09 Agosto 2016
"O descontentamento deles para com a descrição de Francisco da violência cometida contra o Pe. Jacques Hamel como sendo “absurda”, o não emprego do termo “martírio” quando o pontífice se referiu à morte de Hamel e a indignação dessas pessoas como atrevimento do papa em sugerir que havia um fundamentalismo e uma violência dentro do cristianismo estão presentes em todos os meios de comunicação social. Francisco, felizmente, vê mais adiante. Ele tem uma estratégia de seis passos para dar à provocação do Estado Islâmico. Esta estratégia é bem pensada e está sendo eficaz – mesmo que alguns católicos de destaque a odeiem", escreve Austen Ivereigh, doutor em filosofia pela Universidade de Oxford, em artigo publicado por Crux, 04-08-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Radicais muçulmanos como o Estado Islâmico querem provocar uma guerra de religiões levando líderes ocidentais a posturas cada vez mais combativas e defensivas, razão pela qual a recusa do Papa Francisco de entrar no jogo deles deve ser bem frustrante.
Claro está que o mundo islâmico se encontra em uma grande crise no tocante à relação entre religião e política, uma crise comparável, a seu modo, às guerras europeias de religião do século XVII, que acabaram sendo resolvidas pelo iluminismo secular.
O islamismo é uma resposta brutal para a questão de como o Islã se relaciona com o Estado moderno, questão que emergiu das cinzas da violência e da guerra. O grupo é uma tentativa de conciliar a lei islâmica pré-moderna com o Estado-nação contemporâneo promovendo uma guerra contra a secularização – o que para o Estado Islâmico significa nada menos do que a sua teocracia sangrenta.
Isso o torna um inimigo do Ocidente e dos cristãos em todos os lugares, principalmente no Oriente Médio. Mas é também um inimigo da maioria no mundo islâmico: ele considera o xiismo uma inovação, e inovar no Alcorão é negar a sua perfeição inicial.
O Estado Islâmico está em guerra com todos os países muçulmanos, pois todos estes têm buscado chegar a um acordo com a modernidade através de uma mediação da – ou atenuando a – lei islâmica.
Essa crise existencial com o Islã irá se desenrolar por muito tempo ainda, e há pouca coisa que se possa fazer para evitá-la. Com o passar do tempo, o radicalismo do Estado Islâmico provará a sua própria ruína, e irá entrar em colapso com o peso de suas próprias contradições.
Mas aquilo sobre o qual temos o controle é a resposta ocidental à provocação do Estado Islâmico. E a maneira como iremos reagir vai ou apressar a sua queda ou alimentar o seu crescimento.
Há aqui dois pontos essenciais a compreender:
Em primeiro lugar, o Estado Islâmico poderia recrutar adolescentes com distúrbios mentais advindos das banlieus [termo francês para se referir a bairros populares na França], mas o grupo estaria longe de ser um bando de psicopatas. O islamismo é uma ideologia violenta derivada de um fundamentalismo islâmico purista. É uma versão do Islã que difere radicalmente do – e é rejeitado pela – maioria do mundo muçulmano.
Em segundo lugar, uma guerra com o cristianismo é central para a sua visão de mundo. O Estado Islâmico aguarda o exército de “Roma”, cuja derrota em Dabiq, na Síria, irá dar início à contagem regressiva para o apocalipse.
Para precipitá-lo, eles estão determinados a levar esta guerra para além do Oriente Médio, trazendo-a para dentro dos nossos aeroportos e salas de concerto – e mesmo para dentro de nossas igrejas. A violência do grupo é estratégica e possui um objetivo: difundir o terror, não pelo terror em si, mas para produzir uma reação, uma reação que lhes confirmará a própria visão de mundo que possuem: a visão de que as sociedades seculares estão podres e degeneradas, que a religião cristã é falsa e idólatra.
Para demonstrar a verdade dessa narrativa, eles precisam de uma guerra – uma guerra religiosa, cada lado com os seus exércitos e mártires – que se inicia ao levar a luta para o ponto fraco do Ocidente a fim de difundir o terror para provocar uma reação, uma reação que polariza a sociedade.
O Estado Islâmico crê que, com uma provocação suficiente, os “cristãos” – os ocidentais – irão se virar contra os muçulmanos, que os muçulmanos irão procurar o Estado Islâmico para defendê-los e, por fim, que haverá um confronto entre os dois.
Até agora, eles estão tendo sucesso. A ascensão de novos partidos nacionalistas na Europa e, é claro, de Donald Trump é exatamente o que o script prevê – juntamente com o aumento no número e na ferocidade de ataques a muçulmanos.
Mais ataques, mais terror, mais reação; para o Estado Islâmico, o caminho adiante está claro.
Alguns analistas católicos – e inclusive um cardeal – têm feito a sua parte, sustentando que, com efeito, este Estado Islâmico é o verdadeiro rosto do Islã e que não existe uma distinção real. (De modo revelador, um crítico ataca o Papa Francisco por dizer, no avião de volta de Cracóvia, que “não existe um tal fenômeno de violência islâmica”, o que, caso tivesse dito haver, seria bem surpreendente. De fato, o que o papa rejeitava era o termo “violência islâmica”.)
Tendo aceito a narrativa radical sobre o Islã como autoevidente, está-se a um pequeno passo de se afirmar que o “Islã” deseja tomar conta do mundo, que é intrinsecamente violento e que está em guerra com o cristianismo.
Os contrajihadistas católicos esperam do papa uma retórica que coincida com o momento, não um politicamente correto piegas.
O descontentamento deles para com a descrição de Francisco da violência cometida contra o Pe. Jacques Hamel como sendo “absurda”, o não emprego do termo “martírio” quando o pontífice se referiu à morte de Hamel e a indignação dessas pessoas como atrevimento do papa em sugerir que havia um fundamentalismo e uma violência dentro do cristianismo estão presentes em todos os meios de comunicação social.
Mas Francisco, felizmente, vê mais adiante. Ele tem uma estratégia de seis passos para dar à provocação do Estado Islâmico. Esta estratégia é bem pensada e está sendo eficaz – mesmo que alguns católicos de destaque a odeiem.
O primeiro passo é pôr cada morte no contexto mais amplo das demais, para evitar que alguma vítima se torne o centro de uma indignação moral. Isso se fez particularmente necessário no caso do Pe. Hamel, pois este era um sacerdote bondoso, de idade avançada, que morreu de uma maneira provocativamente horrível.
É por isso que Francisco nunca empregou a palavra “mártir” para descrevê-lo. Se assim o fizesse, neste clima de medo e terror, ele transformaria esta morte em uma arma e inflamaria as manchetes.
“Este santo sacerdote, que foi morto mesmo no momento em que oferecia a oração por toda a Igreja, é um; mas quantos cristãos, quantos inocentes, quantas crianças (…)?”, perguntou-se o papa no voo para Cracóvia.
Segundo, ele insiste na fraternidade e na paz como a única reposta cristã autêntica.
“Não queremos vencer o ódio com mais ódio, vencer a violência com mais violência, vencer o terror com mais terror”, contou o papa aos peregrinos na Jornada Mundial da Juventude acrescentando que a resposta da Igreja a um “mundo em guerra” são a fraternidade e a família.
A caminho da vigília, o papa venerou as relíquias de duas vítimas do terrorismo, pedindo a Deus que cure e console os que sofrem e que toque os corações dos terroristas para que “reconheçam a maldade das suas ações”.
Terceiro, diante do clamor para que os políticos fechem as fronteiras, Francisco continuou a insistir na importância de manter as portas abertas aos refugiados.
Daí a sua oração em Cracóvia para que Deus dê às famílias das vítimas “a força e a coragem de continuar a ser irmãos e irmãs, uns dos outros, especialmente dos imigrantes, testemunhando vosso amor com a própria vida”.
Quarto, confrontado com a narrativa feita pelo Estado Islâmico do cristianismo versus o Islã, a estratégia do papa é polarizar de uma forma diferente: a religião e a paz de um lado, o fundamentalismo violento e a falsa religião de outro.
Isto ficou bem demonstrado na terça-feira desta semana, quando 100 muçulmanos, juntamente com líderes de diferentes credos religiosos, apareceram no funeral de Hamel.
Próximo do arcebispo de Rouen no altar estava um retrato icônico do Pe. Hamel, uma auréola sobre sua cabeça, quadro que havia sido pintado anteriormente e apresentado ao arcebispo por um fiel muçulmano da cidade onde o sacerdote foi assassinado.
Daí Francisco dizer que estamos numa guerra – uma guerra de interesses e potências rivais –, mas insistindo que a verdadeira religião não está envolvida. “Todas as religiões querem paz”, disse no avião para Cracóvia; “são os outros que querem guerra”.
Daí também a sua observação no voo de volta de Cracóvia: se a religião (verdadeira) procura a paz, a ideia de violência “islâmica” é incoerente. Portanto – ele não precisou dizer –, o que o Estado Islâmico representa não é o Islã nem mesmo uma religião, ainda que esteja revestido como se fosse.
Isso significa igualmente rejeitar a afirmação de que a violência do ISIS possui um poder ou um significado além de si mesmo.
Para os radicais, a violência é sagrada, sacrificial, estando divinamente sancionada; ela estaria precipitando o Armagedom e o triunfo celeste do Islã.
Portanto quando Francisco declara que esta violência, além de ser mal e detestável, é “sem sentido”, como descreveu o massacre em Nice, ou “absurda”, como disse sobre a violência que tirou a vida de Hamel, ele está pegando de surpresa o Estado Islâmico de um modo significativo: a principal autoridade religiosa do mundo negou-lhes a legitimidade de uma justificativa religiosa.
Eis a sua estratégia, e que está também verdadeiramente demonstrando o que é a verdadeira religião.
O próprio Deus foi uma vítima inocente de um sacrifício sancionado religiosa e politicamente; a Ressureição destruiu qualquer ideia de que Deus seja violento.
O poder de Deus, então, encontra-se não na violência, e sim no amor e na fraternidade. Com a sombra do radicalismo islâmico sobre nós, esta não é mais uma ideia, e sim – como disse um dos bispos franceses em Cracóvia – uma escolha difícil: Acreditamos no poder de Deus, ou no mito do divino como uma deidade tribal vingativa?
Quinto, confrontado com a tentação de os cristãos verem os muçulmanos como fundamentalistas violentos e eles próprios como pessoas racionais promotoras de paz e amor, Francisco insiste que os cristãos também estão propensos ao fundamentalismo e à violência.
Religioso bastante experiente no discernimento dos espíritos, Francisco possui uma consciência aguçada das obras do diabo, o grande divisor, e dos modos sutis que o mal pode persuadir “boas” pessoas a se colocarem contra as “más” pessoas.
Quaisquer que sejam as fraquezas do Islã em relação à violência, os muçulmanos – como disse o papa no avião – desejam a paz e o encontro, enquanto os cristãos também estão propensos (seja hoje ou no passado) ao fundamentalismo e à violência religiosamente sancionada.
Não se trata de pacifismo: precisamos de polícia e serviços de segurança e, caso não criarmos mais vítimas inocentes, precisamos estripar o Islã radical bombardeando-o. Porém os jihadistas não serão derrotados pela guerra, e acreditar que poderão sê-lo é, novamente, aceitar a sua narrativa.
Como todos os projetos do mal, o Estado islâmico acabará por entrar em colapso a partir de suas próprias contradições internas. Enquanto isso, a batalha será travada no coração humano.
A Igreja pode ajudar o Ocidente absorvendo a violência, e não provocando-a, sendo paciente no medo e na insegurança e aceitando que, nesse ínterim, mais pessoas vão morrer.
Isso não é o que os nossos políticos nos dirão, mas todos sabemos que é verdade.
Visto a partir de uma perspectiva cristã, as mortes dos que, como Hamel, são pacifistas inocentes não são sem sentido, mas algo poderoso.
“Será que o mundo ainda pode esperar a cadeia do amor que irá substituir a cadeia do ódio?”, perguntou-se Dom Dominique Lebrun em sua homilia. “Será que iremos precisar de outros massacres para nos converter ao amor e à justiça que edifica o amor?”
Em sexto lugar, a estratégia de Francisco não é render-se ao medo desistindo dos nossos espaços e da nossa identidade.
Confrontado com a ameaça do Estado Islâmico contra o Vaticano em dezembro passado, ele se recusou a vestir roupas a prova de bala e disse que não iríamos pôr armaduras protetoras em nossas igrejas.
Na terça-feira em Rouen, Lebrun convidou as pessoas a prestarem homenagem a Hamel visitando uma igreja nos próximos dias “para manifestar a sua recusa de ver contaminado um lugar sagrado, para reafirmar que a violência não vai tomar o controle de seu coração e para pedir pela graça de Deus”.
É uma ação que cada um de nós pode tomar; e toda a ação que fizermos desse tipo traz para mais perto a derrota inevitável dos jihadistas.
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Francisco se recusa a entrar no jogo de radicais islâmicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU