09 Setembro 2016
Kleber Mendonça abre, em praça pública, a estrutura apodrecida de um certo Brasil. É filme de resistência e mudança — uma tempestade que a Casa Grande fez de tudo para evitar, mas está prestes a cair
A reportagem é de Cristina Martins Tavelin, publicada por Outras Palavras, 06-09-2016.
Em algumas passagens da História, a escuridão é tão densa que mal se pode imaginar uma brecha por onde entre luz. Apenas quando a estrutura já podre apresenta, na superfície, os sinais da destruição plantada há tempos, é que finalmente o primeiro raio atravessa o presente para ressignificar o passado e apontar o futuro.
Com Aquarius, Kleber Mendonça Filho vem com um machado para abrir, em praça pública, a estrutura já oca de uma certa História do Brasil. Não à toa, o final desse filme leva o espectador a uma espécie de êxtase inominável. Algumas obras antecedem novas conjunturas que ainda não podem ser traduzidas em palavras, e Aquarius carrega consigo essa marca do que está por vir.
Construído em três capítulos, trata de uma memória palpável e viva. O início, no ano de 1980, traz as cores, as dores e um resto de esperança herdada dos anos 70. Família reunida, crianças brincando no quintal e a jovem protagonista Clara que acaba de atravessar um câncer constroem esse primeiro momento — com uma fotografia notável –, o qual servirá de base e contraste para as passagens seguintes.
Anos depois, no mesmo apartamento do prédio Aquarius, a jornalista Clara explica o porquê gosta de colecionar discos de vinil: eles contam uma história, assim como as fotografias tão táteis e presentes durante o longa. Também aí se inicia a insistência para a venda do apartamento por parte dos emissários de uma construtora.
Quando percebe, Clara já está imersa em uma disputa diária com esse inimigo sem rosto, o qual instala-se no apartamento de cima, dá festas, passa a rondar a sua vida e falar com os seus filhos. Assim como as sociedades anônimas não têm uma identidade específica no fluxo do capital, o inimigo de Clara não tem corpo ou face.
A questão do corpo se apresenta de forma mais evidente em outra passagem. A rejeição sofrida pelo parceiro após o baile reduz à insignificância a história da personagem, onde as cicatrizes são vistas apenas como indícios de uma ausência. Sobre o corpo de Clara, vale ainda ressaltar outro detalhe: a forma como usufrui do prazer do sexo.
Ao analisar a moral cristã em História da Sexualidade, Foucault aponta seu cerne na ideia de que “a carne é a subjetividade do corpo” e precisa ser controlada no caminho para a salvação. O poder pastoral se realizou por meio dessa subjetividade. Clara vai em oposição a essa moral, à obediência enraizada que define até hoje a política como uma relação de submissão.
Um dos emissários da construtora, Diego — formado nos Estados Unidos, racista, meritocrático até o osso — está inserido nos negócios por ser neto de uma pessoa influente, o que traduz muito bem a forma como as relações de poder se dão no Brasil. Esse mesmo tema perpassa O Som ao Redor, mas agora com um toque possivelmente mais “moderno” ao ter uma grande empresa por trás. Impossível não lembrar do episódio de Fausto, em Goethe, quando a modernidade esmaga o casal de idosos sem nenhum remorso ao passar por cima de sua casa.
De O Som ao Redor, Aquarius também traz uma Recife em transformação, onde a nova estética se assenta às custas da memória. A cicatriz urbana se instala em edifícios de alto padrão e condomínios cercados por medo.
Os insetos, os emissários da construtora, a curiosidade e a angústia causadas pelo enigma dos apartamentos de cima: pontos que remetem brevemente à tensão das obras de Kafka, onde o protagonista nem ao menos consegue entender o que se passa, mas entra no fluxo dos acontecimentos. Também de Kafka pode-se trazer a ênfase nos gestos, em mãos que tateiam o nada ou deslizam junto ao véu fantasmagórico despencando do edifício.
De todos os méritos de Aquarius, talvez o maior seja o de não se submeter a nada. Pelo contrário, uma mulher forte — um devir feminino — encara essa rede indefinida para manter a própria sanidade. A única alternativa é o enfrentamento, pois algumas estruturas não têm mais salvação. Assim fica mais simples entender o êxtase coletivo ao final da exibição. Aquarius é um filme de resistência e de mudança — uma tempestade que a Casa Grande fez de tudo para evitar, mas que está prestes a cair.
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Aquarius, uma fresta para o futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU