristocracia não no sentido figurado das “elites”, mas em sentido literal.
Na lista existem príncipes (como Dom Luiz de Orleans e Bragança, atual Chefe da Casa Imperial do Brasil; Carlo e Elisa Massimo da Itália), duques, duquesas e arquiduques (Paul e Pilar de Oldenburg, Alemanha, e Alejandra, de Habsburg).
Entre eles há defensores da volta da aristocracia para a restauração de uma “sociedade cristã”, em oposição à democracia pluralista (veja o doutor Adolpho Lindenberg, cofundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, presidente do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira no Brasil).
Ser membro da aristocracia (ou da guilda acadêmica, se preferir) não deve desqualificar alguém do debate público na Igreja. E não é minha intenção aqui ridicularizar a lista dos signatários, ou os seus motivos do desacordo com outros católicos.
Mas a lista diz algo sobre o que vem acontecendo na Igreja com respeito à moral sexual e à tradição durante os últimos 50 anos. Ela nos recorda de que todo debate teológico, especialmente sobre assuntos relevantes para a mensagem social da Igreja Católica, sempre acontece no contexto social, econômico e político da relação entre Igreja e sociedade.
Recentemente passei parte de meu tempo lendo dois livros fascinantes: “From Shame to Sin. The Christian Transformation of Sexual Morality in Late Antiquity”, de Kyle Harper, e “Through the Aye of a Needle. Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the West, 350-550 AD”, de Peter Brown. Esses dois livros explicam o quão complicado foi para a Igreja interagir com a cultura imperial e a legislação romanas em duas questões fundamentais para a postura da Igreja em sociedade: sexo e dinheiro.
Em particular, a obra de Harper mostra que a questão do sexo vem à tona em qualquer grande reajustamento entre o cristianismo e o mundo. Mais do que isso, mostra que esse grande reajustamento (promovido especialmente por Santo Agostinho e sua eclesiologia da Igreja dos santos e pecadores) não era uma luta entre a Igreja, de um lado, e “o mundo” ou a “sociedade laica”, de outro.
Era, antes de tudo, uma luta dentro da Igreja. Durante os primeiros séculos, a tensão era entre ideais monástico-ascéticos e a injunção bíblica: “sejam fecundos, multipliquem-se”. O que aconteceu na Igreja dos séculos IV e V foi a formação do matrimônio por meio da adoção de muitos elementos do casamento greco-romano (monogamia, relacionamento pessoal, unidade conjugal e exclusividade sexual) contra a prevalência dos ideais monástico-ascéticos. A completa renúncia sexual era um elemento instável para a Igreja naquele período.
Agora, o que está acontecendo hoje com Amoris Laetitia faz parte de um outro ajustamento entre a Igreja e o mundo, a começar com um reajustamento dentro da Igreja.
As críticas desencadeadas contra os ensinamentos de Francisco são sem precedentes contra um papa nos tempos modernos. Mas essas críticas não são pessoais. Estamos noutra fase da transição (que não se iniciou com Francisco), de uma Igreja dirigida pela aristocracia para uma Igreja do Povo de Deus. É a transição a uma apreciação realista e teológica, baseada na experiência, da sexualidade humana; uma teologia não afastada do caos criativo que constitui a vida.
A lista dos signatários que conta com monsenhores e cardeais, príncipes e embaixadores representa uma Igreja muito diferente da Igreja de Francisco e da maioria dos católicos. Não é somente uma diferença na teologia ou de ideologia (existem verdadeiras diferenças aqui), mas também uma diferença nas condições socioeconômicas dos católicos.
E isso não é novidade. A literatura histórica e teológica nos mostra que as dinâmicas socioeconômicas também tiveram um impacto enorme na evolução da visão católica sobre o matrimônio e a sexualidade nos primeiros séculos.
Lidar com a família e o matrimônio modernos, com a contracepção e o divórcio, a partir de um contexto de classe média-alta ou católico-aristocrata é diferente de lidar com uma família pobre ou de classe trabalhadora. Negar isso é desonestidade (ou pior). De novo, o que estamos vendo não é novidade, e não é algo que o Papa Francisco trouxe à Igreja por si mesmo.
A abdicação da aristocracia católica não está acontecendo hoje por causa de um jesuíta latino-americano. Não tem a ver com um populismo teológico e eclesial. Durante esses últimos 50 anos, desde o Vaticano II, a Igreja passou a reconhecer que a distinção das vocações na Igreja entre a aristocracia espiritual da hierarquia e o proletariado espiritual do povo não tem mais dado certo. Se na Igreja de hoje existe uma aristocracia, então essa aristocracia é feita de santos e eles não são necessariamente os “clarissimi” (os mais destacados e eminentes) como se costumava chamar em latim os monges e celibatários da Igreja primitiva.
Os debates em torno de Amoris Laetitia e Humanae Vitae são uma forma indireta e camuflada de o establishment católico ocidental lidar com o pontificado de Francisco. Eles mostram que a dinâmica social da Igreja Católica mudou radicalmente, mas não por causa das iniciativas de alguns teólogos modernistas, e sim porque os ensinamentos da Igreja estão desconectados da realidade existencial da maioria dos católicos mundo afora.
A experiência de um casal latino-americano, africano ou asiático diz mais sobre o cristianismo do que as assinaturas dos cardeais europeus ou norte-americanos ou dos últimos descendentes da Casa Real de Habsburg (ou de um católico burguês europeu ou norte-americano). A aristocracia espiritual daqueles que foram capazes de abraçar uma interpretação estrita da Humanae Vitae sobre a contracepção não deve ser normativa para toda a Igreja.
Essa mudança de uma Igreja conduzida por aristocratas para uma Igreja do Povo de Deus interage com a linguagem moderna das comunicações e com a maneira como a Igreja a usa. O debate intereclesial sobre o matrimônio e a família deixou de ser um debate estritamente teológico. Agora tem a ver também com fazer um apelo à audiência.
Mas, felizmente, a Igreja Católica é uma das últimas instituições sobre a terra que tem resistido à tentação de transformar o seu “povo” em uma “audiência”. A ênfase do Papa Francisco na sinodalidade também evita o que está acontecendo com as democracias seculares – o desprezo pelas elites e a popularidade dos populistas, como personagens ao estilo Donald Trump.
As audiências midiáticas respondem à mensagem no curto período de um ciclo de notícias ou de uma temporada eleitoral. Os católicos não são membros de uma audiência, mas um povo.
E as pessoas respondem às grandes mudanças (incluindo o magistério papal) em décadas, gerações e séculos. Amoris Laetitia está apenas no começo de sua recepção, assim como Humanae Vitae.
Dito de forma simples: uma decisão ainda não foi tomada.
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A Igreja é povo – não uma aristocracia ou audiência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU