Por: Patricia Fachin | 16 Setembro 2016
“Não há uma saída para essa herança de quebradeira” e, portanto, no curto prazo, o programa de privatizações e concessões, ou seja, a “pauta de reformas” do governo Temer, “que são as mesmas que a Dilma estava tentando implementar”, será inevitável e “não tem como não fazê-las, porque o horizonte é que o Governo Federal passe a não pagar os servidores da União”, diz Giuseppe Cocco à IHU On-Line.
Na avaliação dele, as manifestações Fora Temer não estão conseguindo pautar uma discussão sobre as reformas estruturais da Previdência Social, da Reforma Trabalhista e o estabelecimento de um teto para os gastos públicos, e “se a resistência contra essas reformas não consegue ser uma resistência sem o PT, ela será derrotada”.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente na tarde de quarta-feira, 14-09-2016, quando esteve no Instituto Humanitas Unisinos - IHU participando do IV Colóquio Internacional IHU - Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica, Cocco frisa que é preciso “uma nova pauta de reformas, como a reforma tributária, a qual o PT sequer colocou na pauta; depois, podemos discutir a flexibilização da CLT, se tivermos uma proteção social mais abrangente e não menos abrangente, e ao mesmo tempo ter uma dupla dinâmica: um piso para a proteção social e um piso para o salário de quem trabalha, ou seja, ter um salário mínimo maior e ter um piso para a Previdência, o qual possa ser a base para uma renda universal, que será a proteção para quem tiver, por exemplo, a lei de trabalho flexibilizada. Essa é a maneira de juntar as duas coisas e ter força de criticar Temer tendo que criticar o PT também, mas o PT não quer fazer isso”.
Segundo ele, o Brasil precisa de “mais democracia e menos retórica: ‘precisamos de um projeto de nação e de uma política de Estado’ é o grande mantra da esquerda. (...) Precisamos de mais democracia, a democracia que faça seu projeto, e não de um projeto a ser colocado para virar objeto de marketing, e depois chegar ao poder e fazer tudo ao contrário”.
Cocco durante participação no Colóquio. (Foto: Fernanda Forner | IHU)
Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como está compreendendo o atual momento do país, pós-impeachment, com as manifestações Fora Temer e os primeiros dias do novo governo?
Giuseppe Cocco – Como um momento gravíssimo, porque a conjuntura continua com as características de ter várias crises. Temos uma conjuntura global, que vem desde 2007 e 2008, com a crise do capitalismo financeiro, que é diferente da crise do capitalismo de 1929. Dentro da crise global temos a crise endógena do Brasil, numa conjunção de várias linhas. A primeira delas é a crise econômica, a qual, segundo alguns economistas, é a pior crise que o país já enfrentou, e mostra o fracasso da experiência neodesenvolvimentista, que foi agravada pelo ajuste desajustado que a própria Dilma tentou fazer após as eleições.
Junto com isso existe uma crise política, que é correlata à crise econômica, no sentido de que começou antes, e em junho de 2013 ela apareceu claramente com o descolamento geral de uma casta de políticos que não conseguia mais ter legitimidade — junho foi a explicitação, em forma de mobilização, do que ouvíamos no dia a dia no sentido de não acreditar no político, de reclamar da falta de serviços, de se indignar com a corrupção. A terceira crise é moral e ética e tem como motor a Lava Jato. Essas três crises estavam juntas no final de 2014 e 2015 e a partir de 2016 elas chegaram a um momento de inflexão. Podemos dizer que existem três pontos de inflexão.
A crise econômica chegou a um ponto de inflexão que pode ser expressa no fato de que a recessão brutal da economia se transformou quase numa depressão e começou a ter níveis preocupantes de desemprego, uma queda brutal da arrecadação, o aumento do endividamento — não porque se gastou em saúde ou educação —, a falência de alguns estados, que é só o primeiro passo de uma falência mais generalizada e que envolve os estados do RS, RJ, Goiás, Paraná, e o início da quebradeira das grandes empresas — as estatais não quebram porque são estatais, mas precisam de investimentos.
A Petrobras está num nível de insolvência e só se sustenta graças a empréstimos chineses — que não são gratuitos somente por serem chineses, e não americanos ou brasileiros. A Eletrobrás está com grandes dificuldades; a Gol, a maior companhia de aviação, está com dificuldades e renegociando suas dívidas; a Oi, a maior companhia semiestatal de telefonia, está quebrada; a Caixa Econômica Federal está com problemas, e isso tudo nos mostra que estamos chegando à quebradeira. Não sei se tocamos o fundo do poço, nem sei se o poço tem fundo — o caso da Venezuela mostra que a situação pode ser pior, mas é uma inflexão que está preocupando todo mundo e que determina um contexto de urgência para uma mudança.
O segundo ponto de inflexão foram as mobilizações sociais que chegaram a um patamar preocupante, particularmente em torno da condução coercitiva do ex-presidente Lula para o interrogatório, onde se criou um clima, em São Paulo, de enfrentamento não só entre a polícia e os manifestantes, mas entre manifestantes de campos diferentes e, portanto, isso é algo que poderia gerar níveis de violência problemáticos e não controláveis.
O terceiro ponto de inflexão é a Lava Jato no sentido de que ela chegou a um tamanho tal que enfrenta toda a classe política. Se inicialmente a Lava Jato pegava o PT e o PT dizia que ela era seletiva, agora ela abrange toda a classe política. A Lava Jato chegou ao STF pressionando segundo as vias tradicionais, está criando filhotes e corre o risco de virar o que foi na Itália a Operação Mãos Limpas, que levou 20 mil pessoas da classe política para a cadeia e destruiu partidos inteiros.
Foi em função desses fatores que aconteceu o impeachment da Dilma, que é um rearranjo interno, e não externo — não há nenhum golpe —, diante da incapacidade da ex-presidente de enfrentar essas três crises.
IHU On-Line – O senhor chamou atenção para o fracasso do neodesenvolvimentismo. Nesta semana o presidente Temer anunciou que pretende realizar um pacote de 34 concessões e privatizações entre 2017 e 2018. Há uma alternativa a essa proposta, que tem sido criticada juntamente com outras, pelo movimento Fora Temer?
Giuseppe Cocco – O fracasso da aventura neodesenvolvimentista tem uma herança nesse desastre, nessa quebradeira generalizada, no aumento do desemprego, no aumento da violência — em Porto Alegre, enviaram a Força Nacional. O Brasil é um país muito desigual e precisa crescer, distribuir riqueza. Então, não há saída para essa herança de quebradeira. E nesse contexto em que não há saída, surge uma pauta de reformas que são as mesmas que a Dilma estava tentando implementar, mas não conseguia. Temos uma parte de reformas que serão chamadas de privatizações, mas que a Dilma e o Ministério do Planejamento já estavam preparando, e que no curto prazo não tem como não fazê-las, porque o horizonte é que o Governo Federal passe a não pagar os servidores da União.
O que temos desenhado pela frente é, por um lado, uma nova leva de privatizações, que implicam financiamento público, e o governo está colocando 30 bilhões para os bancos públicos bancarem esse processo. O governo Temer está tomando iniciativas: ele tomou a iniciativa de declarar o déficit em 170 bilhões, e tomou a iniciativa de dar um aumento salarial para os funcionários do setor público.
Depois das eleições municipais, vem a discussão sobre as reformas estruturais, e sabemos quais são: Previdência, revisão e flexibilização da CLT, e estabelecimento de um teto para os gastos. Nós estamos numa situação na qual a redução do déficit, a partir de medidas como a de fixar um teto dos gastos a curto prazo e reduzir no longo prazo a curva da dívida pela Reforma da Previdência, complementado por uma flexibilização das condições de acumulação do capital pela Reforma Trabalhista, se apresentam como a condição para a retomada do crescimento e queda dos juros dos investimentos. Isso nos é apresentado como a única saída.
O problema é que o movimento Fora Temer, que antes se chamava Não Vai Ter Golpe, mistifica a resistência contra essas reformas, porque parece que o governo Temer, em dois ou três meses, "vai transformar a Suíça no Brasil", ou seja, é como se antes o país estivesse uma maravilha e agora tudo será retrocesso. O movimento contra essas reformas está criando um grande impasse, porque essas campanhas feitas pelo PT e por suas linhas auxiliares são falsas e evitam o reconhecimento do fracasso. O PT tinha cortado o seguro-desemprego para os mais jovens e ficava dizendo que o problema era a redução da maioridade penal que o Cunha queria, como se Cunha não fosse parte do governo, não fosse produto desse governo de coalizão. Depois veio a manifestação Fora Cunha e, nesse sentido, a Lava Jato contra Cunha é ótima, mas contra o PT, não. Para Cunha não há necessidade de ter garantias, o devido processo, mas para Dilma, há. E agora, depois da campanha Não Vai Ter Golpe, tem a campanha contra o retrocesso, como se todos estivessem bem, e o PMDB, chegando não se sabe de onde, vai mudar tudo.
Se a resistência contra essas reformas não consegue ser uma resistência sem o PT, ela será derrotada. A mobilização pela direita da justa indignação contra Dilma vai passar por uma oscilação porque eles defenderam o impeachment, que se por um lado, acata o pedido das ruas, por outro, é feito contra a Lava Jato, mas a indignação da rua defende a Lava Jato. Então, a demissão do Advogado Geral da União já criou manifestações com o MBL - Movimento Brasil Livre e isso vai aumentar porque a base do Temer está completamente envolvida na Lava Jato, a começar pelo Renan Calheiros.
A questão é: se o movimento Fora Temer for atravessado pelo PT, toda a mobilização da rua vai ficar atravessada e aí pode aparecer uma nova direita diante desse apodrecimento geral da esquerda, que só fala mentiras. Com isso, as pessoas vão dizer que quem fala a verdade é uma direita nova, que pode ser liberal ou fascista de tipo novo. O PT desejou que houvesse uma direita desse tipo desde junho de 2013, para justamente se colocar contra ela. Mas esse mesmo PT reprimiu junho usando as polícias e desqualificando o movimento.
IHU On-Line – Além dessa desvinculação do movimento Fora Temer com o PT, o que seria um tipo de resistência à Reforma Trabalhista, por exemplo?
Giuseppe Cocco – Se esse movimento não conseguir se conectar com uma indignação geral que envolve uma indignação contra o Temer, mas que envolve o PT também, corre o risco de ser um movimento que vai se mobilizar contra a reforma, defendendo algo que não existia, como reformas estruturais, e vai ser um movimento que envolve setores sindicais, setores públicos e movimentos universitários, e perderá legitimidade. O risco é a população encontrar uma saída no discurso do Bolsonaro ou da direita, que é abertamente contra o PT. Na Europa é isso que acontece, setores da população proletária votam na extrema direita.
IHU On-Line – Já está claro em que consistirá a Reforma Trabalhista? Tem se divulgado notícias na internet de que a jornada de 12 horas poderá ser regulamentada, que serão possíveis contratos por hora de serviço, e o presidente Temer declarou que não haverá aumento da jornada. Diante desses diversos discursos, como está se discutindo esse tema na sociedade?
Giuseppe Cocco – Essas são besteiras que o Fora Temer está procurando. Quando a Dilma ficou suspensa durante o processo do impeachment, foi criada uma máquina de propaganda e de memes falsos, que multiplicam retrocessos. Dizem que Temer foi vaiado nas Olimpíadas, como se Dilma não tivesse sido, em outras ocasiões. O que está acontecendo é uma procura pelo retrocesso, querendo qualificar tudo que está sendo proposto como retrocesso. O Temer não tem carisma, nem legitimidade, mas não é bobo. Ao contrário, vai tentar fazer as coisas como faz o PMDB, sem fazer barulho, convidando até o MST para conversar, e ele tem condições de fazer mais reforma agrária do que a Dilma fez.
Essas coisas que estamos ouvindo, como aumento da jornada para 12 ou 18 horas, têm duas lógicas: ou pode ser sabotagem do próprio governo, ou pode ser chute. As reformas serão apresentadas como o objetivo máximo e depois vão recuar. O Temer já mostrou que recuou: no caso do Ministério da Cultura - MinC, ele recuou, coisa que a Dilma não fez quando escolheu a Ana de Hollanda para o Ministério. Temer também recuou na barragem de Tapajós, coisa que Dilma nunca teria feito.
O que nós sabemos por enquanto é que as reformas têm três linhas: a reforma da Previdência, e com certeza vão usar o Programa Bolsa Família contra a Previdência no sentido de manter o Bolsa Família e fazer a reforma; a segunda reforma é a questão trabalhista, que passa pela terceirização — essa discussão sobre aumento da jornada, acho besteira —, e com a terceirização, a jornada de trabalho não tem importância, porque o trabalhador assalariado passa a ser contratado e não tem jornada, sendo que estamos num país onde isso já acontece; e a terceira reforma é a manutenção de um teto para os gastos públicos, o que é apresentado como uma necessidade, porque os Estados não estão conseguindo pagar suas despesas, mas é uma loucura irresponsável quando limita os gastos públicos futuros. Estamos diante de uma situação que é fruto de uma responsabilidade compartilhada entre PT e PMDB.
A Previdência é importante, mas cobre só uma parte da população; a lei trabalhista é importante, mas também cobre somente metade da população, porque o restante vive do trabalho informal. A questão é que quando há muitas pessoas fora desses dispositivos, elas podem ser utilizadas contra os dispositivos numa mobilização popular. Aqueles que não têm proteção social vão reclamar, mas também pode haver uma disputa entre quem está no regime do INSS e quem está no regime público, que é privilegiado, ou em relação à lei trabalhista: quem está terceirizado pode achar que ao menos agora terá uma configuração social formal melhor do que tinha antes.
Se ficarmos presos na defesa de uma resistência como recusa de um retrocesso, não vamos conseguir enfrentar essas reformas, e a única forma de enfrentá-las é ligar a mobilização Fora Temer com a abertura de uma pauta de mobilização de novas reformas.
IHU On-Line – O que seria uma pauta pela mobilização de novas reformas?
Giuseppe Cocco – Precisamos de uma nova pauta de reformas, como a reforma tributária, a qual o PT sequer colocou na pauta; depois, podemos discutir a flexibilização da CLT, se tivermos uma proteção social mais abrangente e não menos abrangente, e ao mesmo tempo ter uma dupla dinâmica: um piso para a proteção social e um piso para o salário de quem trabalha, ou seja, ter um salário mínimo maior e ter um piso para a Previdência, o qual possa ser a base para uma renda universal, que será a proteção para quem tiver, por exemplo, a lei de trabalho flexibilizada. Essa é a maneira de juntar as duas coisas e ter força de criticar Temer tendo que criticar o PT também, mas o PT não quer fazer isso.
Esse único jeito é muito difícil porque, para quem hoje é de esquerda, e não se reconhece e não quer ficar preso à chantagem que o PT montou desde junho de 2013, é difícil fazer qualquer coisa, porque você está à parte desses malucos que pensam que estamos num golpe, que te chamam de golpista, e de outro lado, você encontra somente esse tipo de direita que está indignada com tudo e passa a odiar a bandeira vermelha, como fizeram na União Soviética. Temos que ter um movimento contra Temer que não seja petista.
IHU On-Line – O que seria uma proposta de reforma que traga mais direitos para os trabalhadores, por exemplo?
Giuseppe Cocco – Veja o exemplo dos garis do Rio de Janeiro, que fizeram uma luta autônoma quebrando a hegemonia do sindicato mafioso que controlava a categoria. Eles ganhavam um salário mínimo e conseguiram um aumento salarial de 33%. Mas o que fez a administração do PT e do PMDB? Demitiu todo mundo e, em particular, os mais politizados. Ao demitirem, automatizaram esse serviço de limpeza. Vamos fazer o quê? Defender o fato de que tenham um salário quase escravo? Ou vamos perguntar para onde se reverte essa conquista: para os trabalhadores ou para as empresas terceirizadas que pagam os vereadores?
IHU On-Line – A esquerda no Brasil é muito refém do PT?
Giuseppe Cocco – Totalmente. Até a Rede foi massacrada de uma maneira vergonhosa. Nunca pensei em entrar na Rede, mas me parecia uma saída moderada para a crise — Marina continua sendo, mas a Rede, não. A esquerda hoje é uma armadilha e se não a reinventarmos, sabemos que não haverá vazio.
IHU On-Line – Vê essa possibilidade de reinvenção e rearticulação política? Como? Há quem defenda que a esquerda deve abandonar sua bandeira vermelha e se remodelar.
Giuseppe Cocco – À medida que a bandeira vermelha vira um símbolo de uma burocracia corrupta e autorreferencial, mais ela vai para o buraco. A esquerda precisa ser materialista e ética e não nominalista. Nos países do Leste da Europa, defender a bandeira vermelha é defender um governo autoritário e isso é absurdo. Aliás, o pessoal que grita golpe aqui, não fala nada da Venezuela, onde há um golpe da esquerda militar e um país que quebrou de vez. Tem também uma repetição do que o stalinismo fazia: os que criticavam Stalin eram tomados como agentes dos americanos imperialistas, enquanto os dissidentes eram massacrados, a esquerda internacional continuava defendendo um Estado totalitário, pior do que o que combatíamos no lado Ocidental.
A esquerda deve ter preocupação com a verdade, com a democracia e com os pobres. Os que estiveram no governo ficaram milionários, quebraram o país, se aliaram com os golpistas e não se muda nada dentro do PT, continuam sempre os mesmos dirigentes. É pior que uma monarquia.
IHU On-Line – A esquerda ainda tem alguma proposta no campo político ou sua agenda se limita mais a discussões ambientais e culturais?
Giuseppe Cocco – Se a esquerda continuar repetindo o que faz aqui, vamos ser obrigados a esquecê-la. Já tínhamos visto que o socialismo tinha sido um desastre na União Soviética e na China, deixou milhões de mortos de fome, foi autoritário. Depois veio o socialismo do século XXI como sendo outro fracasso incrível. O socialismo tem que ser esquecido, mas se a esquerda continua se associando a isso, vamos ter que esquecê-la. Agora, não é verdade que um campo crítico de luta se reduz a algo cultural ou ecológico: não é uma redução, hoje a cultura e a ecologia são fundamentais.
Ser de esquerda significa falar a verdade, querer transformar o mundo, segundo as dinâmicas de resistência do mundo que já existe e que não é uma esquerda utópica nem autoritária, que quer impor algo. O PT até junho de 2013 não estava nem aí para a bandeira de esquerda, falava em nova classe média. Desde quando classe média é um tema de esquerda? Quando chegou junho, se viu que todo o povo que deveria estar satisfeito com o PT, estava bravo. E aí a bandeira vermelha virou fundamental, ou você reza com a bandeira vermelha, ou não converso mais com você. Para quê? Para evitar o debate.
Esse é o nosso impasse para tentar construir uma verdadeira pauta de reformas, sendo que o PT as esvaziou. Quais são as reformas que o PT fez ou conseguiu pautar do ponto de vista da segurança? Conseguiu fazer uma campanha a favor da legalização do aborto? De sensibilização sobre o direito da mulher? Não. Conseguiu pautar uma reforma política? Sequer a abolição do auto de resistência entrou em pauta.
IHU On-Line - O que seria uma contribuição à esquerda para um projeto de país, se o neodesenvolvimentismo não deu certo e se a esquerda se diz contra as privatizações?
Giuseppe Cocco – A democracia. Menos projeto de país e mais democracia. Menos retórica: “precisamos de um projeto de nação e de uma política de Estado” é o grande mantra da esquerda. Mais democracia é o que nós precisamos. Onde foi parar o orçamento participativo de Porto Alegre? Só papo furado. Precisamos de mais democracia, a democracia que faça seu projeto, e não de um projeto a ser colocado para virar objeto de marketing, e depois chegar ao poder e fazer tudo ao contrário.
IHU On-Line - O que significa ter mais democracia?
Giuseppe Cocco – Discutir as verdadeiras reformas para que sejam mais transparentes. Então, defender a Lava Jato como transparência, se apropriar dela para que não seja mero justicialismo; e a própria a esquerda tem que ser a favor dela, não apenas quando a Operação 'pega' o Cunha. Portanto, não tem projeto a não ser aquele que vamos inventando. Agora, dentro disso, é possível dizer que o Brasil vive hoje uma situação na qual se encontram, paradoxalmente, seus problemas históricos: informalidade e pobreza, precariedade e violência. Tudo isso, que antes era apenas o fruto do subdesenvolvimento, agora vem pelo desenvolvimento. As pessoas ficam falando do pré-sal como a nova riqueza, mas o Uber tem uma capitalização não sei quantas vezes maior que a Petrobras, como o Airbnb e o Facebook. E chega o Uber, o que fazemos? Defenderemos o táxi como liberdade ou vamos fazer o que diante disso? Hoje existe a possibilidade de compartilhar, de cooperar, e o capital está na frente disso, mas o pessoal fica lá defendendo a CLT, que é da década de 1930. É por isso que o capital ganha.
O que junho de 2013 nos mostrou? Que uma multidão foi, em todas as cidades do Brasil, à rua, pedindo transporte de qualidade e barato. O que disse a multidão? A multidão disse que precisa de outros direitos, e que a metrópole é o novo espaço de produção, no qual todo mundo tem que poder circular, e circular gratuitamente, e quanto mais circular, melhor. Mostraram que apesar de não estarem todos em uma universidade ou em uma fábrica, eram capazes de se mobilizar como multidão, porque do mesmo jeito que cooperam para fazer o Uber, cooperam para fazer a manifestação. Para fazer transporte de qualidade é preciso quebrar a máfia que nos governa, que é esse pacto oligárquico entre empresas e concessionárias de transporte público e sistema de partidos.
IHU On-Line - O Uber é um exemplo de como o capital entende e age para garantir essa demanda que emerge da população em relação ao transporte, por exemplo?
Giuseppe Cocco – Parece que sim. Uber, Facebook, Airbnb. O capital está muito à frente em relação à esquerda, mas não está à frente da população. Para fazer o Uber é preciso, a priori, de alguém que tenha um carro, educação, a capacidade de usar telefone, então, precisa de um comum, que é a metrópole, caso contrário, não tem Uber. Então, o Uber é mais inteligente, por isso ganha um monte de dinheiro, porque passa a explorar esse comum; o Uber aparece com essa liberdade. Ao passo que para virar um taxista a pessoa precisa virar escravo de uma concessão ou terá que pagar caríssimo por uma permissão — quando ela é liberada — ou terá que votar para um deputado, que poderá liberar uma concessão; o Uber não. E a esquerda está fazendo o quê? Estádio, megabarragem, dinheiro para a indústria do automóvel etc.
IHU On-Line - É possível implementar uma renda universal num país como o Brasil? De onde se tiraria o subsídio para pagar a renda universal?
Giuseppe Cocco – A pessoa teria uma renda universal e depois trabalharia. Eventualmente se faria uma implementação a partir dos mais pobres, usando os elementos que já existem na assistência social na Previdência e no Programa Bolsa Família. O Programa Bolsa Família veio da unificação de um momento de microssistemas que existiam antes, de dispositivos separados e envolve um universo de 50 ou 60 milhões de pessoas, isto é, um quarto da população. Agora, quanto pesa o orçamento do Bolsa Família no PIB? 0,5%, nada. Quanto pesam os juros da dívida? 9%. Quanto pesa o orçamento da Previdência? É uma disputa sobre o orçamento.
IHU On-Line – Que percentual do PIB deveria ser destinado à renda universal?
Giuseppe Cocco – Não sei, esse valor teria que ser calculado. O orçamento para a renda universal precisaria ser elaborado. Se conseguirmos fazer essa equação entre o 0,5% do Bolsa Família, mais o 1% da transferência contínua — que é aquele outro dispositivo para o pessoal que está com problemas de saúde —, mais o subsídio à Previdência particular ou pública e diminuir os juros, é possível liberar uma grande quantidade de dinheiro.
IHU On-Line – O senhor apostava no Podemos? Como vê a derrota dele na Espanha?
Giuseppe Cocco – Não apostava, mas achei importante e que poderíamos avançar. Em 2014 existia o Podemos na Espanha e pensei que poderíamos usar esse modelo no Brasil. O Podemos foi uma boa sacada para o 15M, mas também está em uma série de impasses, na medida em que não conseguiu se separar da herança da esquerda e entrou em uma espiral: tem essa relação não resolvida com os governos progressistas — como é o caso da Venezuela —, é contra a casta na Espanha e a favor da casta no Brasil. Acredito que nas últimas eleições eles erraram bastante. É um pouco como a REDE no Brasil, que poderia ter sido uma solução.
O Podemos faz parte de uma experiência nova, mas não sei se vai continuar. O Podemos acabou? Não sei. O Podemos tem componentes diferentes. Nas municipais, por exemplo, o Podemos ganhou só porque deixou se atravessar pelo 15M no municipalismo, em particular na experiência de Ada Colau, em Barcelona, que é inovadora, ligada ao movimento.
O Podemos faz uma brincadeira muito inspirada na América Latina, nas teorias do Laclau, na problemática da hegemonia e do significante vazio, que é essa coisa da análise do peronismo. Isso é parte do fracasso na América do Sul, do kirchnerismo, de Correa, Chávez, e do lulismo. Estamos em uma sociedade onde todo mundo pode participar, se coordenar, compartilhar para fazer o Uber, para fazer hotelaria, cultura e para fazer política. Portanto, a política de amanhã é a que nascerá dentro disso, talvez sem partido ou com um partido que se reúna só para as eleições, não sei.
IHU On-Line - Que autores da esquerda poderiam ser retomados neste momento para compreendermos a esquerda, pesar outras possibilidades?
Giuseppe Cocco – Nenhum. Precisamos atravessar o deserto e inventar novas coisas.
IHU On-Line – E autores novos?
Giuseppe Cocco – Para tentar avançar, existem alguns textos de Antropologia que são interessantes, que tentam passar no meio dessa alternativa entre direita e esquerda, modernidade e antimodernidade, mas que são limitados. Temos que retomar o projeto do Foucault de análise do neoliberalismo, especialmente aqueles dois cursos publicados postumamente — Nascimento da Biopolítica e Território, Segurança e População —, temos que retomar de maneira radical essa proposta do Foucault. E, em seguida, acredito que temos que trabalhar muito a análise da moeda, análise das finanças, teoria monetária, teoria financeira — porque na esquerda o debate econômico é de uma miséria abissal — e a relação dela com a produção de imagens e a produção de discursos.
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A preocupação com a verdade, com a democracia e com os pobres - Desafio para uma esquerda ética e não nominalista. Entrevista especial com Giuseppe Cocco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU