22 Abril 2016
“A incorporação da noção da mística popular no magistério universal através de “A Alegria do Evangelho” tem implicações éticas significativas para os modos de vida e pensamento que vão além da América Latina. Isso não quer dizer que o mundo da vida popular latino-americana transforma-se em um paradigma para as demais culturas. Pelo contrário, concede-se a primazia para o mundo da vida daqueles que são os mais pobres em qualquer sociedade, porque eles são a mediação ética e o lugar para se ler, a partir do ponto de vista de Deus – isto é, à luz do olhar misericordioso divino –, a realidade do mundo contemporâneo, em suas esperanças e imperfeições. Porém essa primazia pode ser compreendida somente quando os cristãos se inserem no mundo popular do povo pobre de suas sociedades particulares”, escrevem Rafael Luciani e Félix Palazzi, em artigo publicado por America, revista dos jesuítas americanos, 25-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Rafael Luciani é teólogo leigo venezuelano, estudou na América Latina, Itália e Alemanha. Atualmente é o diretor da Escola de Teologia da Universidade Católica Andrés Bello, instituição jesuíta em Caracas, onde leciona, e professor visitante na Boston College.
Félix Palazzi é teólogo leigo venezuelano, estudou na América Latina, Itália e Alemanha. É o diretor do PPG em Teologia da Universidade Católica Andrés Bello, onde igualmente leciona. Trabalha como professor visitante na Boston College.
Eis o artigo.
Na qualidade de arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio gravou um vídeo para o encontro nacional da Caritas Argentina em 2009 em que explicava as consequências para os que “optam pelos pobres”. O arcebispo disse que quando nos inserimos na realidade destas pessoas, “o nosso próprio estilo de vida muda. A gente não pode se dar ao luxo que antes costumávamos a ter...”.
Dom Jorge Mario Bergoglio entendia que, para verdadeiramente conhecer e valorizar a cultura dessas pessoas, deve-se ter uma ligação pessoal com elas. A sua ligação com os sofrimentos do povo nas villas miserias – os bairros favelados da cidade de Buenos Aires – o haviam evangelizado, ensinando-lhe que, quando desligados das experiências reais do encontro, da oração e da partilha do pão com os pobres, os conceitos sobre Deus carecem de transcendência e relevância.
“O bispo das favelas” é agora o Bispo de Roma e está convidando toda a Igreja a, igualmente, se evangelizar por meio de um encontro mais profundo com os pobres. Compreende-se melhor essa visão de uma “Igreja pobre para os pobres” no contexto da teologia latino-americana que moldou Jorge Bergoglio e que o Papa Francisco está incorporando no magistério da Igreja universal.
O lugar do encontro
Na teologia latino-americana, a religiosidade popular define-se como a apropriação das crenças religiosas pelas pessoas comuns. É também chamada de piedade popular, referindo-se à forma como o povo pobre vive a sua religiosidade em contraste com a religiosidade e os ritos oficiais.
Embora a questão da cultura já se fazia presente no Concílio Vaticano II, o mesmo não aconteceu com as questões da religiosidade popular e da libertação como parte da função própria de evangelização. Estas duas noções foram assumidas pelo magistério através dos bispos latino-americanos na III Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos realizada em 1974 sob a bandeira da “evangelização no mundo moderno”. Neste encontro, bispos de todo o mundo consideraram o tópico da libertação como uma função própria do trabalho de evangelização da Igreja em cada cultura. O Papa Paulo VI incorporou as conclusões deste Sínodo na formulação da exortação apostólica “Evangelii Nuntiandi”, em 1975.
Em 1985, enquanto reitor do Colegio Máximo de San José em Buenos Aires, o então arcebispo Mario Jorge Bergoglio organizou o I Congresso sobre Evangelização da Cultura e Inculturação do Evangelho. Em sua alocução principal, o arcebispo destacou a importância de a Igreja se aproximar da experiência vivida – ou o mundo da vida – do povo para gerar um processo evangelizador capaz de impelir uma mudança social. A sua proposta pressupunha que a religiosidade popular é o lugar privilegiado para se conhecer como pensam e vivem os pobres e as pessoas comuns.
A exortação apostólica do Papa Francisco intitulada “A Alegria do Evangelho”, de 2013, edifica-se sobre estas intuições. Baseando-se no documento da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho em Aparecida no ano de 2007, o papa reconhece a “espiritualidade popular” ou “a mística do povo” incorporadas em manifestações diárias da fé cristã como um locus theologicus real capaz de evangelizar todas as pessoas em todos os lugares (A Alegria do Evangelho, parágrafos 122-126).
A proposta de Francisco reúne duas linhas de pensamento e ação. A primeira é a evangelização da cultura através do conhecimento da – e do contato com a – religiosidade popular dos povos. A segunda é uma atividade pastoral libertadora impulsionada por uma opção preferencial pelos povos empobrecidos ao promover mudanças sociais e eclesiais, ao mesmo tempo denunciando todas aquelas estruturas e modos de vida – sociais, econômicos e eclesiais – que desumanizam ao transformar as pessoas em meros objetos descartáveis.
A evangelização das culturas
Na visão de Igreja do Papa Francisco, o “Povo de Deus encarna-se nos povos da Terra” (A Alegria do Evangelho, parágrafo 115). A Igreja deve estar a serviço de cada povo em particular de forma a promover a sua libertação de qualquer dependência interna ou influência externa, seja política, econômica ou ideológica. O objetivo é evitar cair na tentação de homogeneizar os fiéis ou tratá-los como massa, sem vida nem história. Conhecer e servir as pessoas implica conhecer as suas origens, o seu modo particular de ser e pensar; significa respeitar o fato de que “cada povo é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história” (A Alegria do Evangelho, parágrafo 122).
Com “A Alegria do Evangelho”, Francisco propõe-se a seguir estas diretrizes e deixa claro uma abordagem teológico-pastoral inspirada em sua experiência social, eclesial e teológica na América Latina. Ele aí introduz no magistério universal uma noção que advém da teologia latino-americana, especificamente a teologia argentina do povo, a saber: a mística popular. A mística vivida e aprendida nas culturas populares – especialmente a experiência do povo pobre – transforma-se num novo centro e fonte de reflexão teológica (A Alegria do Evangelho, parágrafo 126).
Isso acarreta uma mudança na maneira atual de ser Igreja porque pressupõe que o lugar mais adequado da presença católica – pastoral e acadêmica – é no meio dos pobres, servindo-os e comprometendo-se com suas lutas e esperanças, a partir das várias posições nas quais podemos nos encontrar trabalhando na sociedade. É assim que a instituição eclesial, em tudo o que ela é e faz, é chamada a deixar-se a ser evangelizada pela disposição humana que brota da mística popular, pois “a ‘mística popular’ acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro e encarna-o em expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de festa” (A Alegria do Evangelho, parágrafo 237).
Estas são as formas que os pobres e humildes se relacionam com Deus, não só em suas próprias necessidades individuais, mas também em suas vicissitudes ou anseios comuns. Estas formas de viver a vida podem evangelizar as nossas sociedades fragmentadas e as nossas famílias arruinadas; podem abrir os nossos corações e mentes para uma compreensão mais ampla e sadia da realidade, ao mesmo tempo conectando as nossas vidas e as nossas obras com os sofrimentos e esperanças da maioria do gênero humano.
Seguindo o documento de Aparecida, “A Alegria do Evangelho” recupera o lugar da religiosidade popular na compreensão desta fé sincera e simples que permeia a vida inteira do cristão. Na mística popular, encontramos o Evangelho inculturado sob este desejo permanente de discernir a passagem do espírito em meio aos dramas que nos rodeiam e que parecem impossíveis de ser resolvidos.
Todas estas expressões ou manifestações – oração, fraternidade, justiça, lutas e festas – transformam-se num local teológico necessário para a evangelização das culturas e para o entendimento acadêmico delas; não são apenas práticas de adoração, mas uma experiência íntima que encoraja a solidariedade e a necessidade de justiça social, um modo de viver a situação de alguém em termos da esperança que brota a partir de uma relação íntima e de confiança com Deus. Em outras palavras, identificam-se as expressões de fé diárias do crente com o sofrimento de Cristo, crucificado e impotente, mas sempre no caminho em direção a um futuro melhor.
A incorporação da noção da mística popular no magistério universal através de “A Alegria do Evangelho” tem implicações éticas significativas para os modos de vida e pensamento que vão além da América Latina. Isso não quer dizer que o mundo da vida popular latino-americana transforma-se em um paradigma para as demais culturas. Pelo contrário, concede-se a primazia para o mundo da vida daqueles que são os mais pobres em qualquer sociedade, porque eles são a mediação ética e o lugar para se ler, a partir do ponto de vista de Deus – isto é, à luz do olhar misericordioso divino –, a realidade do mundo contemporâneo, em suas esperanças e imperfeições.
Porém essa primazia pode ser compreendida somente quando os cristãos se inserem no mundo popular do povo pobre de suas sociedades particulares.
Teologia para o povo
A teologia latino-americana do povo pressupõe que a reflexão sobre a inculturação do Evangelho não é um problema reservado aos especialistas em pastoral. Não há lugar para uma teologia acadêmica que não esteja ligada à situação das pessoas reais, os seus sofrimentos diários e a maneira como suportam as dificuldades a partir da fé. A reflexão magisterial de Francisco decorre desta abordagem teológico-pastoral, e não de uma ideia abstrata de doutrina, que vem antes do encontro com o outro. Portanto, conforme disse Francisco em setembro passado numa missa na Plaza de la Revolución, em Havana: “O serviço nunca é ideológico, já que não se serve às ideias, mas às pessoas” (20-09-2015).
Da mesma forma, a evangelização e o próprio magistério correriam o risco de se tornarem instrumentos para incutir a doutrina. Na falta desta mística de estar juntos, os teólogos tornar-se-iam executivos corporativos de um conhecimento abstrato sem qualquer impacto salvífico. E o povo, especialmente os pobres, seria usado para propósitos diferentes, da academia aos negócios, sem fazer uso de sua dupla e legítima condição de a) ser agente de sua própria história e futuro e b) ser um lugar hermenêutico crítico de interpretação e confrontamento da mensagem evangélica e do modo de vida cristão.
A noção de “povo” situa-nos diante do fato chocante da desigualdade, que não é meramente a disparidade econômica em nosso mundo, mas, como escreveu São João Paulo II, a existência de mundos diferentes – o primeiro mundo, o segundo mundo e o terceiro mundo – “dentro no nosso único mundo” (A Solicitude Social, parágrafo 14). Estes mundos são governados por uma mentalidade imperialista deplorável que busca apenas homogeneizar e impor um critério e um modo singular de fazer as coisas.
Isso deu origem a novas subculturas de pobreza caracterizadas pela adaptação e normalização de um individualismo exacerbado que cria “pessoas” sem quaisquer possibilidades de viver um presente humano nem ter um futuro promissor, pessoas que carecem da possibilidade de ter possibilidades, nas palavras do Papa Francisco: “Grandes massas da população veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída” (A Alegria do Evangelho, parágrafo 53).
Pobreza extrema, desigualdade e a idolatria do dinheiro nestes mundos – e entre eles – são fatos que podem ser superados caso trabalhemos para o bem comum e assumamos a opção preferencial pelos pobres. Daí que a Igreja é chamada a tornar-se uma “Igreja pobre para os pobres”, a assumir um caminho de encontro e humanização, tendo como paradigma a forma na qual as pessoas se relacionam na cultura popular. Existe uma mística do bem-viver que se traduz em relações humanizantes. O Papa Francisco descreveu esta experiência em uma alocução na Bolívia, em 09-07-2015, como um “apego ao bairro, à terra, à profissão, à corporação, este reconhecer-se no rosto do outro, esta proximidade no dia a dia, com as suas misérias, porque elas existem, temo-las nós mesmos, e os seus heroísmos quotidianos, é o que permite realizar o mandamento do amor, não a partir de ideias ou conceitos, mas a partir do genuíno encontro entre pessoas, precisamos instaurar esta cultura do encontro, porque não se amam os conceitos nem as ideias, ninguém ama um conceito, ninguém ama uma ideia; amam-se as pessoas”.
A mística religiosa que brota da cultura popular é o locus hermenêutico par excellence, que torna possível superar as barreiras que separam a teologia popular da acadêmica, ou a fé dos pobres, que vivem em meio às vicissitudes da vida diária, da instituição eclesiástica e sua liturgia oficial. Além disso, torna possível compreender que a evangelização das culturas dá-se ao se inserir – pessoal e institucionalmente – no mundo da vida daquelas pessoas às margens da sociedade e ao se trabalhar pela libertação integral de todos neste mundo globalizado. Significa expandir as nossas relações e sairmos da zona de conforto. Com Francisco afirma na carta que escreveu ao Cardeal Aurelio Poli para marcar o 100º aniversário da Pontifícia Universidade Católica Argentina:
“Não vos contenteis com uma teologia de escritório. O vosso lugar de reflexão sejam as fronteiras. (…) Até os bons teólogos, assim como os bons pastores, têm o odor do povo e da rua e, com a sua reflexão, derramam azeite e vinho sobre as feridas dos homens”.
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A voz popular. A teologia do Papa Francisco começa com a fé do povo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU