25 Janeiro 2016
O Rev. William Wipfler mostra a foto de seu último encontro com o monsenhor Romero no dia 23 de março de 1980, o dia anterior do assassinato.
O assassinato do sacerdote Rutilio Grande impactou profundamente na "conversão" da concepção ecumênica do monsenhor Romero, que até esse momento mantinha-se dentro das rígidas fórmulas doutrinais do tradicionalismo do seu tempo quanto às relações com o mundo protestante. Mundo que em El Salvador, torna-se oportuno o esclarecimento, tinha o rosto agressivo das seitas pentecostais.
Os biógrafos de Romero mostram como foi amadurecendo a partir desse momento a posição ecumênica de Romero, concentrada principalmente em relações de amizade pessoal com representantes de outras denominações próximas e mais distantes do catolicismo. Neste sentido há um elemento pouco conhecido nos últimos dias de Dom Romero. Um fragmento de tempo que agora o blog Super Martyrio completa graça às notas de um interlocutor "ecumênico" do arcebispo de San Salvador, o padre anglicano William Wipfler.
A reportagem é de Alver Metalli, publicada por Tierras de America, 22-01-2016.
Como Diretor do Escritório de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Igrejas entre 1977 e 1988, em 23 de março, dia anterior ao assassinato do arcebispo, Wipfler encontrava-se em El Salvador. A relação com Romero tinha começado há tempos atrás por correspondência, logo depois que ele foi nomeado arcebispo de San Salvador em fevereiro de 1977. Naquele momento Wipfler recebeu de uma de suas fontes em El Salvador um relatório que alertava sobre o novo titular da máxima cátedra do país, que o descrevia como conservador e nada propenso às relações inter-religiosas.
Mas a mesma fonte revisa suas anteriores considerações depois do assassinato de Rutilio Grande observando a reação de Romero frente a este trágico evento. Em um novo relatório para Wipfler afirma que essa reação continha a promessa de que Romero retomaria a defesa dos pobres do próprio P. Grande.
O sacerdote anglicano escreveu então uma carta a Romero expressando-lhe suas condolências pela morte de P. Grande e oferecendo-lhe o apoio do Conselho Nacional de Igrejas. Passado um mês, Wipfler recebeu uma nota de agradecimento à mão de Romero, que o convidava para visitá-lo.
A visita aconteceu pouco tempo depois do intercâmbio epistolar que afirma Carlos Colorado, diretor do Super Martyrio. A relação Wipfler-Romero manteve-se apesar da distância e as visitas se repetiram. Até a última, a fatídica semana do assassinato de Romero.
Wipfler - escreve Colorado - chegou a San Salvador em 21 de março de 1980, integrando uma delegação de líderes inter-religiosos que representavam 34 Igrejas protestantes e ortodoxas e também incluía um sacerdote católico. No dia 22, o grupo reuniu-se com colaboradores do arcebispo, alguns deles pertencentes ao Escritório de Auxílio Jurídico e posteriormente com o próprio Romero.
"O arcebispo foi cordial e acolhedor, e expressou seu agradecimento pela ampla composição do grupo. Com palavras contundentes descreveu depois a espiral de "barbárie" que viveu no país. Falou das torturas aos presos políticos, como lhes cortavam os dedos, queimavam seus rostos com ácido, jogando os corpos destruídos na rua depois de torturá-los e assassiná-los e outros indicadores preocupantes de uma sociedade cuja moral estava sendo destruída. Romero pediu ao sacerdote católico do grupo que concelebrasse com ele a missa no dia seguinte e convidou os demais a estarem presentes.
No domingo, 23 de março, o grupo ecumênico participou da missa na catedral de San Salvador, onde hoje se encontra o túmulo de Romero.
Wipfler chegou cedo para a missa das 8 da manhã e a igreja já estava cheia. Havia "um par de milhares de pessoas na igreja" e estavam de pé. A delegação ecumênica estava perto do altar. "Mais pessoas reuniram-se na rua, onde os trabalhadores estavam a instalando alto-falantes para que o público que não conseguiu entrar no templo pudesse ouvir o sermão de Romero, o atrativo principal em um domingo em El Salvador nestes tempos". Romero fez referência à presença de seus convidados especiais, cumprimentou-os, explicou aos fiéis quem eles eram e pediu uma forte salva de palmas para eles.
Então Romero começou seu sermão usando sua habitual fórmula de homilia, descreveu o anglicano Wipfler. Começou falando das leituras bíblicas para esse dia. Foi “uma maravilhosa apresentação sobre o êxodo (bíblico) e o regresso”, e também do êxodo de El Salvador, recorda. Depois analisou os acontecimentos na vida da igreja e na vida nacional - a parte que Wipfler chama de ''o catálogo''. Era uma longa lista “de violações de direitos humanos, e algumas conclusões que eram uma exigência moral ou de ética ou uma resposta cristã explícita nessa situação”.
Era um "uso brilhante das leituras bíblicas do dia aplicadas à situação contemporânea", observa Wipfler. "Acho que todo pregador queria ter essa capacidade de dizer, olhem, aqui está esta escrita de 2.000 anos de idade e está referindo a este próprio momento". Romero tinha a capacidade de manter os fiéis "atentos a cada palavra". Falando da situação nacional "deu aos dois lados", relata Wipfler, observando que não deixou escapar aos guerrilheiros das suas críticas, denunciando um incidente no qual "os rebeldes tinham golpeado brutalmente a um policial".
Mas o final do discurso foi contundente. Depois de relatar o catálogo de barbárie dessa semana, com execuções extrajudiciais pelo exército, Romero disse que se os soldados recebessem ordens para matar civis inocentes, deveriam desobedecer, porque "nenhum soldado está obrigado a obedecer a uma ordem contra a Lei de Deus".
Para contrariar toda e qualquer diretiva nesse sentido, Romero publicou a sua própria diretiva: "Em nome de Deus e deste povo sofrido, cujos lamentos sobem para o céu cada dia mais tumultuosos, eu lhes suplico, lhes imploro, lhes ordeno, em nome de Deus: Parem a repressão!".
A basílica - conta Wipfler - rompeu em aplausos que duraram quase meio minuto, a ovação mais longa que Romero havia recebido durante seu sermão, que foi interrompido vinte e uma vezes por aplausos.
Wipfler relata um detalhe emblemático da atitude de Romero. "Surpreendeu-me o fato de que Dom Romero foi o único que deu a comunhão, ao contrário de outras situações onde há uma grande congregação e a comunhão é distribuída por vários sacerdotes no trilho do altar".
E Wipler segue dizendo:
"Ele deu a comunhão a absolutamente todo mundo na igreja; demorou mais de meia hora. Parece que Romero entendia que as pessoas vinham vê-lo, alguns que viajaram longas distâncias para a capital para estar ali. Eu acho que muitos deles teriam sido decepcionados se tivessem recebido a comunhão de outras mãos".
Mas em seguida a Super Martyrio revela um fato ainda mais significativo:
"Não sendo um católico, Wipfler compreendeu que não era possível receber a Comunhão sob as regras da Igreja, pelo que utilizou o tempo para ajoelhar-se em oração, com olhos fechados, enquanto Romero distribuía a Eucaristia. Então, ele ouviu a voz de Romero. "Gostaria de receber a Comunhão, padre?", perguntou-lhe. Romero estava andando por toda a igreja distribuindo a comunhão em vários pontos e tinha ido até onde Wipfler estava. “Eu disse que sim. E ele me deu a Comunhão. Fiquei muito emocionado. Foi um gesto incrível”, confessa Wipfler.
No dia seguinte, 24 de março de 1980, Romero foi assassinado.
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O último dia de Romero. Sob o significado do ecumenismo nas ultimas horas do Beato salvadorenho. Um relato do anglicano Wipfler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU