03 Março 2016
Em algumas universidades no Brasil, os conhecimentos profundos da diversidade epistemológica do País estão finalmente atravessando o alto muro da academia.
A reportagem é de Felipe Milanez, publicada por CartaCapital, 03-03-2016.
Nesse início de ano letivo de 2016, a Universidade Federal de Juiz de Fora deu um grande exemplo de como a produção de conhecimento deve ser feita a partir de uma descolonização da própria universidade, e concedeu o título de professor honoris causa a Ailton Krenak.
Em seu discurso, Krenak aponta justamente esse desafio a ser superado, qual seja, a barreira que exclui tantas formas de saber.
“As universidades devem reconhecer que existe um notório saber em diferentes segmentos da nossa comunidade, da nossa sociedade, que não são apenas honoríficos, e trazer para dentro do conceito da pesquisa, do fazer conhecer, do fazer saber, para que esses saberes não sejam só referências simbólicas ou folclóricas. E que a gente não insista em chamar de conhecimento popular aquilo que prolongue a vida, aquilo que crie maneiras de relacionamento sociáveis, que diminui a violência”.
Krenak já vinha trabalhando junto à UFJF desde 2012, com o seminário “Repensar a Universidade”, e a partir de 2013 no âmbito do projeto Encontro de Saberes, com destaque para o curso de especialização que ajudou a construir, “História e Cultura Indígena” e a disciplina “Artes e ofícios dos saberes tradicionais”.
O processo para outorga da honraria teve início no Departamento de Botânica, passou pelo Instituto de Ciências Biológicas e foi, em seguida, aprovado também pelo Conselho Superior da universidade.
A UFJF segue, assim, um positivo movimento entre algumas universidades brasileiras de se abrirem a outras formas de conhecimento. Nesse mesmo sentido, por exemplo, a Universidade Federal de Rondônia (UNIR) concedeu o título de doutor honoris causa a Almir Narayamoga Suruí, em 2013, e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia concedeu o doutor honoris causa a Dalva Damiana, em 2012, cantora e compositora de Cachoeira (BA), e um ícone da cultura do Recôncavo.
Esses reconhecimentos universitários de pessoas de destaque em conhecimentos não-acadêmicos são fundamentais para a descolonização epistemológica do Brasil.
Basta lembrar que a presidenta Dilma Rousseff, em uma atitude violentamente colonialista, vetou o projeto de lei que ampliava o uso de línguas indígenas em escolas e universidades. Supostamente para o “interesse público”, essa medida coloca em risco a diversidade, em um evidente desperdício de experiências e com um alto risco de epistemicídio.
Afinal, como disse Krenak no discurso, não era ele, individualmente, que estava sendo reconhecido:
“Eu sei que eu não sou um sujeito no sentido singular da palavra. Eu sou um sujeito coletivo. Eu vivo pros outros. Eu não vivo só pra mim. E eu acho que o fato de eu ter me dedicado desde muito cedo a olhar em torno de mim, e reconhecer as realidades que me circundavam, e pensar o que eu podia fazer para ajudar a melhorar essas realidades, eu me pus a fazer essa trajetória, que resultou na biografia de alguém que é chamado de uma importante liderança indígena no nosso Brasil.”
Para a ocasião da comemoração, Krenak escreveu o texto abaixo, cujo espaço da coluna cedo a ele em homenagem. Parabéns, txai!
Os saberes que estão à espera
Por Ailton Krenak, professor honoris causa da Universidade Federal de Juiz de Fora.
O entusiasmo que marcou as manifestações de uma extensa rede de amigos, colegas e parceiros que fizeram a trilha comigo nestes dias intensos que me trouxeram aos 60’ fez com que eu visse este momento de minha titulação nesta magnífica UFJF como uma vitória coletiva.
Uma universidade que carrega importante histórico de compromissos com as lutas populares e abertura para as complexas realidades de nosso País; um coletivo que junta Povos Indígenas e povos tradicionais, que são uma expressiva parte de nossa sociedade brasileira. Falo de uma sociedade plural e complexa em sua constituição, e surpreendentemente conservadora no tocante à sua autoimagem por estar ainda submetida a uma visão colonial e subalterna em relação aos valores que regem nossas mentalidades.
A UFJF, por seu Conselho Superior, toma uma posição corajosa ao nomear a biografia de uma liderança indígena com o título de professor honoris causa. Através da trajetória de ativismo e luta que tem marcado minha caminhada até aqui, considero este um momento de partida, não de chegada!
Abre-se uma perspectiva de novas lutas por reconhecimento de saberes que ainda estão à espera de um lugar nas novas epistemes, conforme Boaventura Sousa Santos, que irão emergir das lutas de descolonização dos saberes.
Minha gratidão aos queridos professores Daniel Pimenta, Gustavo Soldati, José Antônio Aravena Reys, Rinara Granato, Angelise Nadal, Camila Gauditano, Cida Queiroz Rocha, Natália Pagnani e Leonardo Carneiro.
Agradeço a vocês que, desde o primeiro e inaugural Encontro de Saberes aqui nesse Campus da UFJF, mantiveram a firme decisão de reunir representantes de comunidades tradicionais e povos indígenas num franco processo de troca de conhecimentos.
Destaco a minha admiração por essa busca do melhor de cada um de nós e também pelo acolhimento de centenas de participantes nos cursos de Especialização em História e Cultura dos Povos Indígenas, que foram e serão ofertados a educadores, além de dezenas de pesquisadores e interessados em conhecer um pouco mais da nossa diversidade cultural.
Está dada a partida!
Com gratidão, em nome de milhares de desplazados, pegamos este bastão.
Ererré!
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Ailton Krenak: um professor formado na luta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU