06 Fevereiro 2016
A Igreja Católica dá "muito espaço à decisão pessoal" pelo uso de pílulas e camisinhas, mas não aceita o aborto porque "ninguém pode decidir sobre vida e morte de um ser humano", diz o cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo.
A reportagem é de Ricardo Senra, publicada por BBC Brasil, 04-02-2016.
Em entrevista na Cúria metropolitana, um casarão de Higienópolis onde são tomadas decisões administrativas da arquidiocese, dom Odilo afirma que os bispos ainda não se reuniram para discutir o tema, mas que gestantes de fetos com microcefalia "devem encará-los como uma missão".
"Toda gravidez sempre envolve alguma incógnita e pode resultar em alguma anomalia, o que é indesejável. (...) Um bebê (microcéfalo), embora tenha suas limitações, pode ter certa autonomia. É uma pessoa que terá alegrias na vida. Então, (é preciso) acolher esse ser humano com suas limitações e encarar como uma missão a ser acompanhada durante toda a vida."
À BBC Brasil, o arcebispo qualifica números divulgados pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e do SUS (Sistema Único de Saúde) sobre abortos realizados no Brasil como "aproximativos" e "duvidosos". Segundo a OMS, 1 milhão de abortos ilegais são feitos por ano no país e matam uma mulher a cada dois dias.
"Mas não há que se duvidar que se fazem muitos abortos clandestinos e que há problemas e até mortes de mulheres", diz. "Isso é extremamente lamentável."
Como primeira solução, ao contrário da descriminalização, o religioso defende a fiscalização e propõe que governo e autoridades combatam "clínicas e mesmo os abortos clandestinos com base na lei".
Para o dom Odilo, um dos 13 filhos de imigrantes alemães que chegaram ao Rio Grande do Sul, o foco da discussão sobre o aborto está na "origem da vida dos fetos", e não na quantidade ou na classe social das mulheres que se submetem ao procedimento - por ano, mais de 200 mil são internadas no SUS com complicações pós-aborto.
"É ser humano. Ainda em formação, mas é ser humano", afirma. "O bebê não nascido, (seja com) apenas 12 semanas ou com 20 semanas de gestação, é humano desde o primeiro instante da concepção."
Já o uso de métodos contraceptivos seria "bem diferente", diz o arcebispo. "Não é uma solução simplista, use ou não use", afirma. "Os casais sabem muito bem como prevenir uma gravidez indesejada. Não sou eu a ensinar."
Dom Odilo explica seu raciocínio: "Nos contraceptivos, não se trata de uma vida já gerada, mas de evitar a geração de uma vida. No caso do aborto, se trata de intervir para suprimir uma vida".
'Não se pode culpar o governo'
Às pessoas que defendem o direito de escolha pelo aborto e afirmam que mulheres estão "não têm culpa" do fracasso na erradicação do Aedes aegypti, Dom Odilo responde que "não se pode culpar o Estado pelo fato de haver o mosquito".
"O mosquito apareceu e ele se prolifera. Mesmo que o Estado faça talvez a sua parte o mosquito vai continuar existindo", diz Dom Odilo. "A culpa não pode ser atribuída ao Estado simplesmente. Muito menos ainda isso pode ser argumento em favor de um suposto direito que está sendo lesado."
Personalidades como o ex-ministro da saúde José Gomes Temporão, que adiantou à BBC Brasil na última quarta-feira que também vai pedir a descriminalização do aborto ao STF (Supremo Tribunal Federal), discordam e atribuem a responsabilidade ao governo.
"Cerca de 80% dos focos (de zika) no Nordeste não estão lá por culpa das famílias. Elas não têm acesso a água de forma contínua, por isso estocam. O Brasil enfrenta surtos permanentes há 30 anos porque estas questões não foram atacadas", disse Temporão.
Horas depois desta entrevista com o arcebispo, a presidente Dilma Rousseff fez pronunciamento em rede nacional pedindo "ajuda e boa vontade de todos" na "verdadeira batalha" contra o Aedes.
"Se nos unirmos, a maneira de lutar se torna simples", disse a presidente. "Não podemos admitir a derrota porque a vitória depende da nossa determinação."
Estado laico e eugenia
Questionado sobre a interferência da Igreja na legislação em um Estado laico, como o Brasil, Dom Odilo diz que "valores universais como dignidade humana, direitos humanos, honestidade e justiça" são "compartilhados independente de religião".
"O aborto não é um fato religioso enquanto tal, é um fato moral e ético. A vida do ser humano é um valor, não entra em jogo a fé religiosa."
O cardeal arcebispo então associa o aborto em caso de microcefalia a uma "seleção dos indivíduos que podem nascer, de acordo com suas possibilidades de render ao longo de sua vida".
"Acho que se a humanidade se orientar por privilegiar somente os que são saudáveis, fortes e poderosos, nos estaremos encaminhando para a eugenia", diz. "A lei da eugenia manda eliminar. Essa forma de raciocinar em relação ao ser humano é absolutamente indigna na civilização".
O termo "eugenia" se refere a técnicas que visam "melhorar qualidades físicas e morais de gerações futuras", segundo o dicionário Michaelis, e frequentemente é associado a políticas de controle social adotadas por Adolf Hitler durante o regime nazista alemão.
A reportagem pergunta se é o caso das mulheres pobres que optam para o aborto pela precariedade dos sistemas de saúde e saneamento nas periferias.
O cardeal recua: "A eugenia é uma doutrina assumida oficialmente por Estados, por leis. Não digo que pessoas individualmente praticando atos que não são aceitáveis já estejam praticando eugenia ou adotando esta ideologia".
'Debate será feito'
Os dados mais recentes do Ministério da Saúde apontam 404 casos confirmados de bebês com microcefalia e/ou outras más-formações do sistema nervoso central - na semana anterior eram 270, mas até então a pasta citava apenas ocorrências de microcefalia ao divulgar os números.
O ministério confirmou 76 mortes por causa desses tipos de má-formação durante a gravidez ou no nascimento.
As discussões entre bispos católicos sobre zika e microcefalia, entretanto, ainda não começaram. "O tema é extremamente recente e não tenho ainda conhecimento de debate já feito pelos bispos. Ele que se fará daqui por diante junto à sociedade", afirma dom Odilo.
Ele pede calma: "Não se deve criar uma espécie de pânico geral em torno de um perigo que existe, mas que é evitável", diz.
"É preciso de participação de toda a sociedade nisso que é uma luta grande contra um bichinho pequeno que pode trazer tanto mal. Eu tenho certeza de que a sociedade unindo esforços será vitoriosa e não se deixará tomar pelo pânico, porque ele não é bom para tomar decisões razoáveis."
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Zika e aborto: Camisinha é 'decisão pessoal' e mães devem encarar microcefalia como 'missão', diz arcebispo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU