30 Setembro 2016
O Festival Internacional de Literatura de Mântua, na Itália, recordou de maneira especial o primeiro aniversário da visita pastoral do Papa Francisco a Cuba, que aconteceu entre os dias 19 e 22 de setembro de 2015.
Para falar do legado que essa viagem histórica deixou e comentar sobre o impacto do pontificado de Jorge Mario Bergoglio, a editora do sítio Cubadebate, Rosa Miriam Elizalde, conversou com o dominicano Frei Betto, na presença de um público que abarrotou o Palácio de San Sebastián, na cidade lombarda.
O encontro teve como título a frase em latim “Extra pauperes nulla salus” (“Fora dos pobres não há salvação”). Na sequência, reproduzimos na íntegra a conversa.
A entrevista é de Rosa Miriam Elizalde e publicada por Cubadebate, 14-09-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Bom dia. Quem é Frei Betto e por que estamos aqui, em Mântua, nesta manhã? Para não tomar o tempo que temos pela frente apelo a uma versão muito curta de sua biografia: frei dominicano brasileiro, intelectual, teólogo da Libertação, um sacerdote negado pela estrutura tradicional do Vaticano, autor de 60 livros e coautor de muitos outros. Amigo de Lula da Silva e de Dilma Rousseff, que assistiu, como testemunha privilegiada, ao processo de desencantamento com o PT no Brasil e ao circo em que 61 pessoas destituíram, na semana passada, a presidente eleita com mais de 54 milhões de votos.
Entre os cubanos me atreveria a dizer que não há uma só pessoa que não o conheça e que não o tenha ouvido dizer: “Prefiro errar com os pequenos do que acertar com o grandes”. Nas horas boas e más, sempre esteve ali conosco, desde que entabulou uma conversa de 23 horas com Fidel Castro, que, mais importante do que descongelar as relações entre a Igreja católica e Revolução na Ilha, provocou um debate que ultrapassou os limites do arquipélago nacional para jogar por terra o dogma sobre a impossibilidade do entendimento entre cristãos e comunistas. Desse encontro saiu o livro Fidel e a Religião, publicado em 1985 em Havana com um milhão de cópias, um exitoso exagero editorial que teve apenas dois antecedentes em Cuba: a impressão de Dom Quixote, em 1960, um ano após a chegada ao poder do Exército Rebelde e às vésperas de uma campanha de alfabetização que ensinou mais de um milhão de cubanos a ler, e a tiragem de O Diário do Che na Bolívia, em 1968.
Detenho-me neste episódio porque não tenho nenhuma dúvida de que o nosso convidado é um elo fundamental que permite entender como se abriu o caminho para que três papas tenham visitado a ilha em um prazo relativamente curto, 17 anos – honras que na América Latina só compartilham Cuba e Brasil –, e que Francisco o tenha feito em duas ocasiões em menos de um ano. A última vez, para reunir-se com o Patriarca da Igreja ortodoxa russa, em outro encontro histórico em Havana.
O fato de que Cuba recebesse quatro visitas pontifícias, não me parece algo extraordinário; em algum momento, era mais fácil encontrar um Papa em Havana do que em Roma.
Certamente, você foi a primeira pessoa que eu ouvi dizer com entusiasmo, logo depois da eleição de Jorge Bergoglio para a cadeira de Pedro, que Francisco está levando a Revolução à Igreja católica. E aqui vai minha primeira pergunta: você disse que João XXIII foi um revolucionário que mudou a Igreja, e Francisco é um revolucionário que não apenas quer mudar a Igreja, mas o mundo. Qual é o projeto civilizatório que você reconhece em Jorge Bergoglio?
Em mais de 70 anos eu não tinha visto um milagre na Igreja, desde a eleição do Papa João XXIII. Eu pensava que algo assim nunca mais voltaria a acontecer. E outro milagre aconteceu: a eleição de Bergoglio, o Papa Francisco.
O problema é que neste momento a Igreja tem uma cabeça progressista com um corpo conservador, e não é fácil fazer mudanças de cima para baixo, porque entre a cabeça e os pés está a cúria romana. Como dizia um profeta, não sei se a cúria tem coração de carne ou coração de pedra, mas Francisco é definitivamente o principal Chefe de Estado hoje no mundo. Francisco teria merecido o Prêmio Nobel da Paz. Espero que este ano a Academia da Noruega reconheça seu trabalho pela paz neste mundo e lhe conceda o Prêmio.
Francisco é, efetivamente, o primeiro Papa que fala das causas das injustiças no mundo. Leão XIII, com a Rerum Novarum, falou sobre os efeitos do desenvolvimento capitalista. Nas encíclicas do século XX, como a Populorum Progressio (de Paulo VI) e Pacem in Terris (de João XXIII), falou-se sobre os efeitos das injustiças, mas Francisco vai além, aponta as causas. Nenhum Papa havia feito isso antes. Em sua encíclica Laudato Si’ ele aponta que a desigualdade vem de um sistema que tem o capital como prioridade e não os direitos humanos. Disse que o problema ecológico não pode ser visto sem levar em conta o aspecto social, porque o desequilíbrio ambiental afeta, sobretudo, os mais pobres. O sociólogo Edgar Morin, que não e crente, disse que na história da ecologia social não há nenhum documento mais importante do que a Laudato Si’.
Na teologia de Francisco e na Teologia da Libertação, o ser supremo para Deus é o ser humano. O ser humano é presença viva de Deus. Não há nenhum ser humano que não seja templo vivo de Deus. Pratica idolatria aquela Igreja que queira servir a Deus dando as costas aos pobres, aos refugiados, aos emigrantes, aos explorados. É muito fácil ter fé em Jesus. Hitler se considerava católico e dizia que tinha fé em Jesus; Mussolini, também; Pinochet, também. A questão não é ter fé em Jesus, é ter a fé de Jesus. E a fé de Jesus está intimamente vinculada à justiça.
Por isso, quando me perguntam: “Por que você, que é frei, se mete na política?” Porque sou discípulo de um prisioneiro político. Pelo que sei, Jesus não morreu de hepatite na cama, nem de um acidente de camelo em uma rua qualquer de Jerusalém. Como muitos na América Latina durante as ditaduras militares, Jesus foi perseguido, preso, torturado e condenado por razões políticas por dois poderes. Portanto, a pergunta tem que ser outra: que quantidade de fé temos nós? Ela produz ou não uma profunda indignação contra as injustiças que há neste mundo?
Você disse que a encíclica Laudato Si’ utiliza categorias dos métodos científicos de análise da realidade. Como se entende um método científico da realidade como o marxismo com o cristianismo, uma fé, e vice-versa?
Acaba de acontecer um golpe de Estado no Brasil com a destituição da presidenta Dilma, e agora muitos amigos me dizem: “Betto, você tem razão, a luta de classe existe”. Em primeiro lugar, os gringos não aceitaram os programas sociais de Lula e Dilma; em segundo lugar, a luta de classes não foi uma invenção de Marx. Ele apenas constatou este fenômeno e nos ensinou a analisar o capitalismo, mas muita gente diz que um cristão não pode adotar os métodos de análise de Marx.
Atualmente, toda a teologia oficial da Igreja católica está baseada na teologia de Santo Tomás de Aquino, que era um frade dominicano como eu. Ele se baseia na filosofia pagã de Aristóteles. Por isso, o bispo de Oxford, Inglaterra, mandou queimar os livros de Tomás de Aquino na praça, porque, como seria possível uma teologia baseada em ideias pagãs! O problema não é se é pagã ou deixa de ser pagã, se é marxista ou deixa de ser marxista; a questão é se corresponde com a verdade dos fatos. A ciência é empírica, ela deve constatar os fatos, os fenômenos.
Sabe-se que Pilatos fez uma pergunta que Jesus não respondeu: o que é a verdade? Talvez porque Jesus considerasse que Pilatos era um tonto e não merecia a resposta. Mas, Tomás de Aquino, no século XIII, deu uma resposta perfeita: “A verdade é a adequação da inteligência à realidade”. A verdade está aí onde a inteligência e a realidade se encontram. Então, Francisco em seus documentos, como o faz na Laudato Si’, adota uma análise verdadeira da realidade. É por isso que a CNN, em um editorial, disse que era um documento marxista. Claro, ele apontou as causas.
Uma das mentiras mais orquestradas no mundo é afirmar que o cristianismo, a democracia e o capitalismo são trigêmeos. Enquanto se pensar assim, vamos continuar num mundo injusto, e o cristianismo continuará sendo uma ideologia de legitimação da injustiça. São Paulo disse: “Toda a criação será salva em Jesus” e muitas pessoas estão preocupadas somente com sua própria salvação e não com a salvação da humanidade. Quando São João, na primeira carta, afirma que quem ama conhece a Deus, não diz que quem conhece Deus ama. Muitas vezes nós acreditamos, mas não amamos, mas aquele que ama, embora não tenha fé, serve a Deus. Jesus disse no capítulo 25 de Mateus: “Eu tive fome e vocês me deram de comer... Cada vez que vocês deram de comer a um pobre, foi a mim que o fizeram”, e isto está muito presente na teologia do Papa Francisco.
Para os teólogos da Libertação, Francisco é um irmão, e você deixou isso muito claro esta manhã. Essa simpatia com a Teologia da Libertação é retribuída, ela que é um movimento que historicamente não foi aceito com beneplácito pela cúria conservadora?
Há muitos preconceitos em relação aos muçulmanos e, efetivamente, um grupo de muçulmanos, em nome de Deus, em nome de Maomé, comete atos terroristas, mas ninguém fez tanto mal à humanidade como os países considerados cristãos. As Cruzadas aconteceram em nome do Deus dos cristãos; a Inquisição foi em nome do Deus cristão; o nazismo, em nome do Deus cristão; os dois maiores atentados terroristas de toda a história da humanidade, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, foram jogadas por um país que se considera cristão; o maior traficante de drogas de toda a história da humanidade, que não era Pablo Escobar, era a Rainha Vitória da Inglaterra, com a Guerra do Ópio na China; ela era a rainha e a chefa de uma Igreja cristã.
Então, nós temos que nos perguntar: o que estamos fazendo em nome de Deus? Em nome de Deus fizemos muitas guerras. Olhem para a situação da África, colonizada por toda a Europa. E o que restou? Miséria, pobreza, e agora querem fechar as portas para que não possam encontrar outra vida.
Dos três continentes mais colonizados, o pior foi a América Latina, porque na Ásia ainda há pessoas com traços asiáticos; na África há negros. Mas na América Latina não resta quase nenhum indígena. Os judeus que me desculpem, mas o maior holocausto da história não foi o nazismo, mas o extermínio dos indígenas produzido pela colonização ibérica na América Latina. Nos primeiros séculos de colonização morreram 70 milhões de indígenas.
Então, para mim, é uma alegria que Deus tenha dado à Igreja um homem como Francisco, que quer mudar não somente a Igreja, mas a nossa concepção do que significa crer em Jesus no mundo de hoje. Isso é o mais importante. Devemos aceitar isso como aceitamos que há muita competição entre o Brasil e a Argentina, entre Maradona e Pelé, entre Messi e Neymar. E que o Papa é argentino, mas Deus é brasileiro.
Falando do que se faz ou não em nome de Deus, o teólogo Antônio Moser distingue uma Igreja do Sim e uma Igreja do Não. Gostaria que nos explicasse estes dois conceitos e a qual deles se filia.
Os que estamos aqui nesta sala e que já passamos da média da idade, conhecemos a qualidade da catequese que recebemos. Era a catequese do não, do “Não se pode fazer”, porque tudo era pecado. Mas, nessa instrução não havia pecados sociais. Só pecados pessoais centrados na sexualidade. As pessoas tinham que fazer uma terapia religiosa que se chamava confissão, e aí a Igreja mantinha seu poder sobre as consciências. Isso não é bíblico. Não conheço nenhuma frase de Jesus nos quatro Evangelhos que diga: “Você tem que ter uma boa moral sexual”. Não. Jesus quer que as pessoas pratiquem a justiça. Ter fé é demonstrar a prática da justiça, é reconhecer que cada ser humano é ontologicamente um ser sagrado, e que quem olhar para o seu próximo desta maneira vai respeitá-lo em toda a sua dimensão, que vai da sua sexualidade até o ponto de vista social.
Uma coisa interessante na cultura de Jesus, na cultura semita, é que não há distinção entre corpo e alma. Esta distinção foi introduzida na teologia católica por Santo Agostinho, que teve a infelicidade de não conhecer Freud. Como discípulo de Platão, era um homem cheio de culpa e convocou a todos nós para sermos o seu terapeuta. Ele escreveu um livro chamado Confissões, que quando o leio tenho a impressão de que eu sou o seu terapeuta e Santo Agostinho está de costas no meu consultório.
Veja, Evangelho significa boa notícia. Qual é a única definição de Deus que existe no Novo Testamento? Que Deus é amor, e São João afirma: “Quem ama conhece a Deus”. Ou seja, todo ato de amor é um ato divino. Isso é inegável, porque somente podemos conhecer a Deus através da experiência amorosa.
Acontece que na Igreja do Não, tivemos uma formação farisaica. Vou usar uma metáfora. João está casado com Maria, mas João tem desejos de dormir com Lourdes, que é sua companheira de trabalho. Como João fez uma catequese na Igreja do Não, ele diz: “Não, eu não posso dormir com Lourdes, porque isso é pecado, é adultério. Apesar disso, eu gostaria muito. Seria um escândalo e posso morrer essa noite e ir para o inferno”. Essa é a espiritualidade do fariseu, não é a espiritualidade de Jesus. João ama tanto a Maria que não consegue ter atração por outra mulher. A intensidade amorosa o faz ser fiel, por isso há três palavras gêmeas: fé, confiança – que significa “com fé” – e fidelidade. João não pode saber se Maria lhe é fiel sempre, mas tem fé no amor que une os dois. Então, a espiritualidade de Jesus não vai na linha de que não se pode cometer estes pecados. Pelo contrário.
Agora, para ser justo com Santo Agostinho, para que não me maldiga, ele resumiu isto em uma frase muito linda: “Ama e faz o que quiseres”.
Como o Pontificado de Francisco é marcado pelo fato de que ele provenha da América Latina?
Em tudo há política. A qualidade do café da manhã que tomamos esta manhã depende da política do país ou da classe social em que vivemos. O último mês do ano chama-se dezembro, palavra que corresponde ao número dez; o penúltimo se chama novembro, que corresponde ao número nove; outubro a oito, setembro, a sete. E por que o último mês se chama dez ou não doze? Porque o imperador Júlio César decidiu que tinha que ter um mês com seu nome, e os astrônomos do Império Romano tiveram que criar o mês de julho. Quando Júlio César morreu e veio Augusto, ele reclamou também o seu mês, e tivemos agosto. Os astrônomos compareceram perante o imperador e lhe disseram: “Majestade, seu mês está criado, mas há um problema: os meses são alternadamente de 31 dias e de 30 dias”, e Augusto disse: “De jeito nenhum, eu corto a cabeça de cada um de vocês se não resolverem este problema”. E o que eles fizeram? Cortaram dias do mês de fevereiro.
Em tudo há política, e também na eleição de Bergoglio. Há um mito que diz que o conclave na Capela Sistina se faz a portas fechadas. O mito veio abaixo na última eleição, porque houve um momento em que a fumaça que saiu tinha uma cor indefinida. Não era nem branca nem preta. O Pe. Lombardi, que atendia à imprensa e não estava na Capela Sistina, reuniu todos os jornalistas para esclarecer que o Papa ainda não tinha sido escolhido, que a fumaça era preta. E como ele sabia se ele estava fora, se não há nenhuma comunicação de dentro para fora? Ele devia ter as mesmas dúvidas que os outros que não estavam enclausurados na Capela Sistina.
O que aconteceu? Houve uma briga muito forte entre os bispos da Itália e os do resto do mundo. A Conferência dos Bispos da Itália queria novamente um italiano, e os bispos de fora da Itália não. O leste da Europa já tinha tido dois Papas, um polonês e outro alemão. Por que não buscar nos Estados Unidos? Não, corria-se o risco da privatização da Igreja católica. Recordemos que o Papai Noel foi criado no século XIX na Itália e se vestia de verde, mas a Coca-Cola impôs que tinha que ser vermelho. Então, não restava muita alternativa, e eles decidiram escolher um cardeal que nunca tinha criado nenhum problema e cometeram o “erro” de escolher o Bergoglio, que agora é uma grande dor de cabeça para os conservadores. A sorte é que o Papa, apesar de ser o único monarca absoluto do Ocidente, é um homem democrático, porque vocês sabem que um Papa não precisa consultar ninguém.
Há uma lenda de que uma vez perguntaram a João Paulo II: “Por que você, Sua Santidade, não se reúne com os outros cardeais para discutir as decisões?”, e João Paulo II teria respondido: “Quando quero fazer reuniões fico de joelhos na minha capela e consulto o Pai, o Filho e o Espírito Santo”. É uma reunião de quatro pessoas. Mas, Bergoglio é muito democrático e muito inteligente.
Desde o Concílio de Trento, no século XVI, está proibido falar na Igreja do tema da sexualidade. Está proibido falar de outros modelos de família. Mas vocês sabem que o discurso da hierarquia vai por um lado e a vida das pessoas por outro. Vocês conhecem hoje algum jovem, alguma moça, de 16 anos, que esteja muito preocupado com o pecado? Vocês sabem que pela doutrina oficial da Igreja um casal só pode ter relações sexuais se tiver a intenção de procriar, nunca por afeto; oficialmente, isso é um pecado. Eu tive um professor de Teologia Moral que quando ensinava esta parte teve a sabedoria de dizer: “Isso não é teológico, é zoológico”. Claro, ele sabia que era um absurdo total, isso de que só se podem ter relações sexuais se há intenção de procriar, apesar da explosão demográfica.
Francisco convocou dois sínodos sobre a família, e colocou os cardeais da Igreja de todo o mundo para debater o tema. Para os conservadores é um problema, um estorvo, até que apareceu o tema da homossexualidade. Eu sou, creio, heterossexual, e sem entrar em detalhes da vida privada de ninguém, sei que na Igreja católica há muitos padres heterossexuais, e muitos padres, e bispos, e cardeais, homossexuais. Não estou dizendo que pratiquem, estou dizendo que efetivamente são homossexuais; mas não aceitaram de jeito nenhum debater este tema. E o que fez o Papa?
Chamou os cardeais para um sínodo e fez a seguinte pergunta: “Os casais homossexuais que existem no mundo, quando são dois homens adotam uma criança; quando são duas mulheres adotam uma criança ou fazem fertilização artificial. Vocês querem que essas meninas e esses meninos sejam excluídos da catequese, excluídos do batismo?” Eles tiveram que dizer: “Não, de jeito nenhum. Estas crianças não têm culpa de ter pais ou mães homossexuais, e a Igreja não pode rejeitá-los”. Vejam a inteligência de Francisco, porque desde o momento em que você aceita um filho de homossexuais não é possível não aceitar os seus pais. E a pergunta é outra: se Deus é amor, e onde há amor aí está Deus, por que temos tantos preconceitos?
O tempo passou voando, e antes de passar às perguntas da plateia, gostaria que comentasse um fato particular relacionado com Cuba. Quero comentar-lhes algo: Frei Betto foi o assessor do governo cubano para as visitas à Ilha de João Paulo II e de Bento XVI...
E também de Francisco.
O que quase ninguém sabe é, exatamente, qual foi a intermediação do Papa nas negociações que facilitaram o início do processo de restabelecimento das relações entre Cuba e os Estados Unidos, anunciado no dia 17 de dezembro de 2014. Tanto o presidente cubano Raúl Castro, como o estadunidense, Barack Obama, agradeceram a Bergoglio sua ajuda neste processo. Exatamente, o que o Francisco fez?
Um senador católico dos Estados Unidos (Patrick Leahy) esteve em Roma com o Papa Francisco e lhe disse: “Você tem que aproveitar que o Obama ainda é o presidente para a aproximação entre os Estados Unidos e Cuba, porque depois não sabemos quem será o presidente dos Estados Unidos”.
O fato de que os dois países não tiveram relações afetou muitíssimo o povo de Cuba. Um parêntese: a Conferência Episcopal de Cuba está completamente contra o bloqueio dos Estados Unidos e, por outro lado, os norte-americanos têm interesse no comércio com Cuba, e com o bloqueio e a falta de relações diplomáticas tudo isso dificulta.
Então, o Papa Francisco telefonou para o cardeal Jaime Ortega de Cuba e lhe disse: “Vou confiar-lhe uma missão. Eu escrevi uma carta para o Raúl Castro e uma para Obama, dizendo que é hora de que os dois países tenham relações diplomáticas, e eu quero que você leve estas duas cartas às mãos dos dois presidentes”, e o cardeal Ortega lhe disse: “Sim, eu posso levá-la ao Raúl Castro, mas não sou cardeal dos Estados Unidos. É melhor, Santo Padre, você confiar isso a um cardeal dos Estados Unidos”. E Francisco disse: “De jeito nenhum, você vai levá-la a Obama”. O cardeal Ortega entregou a carta a Raúl Castro, e depois foi para Washington. Telefonou para alguém da Casa Branca, Obama enviou-lhe um carro – um carro com os vidros escuros – e recebeu o cardeal Ortega em um jardim da Casa Branca, os dois sozinhos. Leu a carta e disse ao cardeal Ortega. “Diga ao Papa que eu estou de acordo” – já Raúl Castro havia dito: “Estou de acordo”. Isto aconteceu mais ou menos em maio de 2014.
Os dois países criaram uma comissão bilateral cubano-americana ultra-secreta que se reuniu no Canadá, a ponto de que o próprio secretário de Estado dos Estados Unidos, que equivale ao ministro de Relações Exteriores, não estava sabendo das negociações. Como disse Rosa Miriam, no dia 17 de dezembro, na mesma hora, Obama em Washington e Raúl Castro em Havana anunciaram o início do processo que levaria ao restabelecimento das relações entre os dois países.
Será que não há coincidências nas coisas da vida? Vejam, há Cristo-incidências. O dia 17 de dezembro é o dia do aniversário do Papa Francisco, e o dia 17 de dezembro é o dia da principal festa religiosa de Havana, a de São Lázaro. Foram restabelecidas as relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos, mas ainda não se suspendeu o bloqueio, porque não depende de Obama, mas do Congresso, e o Congresso está dominado pelo Partido Republicano, e então acontecem coisas absurdas como a que vou lhes contar.
Se você vai a uma agência de turismo na Quinta Avenida de Nova York, e diz: “Eu quero passar férias em Teerã”, você vai passar suas férias em Teerã. Não há nenhuma lei que impeça um americano de passar férias em Teerã. Mas se você diz: “Não, eu quero ir à Coreia do Norte”, não há nenhum problema. Mas se você diz: “Quero ir a Cuba”, não pode, salvo 12 exceções: se você tem parentes em Cuba, razões religiosas, razões científicas... Se você vai com grupos de pessoas que têm mais de 60 anos, que já não podem ser contaminadas pelo comunismo. Enfim, há exceções, e os norte-americanos agora se aproveitam dessas exceções, porque há um grande número de gringos em Cuba. É o único país do mundo que tem carros da década de 40 e 50 que andam normalmente pelas ruas, e os yanquis idosos vão a Cuba para a sessão nostalgia, para andar pelas ruas de Havana em Oldsmobiles e Chevrolet dos anos 1940, como quando eram crianças.
Mas nós temos que ser muito solidários com o projeto do Papa Francisco na relação Cuba-Estados Unidos, e denunciar e assinar petições para que o bloqueio acabe. Vocês não têm ideia das consequências e sofrimentos que o bloqueio traz para o povo de Cuba. Apesar de tudo, Cuba é o único país da América Latina onde não há meninos de rua, não há famílias que dormem debaixo de pontes, não há máfias ou narcotráfico, não há grupos de drogados. É um país verdadeiramente franciscano. E agora, com esta aproximação com os Estados Unidos, poderia dar-se o choque do tsunami consumista com a austeridade cubana, o choque entre Donald Trump com São Francisco de Assis.
Sobre a possibilidade da conversão da cúria romana com este pontificado.
Vocês têm, cada vez mais, que criar grupos de base e promover internamente uma teologia libertadora, porque a Igreja muda como os países mudam, ou os movimentos de base. Não acredito muito em que vai haver um milagre de conversão da cúria romana. Há muitos interesses em jogo aí, mas acredito em que a Igreja pode se renovar. O importante é que vocês, em suas cidades, podem criar comunidades de fé que estejam vinculadas de forma efetiva à opção pelos pobres, às lutas populares na África, Ásia e América Latina, e também aos fenômenos dos refugiados na Europa. Estamos colhendo o que plantaram na África, o que semearam no Oriente Médio, e então há muitos trabalhos que podem ser feitos à luz do Evangelho.
Sobre aqueles que não têm fé.
Todos aqueles que estão com os pobres, tenham ou não fé, estão do lado de Jesus. Sempre defendi que o símbolo do cristianismo não deveria ser a cruz, que é um símbolo de morte, mas o pão, que é um símbolo de vida. E Jesus disse: “Eu sou o pão da vida”, ele nos ensinou que se cremos nele temos que compartilhar o pão, compartilhar os bens. Portanto, todos aqueles que lutam por um mundo onde se compartilham os bens da terra e os frutos do trabalho estão com Jesus, porque creem em um mundo de justiça e de liberdade.
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“Francisco é o primeiro Papa que fala das causas da injustiça no mundo”. Entrevista com Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU