18 Março 2016
"Considero como um evento público enormemente útil a ênfase dada por Tracy ao teólogo como uma figura pública. Tendo lecionado por quase 40 anos e pregado por um período de tempo igual, é bom reimaginar um culto para além das cerimônias privadas aos batizados", escreve Edward Foley, professor da Cátedra Duns Escoto de Espiritualidade e professor de Liturgia e Música na Catholic Theological Union em Chicago, membro da Província de St. Joseph da Ordem dos Capuchinhos, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 14-03-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A Imaginação Analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo, de David Tracy, publicado pela Editora Unisinos, 2006, na Coleção Theologia Publica, 7
Eis o artigo.
Já faz mais de 25 anos que li o livro marcante de John Irving “Uma oração para Owen Meany”. Lembro-me deste livro como a melhor ficção que eu alguma vez encontrei. Recentemente tive a oportunidade de baixá-lo da internet em áudio. Ao mesmo tempo em que o desfrutei pela segunda vez, fiquei também um pouco desanimado com a quantidade de coisas que havia esquecido, dos personagens vívidos que despareceram de minha memória, da horda de humor ultrajante que se evaporou e dos insights humanos e espirituais profundos que praticamente se apagaram de minhas lembranças.
De forma semelhante, sempre me recordo da obra “A Imaginação Analógica” como uma leitura de mudar os nossos paradigmas, um livro a que faço regularmente referência em meu magistério e em meus escritos. Ciente de minha memória faltosa e preparando-me para elaborar esta reflexão, achei sensato reler este clássico em sua totalidade. Do mesmo jeito que aconteceu com a minha releitura de “Uma oração para Owen Meany”, no entanto, eu fiquei tão consternado sobre o quanto havia esquecido aqui e, ao mesmo tempo, feliz em saber que tantas ideias que eu mantive instintivamente tão firmes comigo podem estar ancoradas na obra de Tracy sobre a imaginação analógica. Existem três princípios centrais em minha prática teologal que possuem origens distintas neste clássico surpreendente. Embora estreitamente relacionados entre si, iremos examiná-los aqui – como Tracy aconselha – como distintos, porém não separados.
A experiência humana
Já no livro “Blessed Rage for Order”, Tracy afirmava o papel fundamental da “experiência humana comum no empreendimento teológico”, observando que a teologia cristã, hoje, é melhor compreendida como uma “reflexão filosófica sobre os significados presentes na experiência humana comum e sobre os significados presentes na tradição cristã”. Ele volta a este tema em “A Imaginação Analógica” argumentando que as obras clássicas que fluem do espírito humano – seja nas artes, seja na religião – são recursos necessários para a interpretação do nosso mundo e de nossas crenças.
“A Imaginação Analógica” foi escrita num período de erosão da fé, quando os princípios do cristianismo se deparavam com um ceticismo cada vez maior na academia e na sociedade. Assim, o compromisso de Tracy com o fazer teológico em vista das experiências humanas compartilhadas lhe permitiu se envolver teologicamente com uma base comum. Esta contribuição se tornava mais e mais importante na medida em que o número de pessoas não filiadas a alguma religião continuou se expandir nesse nos EUA e em outros países, como acontece com o número de pessoas que se autodeclaram agnósticas ou ateias.
Embora não diretamente envolvido na formação de agnósticos, ateus ou humanistas – embora estes estejam povoando os nossos seminários e escolas de teologia –, trabalho na formação de pessoas que irão precisar colaborar com representantes destas correntes de crença, tanto em empreendimentos religiosos (p. ex., na capelania) como em empreendimentos sociais (p. ex., com os desabrigados).
Além da colaboração pastoral ou estratégica, pergunto-me se um católico romano ou um humanista em um hospital podem, de fato, compartilhar algum tipo de reflexão profunda a respeito do trabalho que realizam juntos sem comprometer as suas formas de crença. Será que um católico romano pode se engajar no que se chama tradicionalmente de uma reflexão teológica com alguém que não tem “teologia”?
A minha resposta a este dilema ministerial tem sido uma forma de criação de sentidos chamada “crença reflexiva”, conforme Foley descreveu em seu livro lançado em 2015 intitulado “Theological Reflection across Religious Traditions: The Turn to Reflective Believing”. O ponto inicial desta aventura interpretativa é a experiência humana compartilhada, especialmente como narrada através da contação de histórias e da ritualização. Foi a ênfase que Tracy pôs sobre a centralidade da experiência humana para o empreendimento teológico o que desencadeou esta aventura para dentro de um tipo de interpretação que não exigia categorias teológicas, mas que, mesmo assim, conseguia abordar o transcendente.
Para mim, a valoração da experiência humana feita por Tracy encontra um paralelo cristológico em sua asserção de que um evento e uma pessoa “que normativamente julga e dá forma a todos os demais clássicos cristãos (…) é o evento e a pessoa de Jesus Cristo”. Um clássico é qualquer evento, texto, imagem, símbolo ou pessoa com um “excesso de significado” que provoca o entendimento no presente com uma espécie de “prontidão permanente”. Considerar Jesus Cristo como um clássico me permite pensar, pregar, lecionar sobre Jesus profundamente, enraizado na humanidade. Assim como os primeiros discípulos vivenciaram esta humanidade a fim de discernir a sua divindade, o mesmo posso eu empregar as histórias humanas, os feitos e as parábolas de Jesus como um recurso em meu diálogo inter-religioso e como uma construção de sentido com os não teístas sem ter de abandonar qualquer crença em sua divindade. Tracy me capacitou a ponderar sobre como a humanidade é um portal valioso para a transcendência, em particular no modo de Jesus.
Analogia
Um outro conceito central em “A Imaginação Analógica” que se tornou parte regular de meu magistério e de minha crença é a ênfase do autor sobre a imaginação analógica para a prática da teologia nesta era pluriforme. Para Tracy, a linguagem analógica é capaz de reconhecer e articular a semelhança na diferença, até mesmo ao ponto de teologizar sobre um Deus que – apesar do abismo infinito entre a humanidade e a divindade – pode ser tomado mais como o mundo criado do que o contrário. Tracy vê realmente a necessidade de uma perspectiva dialética na teologia que enfatiza a ruptura fundamental entre Deus e a criação, e considera esta necessidade como um antídoto importante para a tendência de confundir toda e qualquer atividade humana com a obra do Espírito Santo. Ao mesmo tempo, no entanto, Tracy sustenta que o pensamento e a fala analógicos são essenciais neste mundo cada vez mais pluralista, de forma que possamos nos engajar em diálogos frutíferos e públicos, apesar das nossas diferenças.
Na qualidade de frade capuchinho franciscano, considero que a virada de Tracy ao analógico ressoa princípios centrais da espiritualidade franciscana. Francisco de Assis é lembrado por sua percepção da criação como um parente, digna de respeito e louvor. Múltiplas são as histórias de Francisco pregando aos pássaros, falando com os lobos, e até mesmo marcando as paredes com carne para que estes pudessem se juntar à festa de Natal. Toda a criatura era um presente de Deus, uma generosidade da visão que se estendia aos mais pobres e marginalizados da espécie humana. A visão de Francisco está resumida em seu “Cântico das Criaturas”, que diz que o sol, a lua, o fogo, a água, a terra e o ar são irmãos em Deus. De forma mais sistemática, a obra de Boaventura “A jornada da alma em direção a Deus” demonstra como o universo possui impressões digitais de Deus. Por fim, São Boaventura conclui que o Deus que Gênesis lembra declarando ser “bom” cada estágio da criação é melhor chamado de o Bem Maior (summum bonum). Toda a criação tem a sua origem neste Bem ulterior.
Finalmente, considero útil a ênfase dada sobre o analógico quando se ensina os sacramentos. Desde meados do século XX, os teólogos tentam restaurar algo da elasticidade que a Igreja primitiva predicava da sacramentalidade. O chamado “princípio sacramental” assevera que tudo no mundo criado tem o potencial de revelar Deus. Este conceito é por vezes um conceito complicado para os que suspeitam da cultura contemporânea. No entanto, a semelhança na diferença, de Tracy, abraça o dialético como um corretivo necessário a qualquer instinto para considerar toda e qualquer manifestação cultural ou tendência societal como proveniente de Deus. Ao mesmo tempo, ela respeita a criação divina como sacramental em suas origens. Isso permite que os estudantes renunciem a sacramentalidade confinada aos eventos litúrgicos prescritos e apresenta um convite geral à vida sacramental.
Teologia pública
Por fim, considero como um evento público enormemente útil a ênfase dada por Tracy ao teólogo como uma figura pública. Tendo lecionado por quase 40 anos e pregado por um período de tempo igual, é bom reimaginar um culto para além das cerimônias privadas aos batizados. Pelo contrário, a nossa sacramentalização envia um sinal de quem somos e no que cremos neste mundo religiosamente cético.
Enquanto Tracy centra-se na teologia sistemática como teologia pública, o mesmo deve ser dito do culto. A Constituição sobre a Sagrada Liturgia, de 1963, nota que a liturgia é a fonte e o ápice da vida da Igreja. Isso significa que ela é a fonte da missão, da defesa da dignidade de todos os seres humanos e da integridade de toda a criação. Se, como o Papa Francisco afirmou em sua encíclica “A Alegria do Evangelho”, toda a atividade dos batizados é, em última instância, um ato de evangelização, então os nossos atos centrais de adoração devem, por definição, ser atos de evangelização.
Tracy argumenta que os teólogos sistemáticos devem abordar a sociedade, a academia e a Igreja. Da mesma forma, a liturgia como “culto público” (ou adoração pública) deve ter a mesma energia centrífuga. Isso se torna cada vez mais importante diante do número crescente de pessoas não filiadas religiosamente na sociedade americana. Embora estes números continuem aumentando, estas pessoas não desistiram da ritualização. Em momentos de perdas pessoais, transição importante na vida ou de desastres naturais ou provocados pelo homem, os seres humanos precisam ritualizar e, frequentemente, migram para as nossas igrejas. Em tais momentos dinâmicos, a liturgia deve ter a capacidade de transcender os parâmetros doutrinais estreitos e falar às comunidades em tais momentos limítrofes. A apresentação da teologia presente em “A Imaginação Analógica” como um ato público amplifica e justifica uma abordagem assim. Tradicionalmente a liturgia era chamada de a teologia primeira (de primeira ordem). Se toda a teologia é para ser um ato público, então a primeira das nossas teologias promulgadas em palavra e em sacramento, em ritual e em música, deve ser também pública.
Um pensamento conclusivo
De importância central para a mensagem de “A Imaginação Analógica” está a convicção de que os clássicos são recursos necessários para a interpretação do nosso mundo e das nossas crenças. A obra aqui revisitada atingiu o status de um clássico para mim. Fico pessoalmente grato de que este exercício me tenha me provocado a reler “A Imaginação Analógica” em sua totalidade. É algo que irei precisar fazer de novo.
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A Imaginação Analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU