03 Outubro 2016
Enquanto São Papa João Paulo II concebia a “memória de um povo” em termos de seus grandes pontos de inflexão culturais e de suas personalidades, e Bento XVI a via por meio de lentes intelectuais, Francisco claramente enxerga a “memória de um povo” incorporada nas memórias individuais das pessoas concretas, especialmente os mais velhos.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 01-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Os papas tendem a ser homens idosos, assumindo o papado num estádio da vida em que muitas pessoas se encontram naturalmente inclinadas a olhar para trás e não para o futuro, o que pode ajudar explicar por que cada um dos últimos três papas estiveram, cada um a seu modo, fascinados pelo tema da memória.
Para São João Paulo II, a cura da memória era uma paixão especial, obviamente modelada por sua experiência de ter crescido à sombra de Auschwitz e vivenciado o trauma infligido aos poloneses tanto pelos nazistas como pelos soviéticos.
Como um filho orgulhoso da Polônia, João Paulo II esteve também muito ligado às memórias um povo inteiro – poetas e dramaturgos, santos e místicos, as grandes batalhas e os grandes discursos, todas as personalidades e pontos de inflexão que forneceram a matéria-prima de uma cultura nacional.
Esteve entre os seus dons especiais o incentivar as pessoas ao redor do mundo a apegarem-se às suas memórias assim como ele era apegado às memórias de seu país de origem.
Para Bento XVI, a memória assume uma moralidade diferente. De formas diferentes, Bento é menos filho da Alemanha do que o é da cristandade, e a memória com a qual ele mais se preocupa pertence à Europa.
Particularmente, em várias ocasiões Bento advertiu ao longo dos anos que uma Europa desligada de seu passado – isto é, da sua identidade cristã, sim, mas também do legado filosófico e cultural da razão – é uma Europa que corre risco.
Isso tudo nos leva ao Papa Francisco, que esteve nestes últimos dias na região do Cáucaso visitando a Geórgia e o Azerbaijão, depois de ter estado na Armênia em junho.
Esta região, afinal de contas, é uma área do mundo onde a memória é ubíqua.
Da mesma forma como acontecia com João Paulo II e Bento XVI em suas viagens, Francisco tem incentivado os povos a valorizar as suas “memórias enquanto povo”, tanto como um serviço à nação como também um baluarte da fé cristã da Geórgia.
Como declarou Francisco no sábado à noite em uma visita à Catedral Patriarcal de Svietyskhoveli: “A queda do povo começa no ponto onde acaba a memória do passado”, ao citar o poeta georgiano do século XIX Ilia Chavchavadze.
Francisco trouxe presente o tema da memória em uma sessão com a pequena comunidade de padres, religiosos/as e seminaristas no sábado, juntamente com representantes dos leigos e jovens. Francisco não tinha textos preparados para a sessão.
Sentou-se a escutar, com atenção, as quatro perguntas que lhe fizeram, em alguns momentos ele tomou nota e sublinhou passagens em particular.
Em seguida, o líder católico ficou mais de meia hora falando de improviso.
Ao ser perguntado por um padre armênio, que havia mencionado a importância de valorizar as “memórias do passado”, Francisco contou uma história ocorrida em sua ida à Armênia em junho.
“Acabada a missa, convidei [um bispo] a subir para o papamóvel (…) e também trouxe o bispo da Igreja Apostólica Armênia, da mesma cidade. Éramos três bispos: o Bispo de Roma, o Bispo Católico de Gyumri e o Bispo Armênio Apostólico. Os três juntos: uma boa salada de fruta!”, brincou.
Francisco descreveu o momento em que desceu do papamóvel e que foi em direção a uma senhora idosa espremida contra uma barreira na tentativa de vê-lo. Disse que ele se aproximou para cumprimentá-la, e a mulher contou que veio da Geórgia e que havia passado oito horas andando de ônibus, tudo para vê-lo. Francisco lembrou que ela usava um dente de ouro.
No dia seguinte, disse o papa, ele estava num outro evento e avistou a mesma mulher. Aproximou-se e disse: “Veio de novo?”, disse, e ela respondeu: “Sim, por causa da minha fé”.
“Olhem o testemunho que deu esta mulher. Ela acreditava que Jesus Cristo, Filho de Deus, deixou Pedro na terra e ela queria ver Pedro (…). Ela humilde senhora estava disposta a passar oito horas num ônibus (...)”, falou. “Então, resumindo, para estar firmes na fé é preciso ter memória do passado, coragem no presente e esperança no futuro (…) Manter viva a memória do passado, a história nacional e ter a coragem de sonhar e construir um futuro luminoso”.
Em outras palavras, o que Francisco ressalta é que a “memória de um povo” jamais é uma abstração – ela compõe-se de memórias e experiências específicas alojadas nas pessoas concretas, de carne e osso, e portanto “manter viva a memória do passado” tem a ver, em grande parte, com ouvir estas histórias e prestar respeito por sua sabedoria.
Como fez várias vezes neste ponto em suas sessões de improviso, Francisco aqui também salientou a importância dos idosos, convocando os jovens a cultivar fortes laços com os avós, e ressaltou a importância das “mães e avós” como pessoas que carregam tanto a memória como a cultura de um povo.
“Uma planta sem raízes não cresce”, disse o papa. “Uma fé sem a raiz da mãe e da avó não cresce”, completou.
Essas memórias pessoais passadas em momentos singulares, acrescentou o pontífice, são “a água fresca da fé”.
Em outras palavras, para o papa a preservação da memória é um dever, sim, e, em parte, tem a ver com grandes figuras e momentos culturais, assim como com os últimos conhecimentos desenvolvidos numa tradição intelectual, artística e literária particular.
O papa provavelmente concordaria em que, se se quer encontrar a “memória de um povo”, uma forma de conseguir isso é indo à livraria, a uma ópera, ou mesmo perambulando pelas ruas das grandes cidades perguntando-se sobre suas estátuas e monumentos.
Por outro lado, Francisco provavelmente mostrar-se-ia também inclinado a buscar a memória do povo georgiano nos georgianos particulares que ele encontra – incluindo, como se vê, uma simples georgiana octogenária com um dente de outro e uma determinação sólida como uma rocha para ver um papa.
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Para Francisco, “a memória de um povo” é sempre concreta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU