01 Março 2016
"A política recente da UE está limitada a uma desesperada tentativa de adaptar a Europa ao novo capitalismo global. A usual crítica dirigida à UE pelos liberais de esquerda – está tudo bem à exceção do "déficit democrático" - carrega a mesma ingenuidade dos críticos dos antigos países comunistas, que eles basicamente sustentavam, lamentando somente a falta de democracia: em ambos os casos, o "déficit democrático" é parte necessária da estrutura global".
A opinião é de Slavoj Zizek, escritor e filósofo esloveno, em artigo publicado por Repubblica, 27-02-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Entre as perguntas recentes dos leitores do Süddeutsche Zeitung sobre a crise dos refugiados, a que mais suscitou interesse na Alemanha dizia respeito à democracia, mas com apelo populista de direita: que legitimidade tinha Angela Merkel de convidar publicamente centenas de milhares de refugiados a entrarem na Alemanha? Que direito tinha de fazer uma mudança tão radical à realidade alemã, sem prévia consulta democrática? Não quero absolutamente apoiar os populistas contrários à imigração, mas indicar claramente os limites da legitimação democrática. O mesmo vale para os partidários de uma radical abertura das fronteiras: perceberão eles que avançar uma instância destas é equivalente a revogar a democracia, a permitir que o País seja objeto de colossal mudança sem prévia consulta democrática da população?
Não ocorre a mesma coisa com relação ao pedido de transparência nas decisões da UE? Uma vez que, em muitos países, a opinião pública da maioria era contrária a redução da dívida grega, tornar pública as negociações obrigaria os representantes daqueles países a tomar medidas ainda mais rigorosas contra a Grécia. Estamos diante de um velho problema: o que acontece com a democracia quando a maioria tende a votar leis racistas e sexistas? Não tenho medo de concluir que a política direcionada à emancipação não deva ser sujeita a procedimentos de legitimação formal. Muitas vezes as pessoas não sabem o que querem, ou erram as escolhas. Não existem atalhos neste caso, e não é difícil imaginar uma Europa democratizada, onde a maioria dos governos são formados por partidos populistas anti-imigração.
Quem de esquerda critica a UE encontra-se numa situação de grave constrangimento: por um lado, condenam o "déficit democrático" da União e propõem projetos para dar maior transparência às decisões de Bruxelas, por outro, apoiam administradores "antidemocráticos" europeus quando exercem pressão contra as novas tendências "fascistas" (legitimadas democraticamente). O contexto em que se encontra este impasse é o bicho-papão da esquerda europeia progressista: há o risco de um novo fascismo encarnado no populismo de direita anti-imigração. A Europa passa a ser vista como um continente regredindo a um novo fascismo alimentado pelo ódio e pelo medo paranoico do inimigo étnico-religioso esterno (geralmente os muçulmanos).
Mas, trata-se realmente de fascismo? Muitas vezes se recorre a palavra "fascismo" para subtrair-se a uma análise mais profunda da realidade. O político holandês Pim Fortuyn, assassinado no início de maio de 2002, duas semanas antes das eleições em que as pesquisas lhe davam um quinto dos votos, foi uma figura paradoxal e sintomática, um populista de direita, que por suas características pessoais e até mesmo (em grande parte) pelas opiniões expressas, caia quase à perfeição na categoria do "politicamente correto": era gay, tinha boas relações com muitos imigrantes, possuía um inato senso irônico - em suma, era um bom liberal, tolerante sob qualquer aspecto, mas não em seu programa político fundamental. Ele opunha-se aos imigrantes fundamentalistas pelo ódio que manifestavam contra os homossexuais, o desprezo que manifestavam pelos direitos das mulheres, etc. Fortuyn encarnava o ponto de encontro entre o populismo de direita e o politicamente correto progressiva.
Além disso, muitos liberais de esquerda (como Habermas) que lamentam o atual declínio da UE parecem idealizar o passado: a União "democrática" da qual choram o desaparecimento nunca existiu. A política recente da UE está limitada a uma desesperada tentativa de adaptar a Europa ao novo capitalismo global. A usual crítica dirigida à UE pelos liberais de esquerda – está tudo bem à exceção do "déficit democrático" - carrega a mesma ingenuidade dos críticos dos antigos países comunistas, que eles basicamente sustentavam, lamentando somente a falta de democracia: em ambos os casos, o "déficit democrático" é parte necessária da estrutura global.
Obviamente, a única ação para contrastar o "déficit democrático" do capitalismo global deveria ocorrer por meio de uma entidade transnacional - não foi Kant, por acaso, que individuou, há mais de duzentos anos, a necessidade de uma ordem jurídica transnacional, com base no crescimento da sociedade global? "Ora, graças à comunalidade (mais ou menos próxima) entre os povos da Terra, espalhados já por todos os lados, chegou-se a um ponto tal, que a violação de um direito perpetrado em algum lugar na Terra é sentida em todas as partes. Eis que a ideia de um direito cosmopolita não é mais uma maneira fantástica, exagerada, de representar o direito".
Isso nos leva, no entanto, a "principal contradição" da Nova Ordem Mundial, ou seja, a impossibilidade estrutural de individuar uma ordem política global que esteja conforme com a economia capitalista global. E se por razões estruturais não pudesse existir uma democracia mundial ou um governo mundial representativo?
O problema estrutural (antinomia) do capitalismo global consiste na incapacidade (e, ao mesmo tempo, na necessidade) da existência de uma ordem sociopolítica a ele compatível: a economia de mercado global não pode ser organizada diretamente como a democracia liberal global com tanto de eleições em todo o mundo. Na política retorna o "reprimido" da economia global: obsessões arcaicas, particulares identidades substanciais (étnica, religiosa, cultural).
Esta tensão define o atual paradoxo: com a livre circulação global dos bens, escavam-se sempre mais profundas disparidades na esfera social. Enquanto os bens movem-se sempre mais livremente, novos muros surgem para separar as pessoas.
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Emergência de imigrantes e "déficit democrático” na Europa. Artigo de Slavoj Žižek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU