14 Julho 2016
O cacique Geraldo Krieixi Munduruku perde noites de sono com frequência. Aos 58 anos, ele revive o temor que conheceu em 1989, quando ouviu falar pela primeira vez sobre a construção de uma hidrelétrica no rio Tapajós, no Pará. Naquele ano, ele ajudou a afugentar das terras indígenas um pesquisador que coletava dados para o projeto.
A reportagem foi publicada por Correio do Brasil, 13-07-2016.
A relativa calmaria nas aldeias munduruku no médio Tapajós, cercadas pela densa Floresta Amazônica, acabou quando o governo voltou a planejar as obras da Usina Hidrelétrica São Luíz do Tapajós, com início previsto ainda para 2016. Desde então, Krieixi e sua aldeia Daegacapap fazem parte da resistência organizada para evitar o barramento do rio.
– A gente sente que o rio é como a nossa mãe, a floresta também é a nossa mãe. Se barrarem o rio, como a gente vai viver? Pra onde a gente vai? – questiona Krieixi.
Aldeias mundurukus se espalham ao longo do Tapajós. Elas lutam pela demarcação da Terra Índigena Sawré Muybu, de 178 mil hectares, onde foram avistadas pela primeira vez em meados de 1700, segundo relatos.
Embora a Constituição garanta posse permanente das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, assim como o uso exclusivo das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, o espaço habitado por mundurukus nessa parte do Pará ainda não foi reconhecido pelo governo federal.
Com a ameaça de serem inundados pela barragem planejada, a liderança indígena decidiu demarcar a área por conta própria. Na manhã em que recebeu a reportagem da agência alemã de notícias DW, a aldeia Daegacapap instalou uma placa de sinalização que imita o modelo oficial. “A pessoa que passar por aqui vê a placa e vê que a terra é indígena. É para que todos reconheçam que somos os donos da terra”, diz Krieixi.
Pedido de ajuda internacional
A etnia nunca foi consultada sobre a construção de hidrelétricas no rio, que ainda corre livre por cerca de 800 km pelos estados de Mato Grosso, Amazonas e Pará. Segundo o último plano apresentado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a bacia do Tapajós deve ganhar sete usinas hidrelétricas até 2024.
Para sair da invisibilidade, a liderança munduruku pediu ajuda a parceiros de peso, como a ONG ambientalista Greenpeace. “Estamos ao lado dos mundurukus para que o governo brasileiro reconheça a terra deles legalmente, porque estão aqui há gerações. E evitar que represas sejam construídas aqui”, disse à DW Bunny McDiarmid, diretora-executiva da organização, durante visita à região.
Segundo McDiarmid, por se tratar do “tipo de desenvolvimento errado no lugar errado”, a ONG também atua para que empresas fiquem longe do empreendimento. “Algumas dessas empresas, que se autodenominam verdes, como a Siemens, irão sujar a própria imagem se vierem pra cá participar desse projeto. É um projeto desnecessário, destrutivo.”
Batalha das leis
O destino dos munduruku depende de qual decisão vier primeiro de Brasília: a construção da barragem ou a demarcação da terra. A Fundação Nacional do Índio (Funai) já identificou a área como terra de ocupação tradicional desse povo. Atualmente, o processo está em fase do contraditório administrativo, ou seja, momento em que todas as partes podem contestar o resultado e pedir explicações.
Quando todos os questionamentos forem respondidos pela Funai, o processo será encaminhado para o Ministério da Justiça, que faz o reconhecimento legal e pede a demarcação. Não existe uma previsão de quando essa etapa chegue ao fim, informou o órgão.
Por enquanto, as obras de São Luíz do Tapajós, com potência de 8.040 MW, não podem começar, pois o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) suspendeu o licenciamento ambiental e alegou que vai esperar a conclusão da Funai para avaliar se o processo terá continuidade.
O Ministério de Minas e Energia defende que a energia hidrelétrica é importante para o crescimento do país, além de ser a mais barata. “Os empreendimentos hidrelétricos modernos têm como característica o respeito ao meio ambiente e às populações locais, sendo definidos previamente planos de compensação ambiental e social, melhorias para a sociedade local, além do compromisso com protocolos internacionais a serem seguidos na relação com a sociedade”, respondeu o ministério ao questionamento da DW.
Paulo Adário, consultor sênior e um dos fundadores do Greenpeace Brasil, contesta a informação. “Não há mais espaço para energias de fontes fósseis e daquelas que causam impactos ambientais, como destruição de florestas, e vão contra os direitos de populações tradicionais”, justifica a oposição ao projeto de São Luiz do Tapajós. “O Greenpeace tem um estudo feito por cientistas que mostra que toda a demanda de energia necessária para a abastecer o país e atender às demandas de crescimento podem ser supridas por uma combinação de energias renováveis e limpas, tais como eólica, solar, biomassa”, complementa Adário.
A usina viabilizaria um outro plano dos ministérios de Transporte e Agricultura: o de criar uma hidrovia para escoar a produção mato-grossense de grãos, que seria exportada para a Ásia através do canal do Panamá. O Mato Grosso é o maior produtor de soja do país, e a produção é vendida principalmente para a China.
Guerra moderna
A resistência do povo munduruku chamou a antenção internacional. Jeremy Campbell, professor da Roger Willians University, nos Estados Unidos, pesquisa a região do Tapajós desde 1999, quando presenciou violência e intimidação numa época de explosão de grilagem de terras no Pará. Ele se diz impressionado com a postura dos mundurukus.
– Os mundurukus são muito unidos. São guerreiros e estão em guerra porque seu modo de viver está ameaçado. Se a barragem for construída, terão que mudar o jeito de viver, e isso é algo que eles nunca aceitariam – avalia Campbell.
Antônio Dace Munduruku, 28 anos, é um dos que já deixaram a aldeia muitas vezes para ir a Brasília participar dessa “guerra moderna”. “As pessoas que estão nas capitais, nos países avançados, enxergam a Amazônia como um lugar sem ninguém, só uma área verde. E cada um quer ter um pedaço dela. E cada vez o nosso direto está sendo ameaçado”, diz.
Pai de dois filhos, ele diz como quer viver: “eu queria ser índio, viver como um indígena. Se eu não tiver esse direito, a gente vai ficar extinto. A pressão vem de vários lados. Muita gente fala de clima e da importância das florestas. Mas quem garante a preservação somos nós, indígenas”.
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Índios travam ‘guerra moderna’ contra hidrelétricas no rio Tapajós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU