19 Julho 2016
"A Amoris laetitia garante a continuidade à doutrina mediante uma oportuna tradução e conversão, enquanto a posição do cardeal Caffarra – que ele afirma ser clara e límpida – gera um contínuo curto-circuito entre doutrina eclesial, experiência dos sujeitos e mediação eclesial."
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 16-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No debate em torno da Amoris laetitia, devemos honrar os argumentos mais fortes e convincentes. No diálogo à distância entre dois cardeais, eu tento pôr à prova os argumentos do cardeal Caffarra.
Uma premissa necessária. Eu conheço pessoalmente o cardeal Caffarra, a quem encontrei duas vezes, primeiro quando era bispo de Ferrara e, depois, como arcebispo de Bolonha. E, nas duas ocasiões, sempre notei a afabilidade e a fineza do modo com que ela se relacionava com as pessoas individuais. Ainda mais me surpreende a veemência com que ele critica o papa e o cardeal Schönborn quando explica, com elegância e fineza, as boas razões da Amoris laetitia. A ponto de chegar a lhes pedir, até mesmo, que deem marcha à ré e desmintam a si mesmos.
Gostaria de expôr os aspectos mais problemáticos desse modo de ler a Amoris laetitia em cinco pontos:
1. Uma hermenêutica da descontinuidade
A primeira coisa que me surpreende é o fato de que o cardeal Caffarra levanta abertamente a hipótese de uma "descontinuidade insuportável" nas teses magisteriais expressadas pela Amoris laetitia. Ele lê a história da doutrina matrimonial como se, por 1.900 anos, se tivesse desenvolvido uma doutrina coerente e monolítica, que encontraria a sua expressão completa nos textos que ele cita: Veritatis splendor, Familiaris consortio e Sacramentum caritatis. Enquanto a Amoris laetitia seria uma ruptura inaceitável, porque romperia o princípio "revelado" do exercício legítimo da sexualidade somente dentro do matrimônio sacramental.
Mas o cardeal é forçado a construir esse "teorema" prescindindo da história, que nos relata, ao contrário, fatos bem diferentes. A estrutura doutrinal das últimas décadas é o fruto de uma exasperação do tema, que nasce apenas em 1852, com Pio IX, e torna-se a sequência de encíclicas que, da Arcano Divinae Sapientiae (1880) a Casti connubii (1930), chega, embora através do Vaticano II, à Humanae vitae (1968), com a dura institucionalização do Codex de 1917.
Se a Familiaris consortio certamente pressupõe essa história, no entanto, ela já abre ao novo, do qual admite a relevância, sem assumi-lo completamente. Desse ponto de vista, a Amoris laetitia deve ser lida em continuidade com a Familiaris consortio, na tentativa de superar plenamente a estrutura do século XIX da doutrina matrimonial, que já naquele texto tinha começado a vacilar.
Caffarra utiliza uma hermenêutica da descontinuidade muito perigosa, porque põe em dúvida a legitimidade da evolução da doutrina, pedindo até que Francisco retire o documento nas suas passagens mais inovadoras. Isso me parece contradizer a intenção – que Caffarra certamente não quer negar – de garantir a continuidade com a grande tradição eclesial e não só com a sua versão apologética e enrijecida do século XIX.
2. Uma rigidez maximalista em moral
O segundo aspecto sobre o qual eu levanto as minhas perplexidades refere-se ao modo de considerar o "caráter intrínseco do mal". Aqui parece-me que o discurso desliza para um plano de abstração tão acentuado que todo circunstancial é julgado de modo suspeita e com desconfiança. Não surpreende que Schönborn é acusado de uma suspeita condescendência com o mal. Se algo é intrinsecamente mau, é preciso evitá-lo a todo o custo.
Essa abordagem, no entanto, parece ser apenas "pedagógica" e incapaz de reconhecer os fatos. Tudo se torna tarefa, e os fatos não têm qualquer relevância. Essa abordagem, por si só muito clara, no entanto, é desprovida de relação com a realidade. Ela impõe à realidade um modelo idealizado. Mas, como em toda idealização, ela une à grande ideia cristã do matrimônio a agressão ao outro. O maximalismo é inevitavelmente agressivo, até mesmo malgré soi.
3. Uma falta de articulação entre plano moral e plano jurídico
Um dos pontos que criam maiores dificuldades nas palavras do cardeal é o fato de ele pressupor como evidente e descontada uma relação pré-moderna entre moral e direito. Que uma ação seja "intrinsecamente um mal" – por exemplo, o homicídio, o furto, o adultério – não implica imediatamente que não se deva levar em conta as "circunstâncias" em que a ação é cometida, assim como o tempo em que tal ação assume relevância.
Eu considero como um fato muito estranho que um homem de cultura jurídica como Caffarra não leve em conta como a correlação entre gravidade do crime e tamanho da sanção nunca pode ser abstraída da história concreta dos fatos. Considere-se como a obstinação em avaliar o "adultério" como fato intrinsecamente malvado impede que o cardeal julgue adequadamente como a condição de adultério na sociedade fechada era muito diferente da de uma sociedade aberta. O que é intrinsecamente mau continua sendo mau, sem dúvida. Mas muda a sanção, e muda a relevância do tempo.
Como bem sublinhou outro bispo – ainda não cardeal – como J.-P. Vesco, na nossa sociedade, o adultério se transformou de "crime permanente" a "crime instantâneo". Essa diferença, que me parece escapar completamente de Caffarra, não depende, em primeiro lugar, de categorias teológicas, mas das formas sociológicas, psicológicas e culturais dos homens e das mulheres de hoje. Mas isso, no matrimônio, tem uma relevância original, que o maximalismo teológico do século passado não conseguia mais reconhecer. Por outro lado, isso está claro para os teólogos medievais, que Schönborn cita muito mais do que Caffarra.
4. Uma dependência de categorias superadas e de modelos jurídicos datados
A tradução que a sociedade fechada tradicional oferecia do matrimônio podia tranquilamente sobrepor moral e direito, e pensar de modo maximalista em um plano como no outro. A estratégia fundamental dessa leitura apologética, inaugurada em meados do século XIX, foi a "ontologização" do matrimônio, ou seja, a sua transcrição em categorias metafísicas e racionalistas.
Mas essa escolha não levou em conta que o sistema eclesial não pode suportar por muito tempo um excesso de ontologismo sem gerar uma reação incontrolável no plano da nulidade. De fato, quanto mais insistimos na "ontologia do vínculo", mais somos forçados a tematizar a "nulidade" como única saída diante dos problemas.
Por um lado, a ontologia clássica se transforma em ontologismo apologético, mas, por outro, a teoria dos capítulos de nulidade facilmente se torna uma forma de "niilismo canônico".
Caffarra me parece ser um dos poucos pastores a repetir com grande lucidez o modelo do século XIX de resposta eclesial ao desafio do mundo moderno. Mas não percebe que a Amoris laetitia pretende sair justamente desse modelo redutivo de consideração da experiência à luz do Evangelho, embora não pretenda sair, de fato, da grande tradição eclesial.
Ao contrário, a Amoris laetitia garante a continuidade à doutrina mediante uma oportuna tradução e conversão, enquanto a posição de Caffarra – que ele afirma ser clara e límpida – gera um contínuo curto-circuito entre doutrina eclesial, experiência dos sujeitos e mediação eclesial.
Caffarra parte da hipótese de que a Amoris laetitia traz confusão a uma condição substancialmente clara, enquanto eu acredito que a Amoris laetitia traz um início de esclarecimento em uma situação que a Familiaris consortio, começando a alterar a lógica do século XIX, tinha tornado muito confusa e ambígua.
5. Adultério pollakós léghetai. Ontologismo dogmático e niilismo canônico se implicam mutuamente
O cardeal Caffarra, que também é o fundador do Instituto João Paulo II, onde matrimônio e família deveriam ser estudados a fundo, parece não querer ouvir outra voz senão a de João Paulo II. Assim também fazem, em pleno acordo com o fundador, os principais professores atuais desse instituto, todos unidos nessa surpreendente hermenêutica da descontinuidade diante da Amoris laetitia.
Surpreenderia muito quem convidasse Caffarra – ou um dos professores do instituto mencionado – a apresentar oficialmente o texto da Amoris laetitia. Quem rejeita o texto no seu coração pulsante – ou seja, na saída do modelo do século XIX de doutrina do matrimônio – certamente não pode apresentá-lo oficialmente ao clero, se não corroborando aquela "hermenêutica da ruptura" que, até recentemente, esses mesmos professores apresentavam como o mal pior.
Confuso, aqui, não é o texto da Amoris laetitia, mas o olhar de quem não capta o sentido epocal dessa passagem de conversão eclesial e pretende usar o Catecismo da Igreja Católica como um escudo contra a conversão de que a Igreja precisa.
Eu acredito que essa reação coloca uma questão decisiva: a descontinuidade e a ruptura não são as promovidas pela Amoris laetitia, mas as que brotam da pretensão segundo a qual, a partir da fundação do Instituto João Paulo II em diante, e até o apocalipse, alguém possa monopolizar a teologia do matrimônio, forçando-a em uma visão unilateral, clerical, apologética e maximalista da tradição.
Eu acredito que o cardeal Caffarra, com grande clareza, evidenciou os limites dessa breve tradição maximalista, com aspectos de fundamentalismo, da qual a Amoris laetitia soube tomar a justa distância. É natural e compreensível que Caffarra e sucessores não estão contentes com isso. No entanto, o fato de eles pretenderem ditar a Schönborn e a Francisco a "agenda matrimonial" parece ser no mínimo um excesso de zelo, que beira perigosamente uma falta de senso de limite e que, às vezes, pode chegar até a uma espécie de obscuro desespero sobre o papel que o Espírito Santo desempenha na vida da Igreja.
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Descobrindo a "Amoris laetitia": por que eu discordo do cardeal Caffarra e concordo com o cardeal Schönborn. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU