10 Dezembro 2015
Bergoglio parece não se importar com as multidões, nem com os milhares de olhos midiáticos que o perseguem: o seu único objetivo é fazer com que se escute a invocação à misericórdia em um mundo que fez da concorrência, da vitória sobre os outros, do sucesso, o único propósito da vida.
A opinião é da historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade La Sapienza de Roma. O artigo foi publicado no jornal Il Messaggero, 09-12-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Se o Jubileu do ano 2000 foi o triunfo das multidões e, em certo sentido, o da Igreja, isto é, de uma instituição que – única no mundo – existe ininterruptamente há quase 20 séculos, o Ano Santo extraordinário de Francisco nasce desde já em tom menor. Ao menos do ponto de vista das multidões, das cerimônias, do sucesso midiático.
Assim desejou o papa, que, pela primeira vez, convocou um jubileu "temático", no qual as portas santas que irão garantir a salvação depois da morte serão milhares, e as aberturas por parte do próprio pontífice se multiplicarão, tirando, de fato, a prioridade absoluta que a de São Pedro sempre teve.
Em uma praça blindada, diante de um número de fiéis certamente reduzido pelo medo de atentados, Francisco repetiu o rito com o qual, na realidade, ele já inaugurou o Ano Santo há dez dias na África, atravessando a pobre porta de madeira da catedral de Bangui. Lá, a invocação ao perdão e à misericórdia tinha um sabor concreto, visava a trazer a paz depois de uma guerra interna que dilacera o país há mais de 20 anos e colocava sob os olhos do mundo opulento a pobreza e o sofrimento de um povo esquecido.
A porta aberta em Roma, em vez disso, está no coração de uma instituição que atravessou longos períodos de crise interna, primeiro com Bento XVI e hoje também com Francisco. Os dois papas que, com afetuosa solidariedade dos gestos e dos rostos, atravessaram, um após o outro, a porta santa, de fato, enfrentaram e ainda devem enfrentar pesadas dificuldades internas, ao reformar a Cúria e a administração vaticana, tudo diante do olhar crítico e não benevolente do mundo.
Bergoglio parece não se importar com as multidões, nem com os milhares de olhos midiáticos que o perseguem: o seu único objetivo é fazer com que se escute a invocação à misericórdia em um mundo que fez da concorrência, da vitória sobre os outros, do sucesso, o único propósito da vida.
Ele quer que a misericórdia se torne prática de vida para cada cristão, porque sabe que apenas assim se pode mudar o mundo, e que essa é o único caminho para realizar o Evangelho. Ele sabe que nós só podemos encontrar Deus no deserto das nossas vidas, lá onde tínhamos nos perdido, no momento em que ele perdoa os nossos pecados: pecados que não queríamos nem mesmo reconhecer como tais.
O ser humano pode encontrar Jesus somente no momento em que é tocado pela misericórdia na totalidade do próprio ser, na alma assim como no corpo. Este ano santo, portanto, restabelece que todas as igrejas são o lugar da misericórdia de Deus, misericórdia particularmente necessária em um mundo dilacerado pelos conflitos – e, certamente, não só nos povos, mas também nas nossas famílias – e que não conhece válidas práticas de reconciliação.
Para trazer novamente a misericórdia ao mundo, o Papa Francisco se dirigiu a Maria: a escolha de iniciar o ano santo no dia da Imaculada e de selar essa data com uma silenciosa oração diante do antiquíssimo ícone de Santa Maria Maior revelam a força da sua escolha.
Além disso, o termo misericórdia, em hebraico, é expressado com o mesmo termo que define o útero, como que para sublinhar que se trata de uma qualidade materna e para nos lembrar que estamos diante da alma materna de Deus. Por isso, os peregrinos que acorreram, sobreviventes das longas filas para os controles, tinham o olhar luminoso, sem medo de nada, se não de esquecer, depois de retomado o vórtice da própria vida, a intensidade do momento vivido.
A mensagem da misericórdia é tão importante que Francisco vai repeti-la pessoalmente, abrindo outras portas santas, de albergues para imigrantes ou de basílicas romanas, não importa. Onde quer que as suas palavras – que convidam ao perdão e lembram o amor de Deus por nós – ressoem como mensagem de libertação do medo e do ódio, trazendo a esperança de um mundo diferente.
E é justamente a partir de como os cristãos – e os não crentes ou os pertencentes a outras religiões, às quais Francisco também se dirige – vão responder a esse apelo do papa que deveremos medir o sucesso do Jubileu.
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Misericórdia, a chave-mestra de Bergoglio. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU