03 Setembro 2016
Longa de Kleber Mendonça, que estreia no país nesta quinta, desperta uma avalanche de sensações.
Jamais pense em Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, como um feel good movie – termo que se usa em inglês para designar comédias românticas e outros representantes de gêneros cinematográficos que entregam ao espectador uma sensação imediata de bem-estar. O filme do cineasta pernambucano, que estreia nesta em salas de todo o país, desperta na verdade uma avalanche de sensações, e contraditórias – como bem prometia sua polêmica trajetória, desde o lançamento no Festival de Cinema de Cannes em maio deste ano. Muitas delas alegram, são leves e positivas, outras entristecem, cruas e duras – e todas, sem exceção, põem o cidadão brasileiro atento aos rumos do país para pensar. Que vantagem maior um filme pode ter?
O comentário é de Camila Moraes, publicado por El País, 02-09-2016.
Sonia Braga, a estrela brasileira que se fez artista internacional, extrapolando as novelas televisivas pelas quais ficou famosa no país, interpreta Clara, uma ex-crítica de música com mais de 60 anos que luta para permanecer no apartamento da família onde criou os três filhos. O pequeno prédio onde ele fica, na orla do Recife, corre o risco de ser demolido por uma construtora que convenceu todos os moradores (à exceção de Clara) de esvaziá-lo para que ali seja erguido um moderno edifício de muitos andares, como tantos outros que infestam a praia de Boa Viagem. O combate é familiar ao Brasil real, e um ícone dele no Recife é o Ocupe Estelita, movimento que se opõe à especulação imobiliária na capital pernambucana.
Eis a parte pesada. Quase sozinha, Clara resiste a uma empresa que representa muito mais do que seus próprios interesses, encarnando as ambições de uma classe média conservadora e alienada. O aprendizado para isso ela tirou da vida: tendo resistindo a um câncer de mama na juventude, se reconhece mortal, mas não teme a luta. É uma mulher tão firme quanto vulnerável, que sabe – verdadeira, empática, rodeada de livros, vinis e outros objetos de afeto que lhe propiciam bons momentos e inspiram recordações – que defender seu espaço significa defender algo ainda maior, que é o tempo (além do tempo presente, as memórias).
Mas, assim como a especulação imobiliária não é tudo em Aquarius – carregado de muitas outras críticas e denúncias pertinentes –, o filme se faz também de injeções de (boa) energia. Sua história traduz com naturalidade a felicidade comumente (e não à toa) relacionada ao povo brasileiro. São leves, e até inspiradoras, passagens como a do aniversário em família de 70 anos da tia Lúcia, em que o legado de personalidades femininas fortes é simbolicamente passado adiante; o baile onde Clara se diverte com as amigas e, cheia de desejo sexual, flerta com um dos homens da festa; os momentos de afeto dela com o sobrinho e sua nova namorada; e também as brincadeiras com o neto, fartas de risadas.
Kleber Mendonça, que ganhou fama mundial com seu primeiro longa-metragem de ficção, o elogiado O som ao redor (2012), e tem no currículo uma série de curtas premiados, mostra mais uma vez que sabe por onde caminha. Seus filmes conversam entre si e crescem com pequenas e grandes escolhas que compõem o estilo do diretor – um dos nomes mais celebrados do cinema brasileiro atualmente.
No caso de Aquarius, a marca de Kleber que mais se destaca é a da música. Como já se via em O som ao redor, o diretor e roteirista conta sua história ao ouvido, elevando muito o recurso da trilha sonora. Desde a abertura, marcada por uma bela sequência de imagens antigas da orla do Recife editadas ao som de Hoje, de Taiguara, a narrativa se constrói apoiada nos sons e nas vozes de Maria Bethânia, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Paulinho da Viola e até de Freddie Mercury, entre outros artistas que cantam para comunicar, além dos diálogos, o que os personagens querem realmente dizer.
Escolher Sonia Braga para viver Clara é sem dúvida outro grande trunfo de Kleber Mendonça em Aquarius. Com seus longos cabelos, ora presos, ora soltos, cristalizados na mente de todos já antes de Gabriela, cravo e canela, a atriz empresta à história uma forte e saudável carga de sensualidade.
Desta vez, porém, funciona ao contrário: a musa brasileira que teve que trabalhar fora do país para liberar-se da eterna imagem de símbolo sexual faz aqui a personagem que deseja, não a mera desejada. Ainda assim, em uma atuação espetacular e corajosa, que foi forte candidata à Palma de Ouro em Cannes em maio, Sonia encara cenas de nudez e sexo com fluidez, como aquela em que Clara transa com um michê no sofá da sua casa. Aos 66 anos de idade, como aos 18 – quando participou de uma montagem brasileira da peça Hair, causando escândalo ao aparecer nua.
A passagem do michê, junto com outras duas referências sexuais explícitas, serviu para que o Governo brasileiro classificasse o longa-metragem como impróprio para menores de 18 anos – o que restringe sua circulação no país. A censura surpreendeu a equipe do filme, que suspeita que seu verdadeiro incômodo esteja fora da tela e venha, na verdade, do protesto da equipe, que exibiu cartazes contrários ao impeachment de Dilma Rousseff no tapete vermelho de Cannes. Mas também lhe trouxe vantagens: Aquarius virou um dos filmes mais falados do ano no Brasil, e – se for por seu próprio mérito, e não pela trajetória politizada – tem chances reais de se tornar o candidato brasileiro à disputa por um Oscar estrangeiro em 2017.
Se isso acontecer, expandirá para o mundo uma missão que cumpre muito bem: mostrar as mazelas e alegrias do Brasil como ele é hoje. Difícil pensar num protesto mais efetivo do que esse.
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